30/12/2013

Um feito em 31

Faz hoje 31 anos que nasceu.
 
Lembro-me de nós, em crianças, a correr atrás da bola e a andar de bicicleta na pista do cerro do alto de São Roque. Recordo-me, mais que tudo, das aventuras. A vida, por essa altura, era uma aventura… feliz! Passados que estão 20 anos, somos tudo e não somos nada. Eu, por exemplo, gosto de jogar futebol, mas jamais entrarei num estádio repleto de adeptos entusiastas para me ver jogar; gosto de treinar jovens, mas estou a milhentas léguas de possuir a competência e o conhecimento de José Mourinho; gosto de “arranhar” na guitarra, mas fascina-me quem sabe “solar” de cima a baixo, e de forma melódica, nas cordas do instrumento. Ele não, tem jeito para a escrita; aliás, muito jeito para a escrita. Talento puro. Todos veem isso, mas ninguém se parece importar muito. Os «muito bons» comentados no facebook, as palmadinhas nas costas acompanhadas de singelos «escreves bem, pá!», são simpáticos, porém, manifestamente insuficientes.
 
Tenho para mim que uma arte somente adquire expressão quando é mostrada ao mundo, quando é exposta para todos podermos apreciar. Que beleza teria o Mosteiro dos Jerónimos envolto em tecido negro? O que falta é isso mesmo: mostrar ao mundo, sob a forma de obra. Um livro publicado far-lhe-ia alguma justiça, mas não toda. Infelizmente, é muito mais fácil criticar e/ou subestimar; é mais cómodo. É precisamente por esse motivo que as pessoas são melhores depois de mortas; dão menos trabalho.
 
Revolta-me poder fazer pouco. Talvez o pouco de alguns, um dia, possa ser suficiente para lhe prestar o devido reconhecimento, colocando à margem os incautos egocentristas que não veem, ou fazem, maliciosamente, de conta que não veem. Provas? Têm-nas no blogue Terra Ruim, em prosa ou em poesia; é à vontade do freguês.
 
Um dia, digo eu.
 
E porque a vida é um caminho, que se faz caminhando, espero que bem aprecie esta “aventura” escrita:
 
Imagem: Capa de Patagónia Express de Luis Sepúlveda (Porto Editora, 2011).

Parabéns, amigo Eduardo Duarte!

28/12/2013

Periodização do treino de jovens no futebol: O indivíduo para além do processo


NOTA PRÉVIA: O presente texto foi publicado no número mais recente da Revista AF Algarve (n.º 75, Outubro / Novembro 2013).

Imagem: Capa da Revista AF Algarve, n.º 75, Outubro / Novembro 2013 (download pdf aqui).


No futebol de formação, a aprendizagem do jogo, nas suas dimensões técnica, tática e estratégica, não é um processo de curto prazo. A aquisição e o aperfeiçoamento das ações técnicas, o desenvolvimento do raciocínio tático e a vivência dos condicionalismos estratégicos devem ocorrer por etapas, evitando as mais que habituais pressões exteriores de “executar rápido, bem, aqui e agora”. A crença no imediatismo gera usualmente insucesso; o insucesso conduz à saturação; a saturação culmina na desistência e no abandono precoces do processo de treino e competição (Stafford, 2005).

Uma vez que o jogo de futebol tem por base uma estrutura de rendimento complexa, é natural que as crianças/jovens sejam submetidos a situações de jogo ou competição exigentes dos pontos de vista físico, cognitivo e emocional. Contudo, as exigências que são colocadas aos miúdos devem ser muito bem equacionadas e geridas pelos treinadores. Um contexto de pouca exigência não estimula o desenvolvimento das competências dos jovens praticantes; por outro lado, um contexto de elevada exigência, sempre no limite, tende a desrespeitar os processos biológicos de crescimento e maturação dos indivíduos, levando à inevitável saturação. Deste modo, uma conveniente periodização do treino por parte do treinador pode acautelar situações de desistência e potenciar os efeitos formativos decorrentes da prática numa perspetiva a médio/longo prazo.

Neste âmbito, é consensual entre especialistas a existência de alguns cuidados a ter na seleção do padrão de periodização a adotar no treino de crianças/jovens. Tomemos em consideração os seguintes:

· O modelo de periodização deve ser adaptado à vida escolar (Matveiev, 1982, Tschiene, 1983, citados por Mota, 1988; Stafford, 2005), bem como à vida familiar da criança/jovem (Stafford, 2005). A grande maioria dos jovens praticantes de futebol no nosso país não está inserida em academias profissionais de futebol. Para além disso, a percentagem de jogadores que atingem o alto rendimento é irrisória. Enquanto agentes formadores de cidadãos, os treinadores não devem ignorar esta realidade;

· O que está em causa não é propriamente o rendimento, mas sim a criação dos pressupostos desse rendimento (Mota, 1988; Stafford, 2005; Martin et al., 2008); logo, a criança/jovem não precisa, ao longo do ciclo anual, de atingir picos ou níveis otimizados de forma desportiva (Tschiene, 1983, Weineck, 1983 e Carvalho, 1985, citados por Mota, 1988);

· No período preparatório (pré-época), o objetivo do treino não é tentar o desenvolvimento da forma desportiva que serve para vencer o campeonato, porque o preço a pagar será uma perda de motivação por parte do jovem praticante (Tschiene, 1983, citado por Mota, 1988; Seirul-lo, 1998);

· A alta intensidade associada a exercícios específicos e/ou gerais, por motivos biológicos, pode ser nefasta nos níveis base de formação, visto o fator técnica ainda se apresentar pouco consolidado, surgindo a possibilidade de reter o erro. Nestes escalões, a base de um nível futuro elevado de rendimento deve ser lançada através da dominância do incremento do volume (tempo de treino), não por intermédio do aumento da intensidade (Tschiene, 1983, citado por Mota, 1988; Stafford, 2005; Martin et al., 2008);

· O macrociclo anual (época desportiva) pode ser subdivido numa periodização tripla (três períodos), uma vez que oferece possibilidades de organização favoráveis para um processamento variado do ciclo anual, o que vem ao encontro dos interesses escolares das crianças/jovens (Lewin, 1978, Barbanti, 1979, Raposo, 1979, Berger, 1981 e Freitag, 1982, citados por Mota, 1988);

· É benéfico alterar o tipo ou algumas particularidades da periodização de época para época, de modo a fomentar a adaptação a novas estruturas de treino e a estímulos diversificados, em consonância com as exigências e as necessidades próprias de cada praticante e da competição (Stafford, 2005);

· Nos períodos de férias escolares, deve-se propiciar intervalos profiláticos, que providenciem a recuperação e a regeneração necessárias a jovens praticantes em desenvolvimento (Tschiene, 1983, citado por Mota, 1988; Stafford, 2005). Posto isto, será a frequência regular dos habituais torneios de Natal, Carnaval e Páscoa realmente benéfica para o desenvolvimento integral das crianças/jovens? Não serão estes torneios suplementares um fator de saturação para os jovens e para as respetivas famílias?

Um modelo de periodização assente nestas recomendações está especialmente ajustado às culturas ocidentais, até pela sua adequação à realidade no que diz respeito à matriz de estrutura social vigente. Em síntese, um modelo que se enquadre nos estilos de vida das crianças/jovens e das respetivas famílias é um modelo mais centrado e adaptado ao praticante, o que, em última instância, concorre para uma rentabilização e otimização do processo de formação desportiva e cívica através desta nossa modalidade: o futebol.

Referências
Martin, D., Carl, K. & Lehnertz, K. (2008). Manual de teoria do treinamento esportivo. São Paulo: Phorte Editora.
Mota, J. (1988). A periodização do treino com jovens. Horizonte, 4(23): 163-167.
Seirul-lo Vargas, F. (1998). Planificación a largo plazo en los deportes colectivos. Apuntes del curso de Entrenamiento Deportivo. Canarias: Escuela Canaria del Deporte.
Stafford, I. (2005). Coaching for long-term athlete development: To improve participation and performance in sport. Leeds: Sports Coach UK.

15/12/2013

O peso da vitória

As medalhas. Pareciam chocalhos pendurados ao pescoço a tinir a presunção de vitória. O peso encurvara-lhe o dorso e um dia, devido à ação contínua da gravidade, teria de rastejar. E quando rastejasse, olharia para cima para todas as pessoas vulgares; cumprimentá-las-ia, falando para cima, submisso. Não se importava. Viveria assim o resto da sua vida, só para poder dizer que outrora fora campeão.

Imagem: O peso da vitória (fonte: www.cartoonstock.com).

10/12/2013

Afinal, qual é o “grupo da morte” do Mundial 2014?

Sempre que ocorre uma competição internacional de futebol, tanto quanto sei, tem sido vaticinada a existência de um grupo peculiar de equipas designado “grupo da morte”. Usualmente, é o grupo mais equilibrado em termos de desempenho competitivo e, por inerência, aquele que, em teoria, é de desfecho mais imprevisível.

No que diz respeito ao próximo Campeonato do Mundo de 2014, no Brasil, as opiniões dos selecionadores, dos jornalistas e do público em geral não são consensuais. Uns alegam que o grupo da Espanha é o mais forte, outros que é o grupo da Inglaterra e, outros ainda, que é o grupo da Alemanha e de… Portugal.

Figura: Grupos do Mundial 2014, no Brasil (fonte: www.fifa.com).

Ora, a fim de esclarecer qual é, de facto, o “grupo da morte” do próximo Mundial 2014, resolvi fazer um exercício breve e simples: somar os pontos do ranking FIFA (atualização de 28-novembro-2013) das seleções que compõem os 8 grupos do certame. Este ranking tem em consideração as performances recentes das seleções, extensíveis ao período anterior de 4 anos (ver mais especificações aqui). Eis os resultados obtidos:

- Grupo G: Alemanha (1318), PORTUGAL (1172), Gana (849) e E.U.A. (1019) = 4358
- Grupo B: Espanha (1507), Holanda (1106), Chile (1014) e Austrália (564) = 4191
3º - Grupo D: Uruguai (1132), Costa Rica (738), Inglaterra (1041) e Itália (1120) = 4031
- Grupo C: Colômbia (1200), Grécia (1055), Costa do Marfim (918) e Japão (638) = 3811
- Grupo A: Brasil (1102), Croácia (971), México (892) e Camarões (612) = 3577
- Grupo E: Suíça (1113), Equador (852), França (893) e Honduras (688) = 3546
- Grupo F: Argentina (1251), Bósnia-Herzegovina (886), Irão (650) e Nigéria (710) = 3497
- Grupo H: Bélgica (1098), Argélia (800), Rússia (870) e Coreia do Sul (577) = 3345

Portanto, o “grupo da morte” do Mundial 2014 é, de acordo com o ranking atual da FIFA, o grupo G, ou seja, o de Portugal. A meu ver, talvez até seja bom para a nossa seleção. Por sua vez, o grupo teoricamente mais acessível é o grupo H, embora o grupo E – o da França – não tenha assim tantos pontos a mais. Na sequência da subversão das regras do sorteio, com a consequente passagem da Itália para o Pote 2 por troca com a França, calculo que o presidente da UEFA – monsieur Michel Platini – deva ter ficado radiante.

09/12/2013

A estrada da felicidade

«Se és Ernesto, não podes ser honesto».

Ernesto estava farto daquele dizer. O que tinha o seu nome a ver com honestidade ou falta dela? Desde que nascera, tinham-lhe cravado o cunho. Maldito nome! Ao contrário de qualquer ser humano, Ernesto não podia errar, sob pena de se confirmar a sua desonestidade. Aí, o povo venceria; aliás, o mundo venceria e Ernesto não estava disposto a dar razão a quem não tinha ou não lhe fazia uso.

Que se soubesse, ninguém apresentara razão de queixa de sua pessoa. Era pacato, humilde e demasiado trabalhador. Era daqueles que o bom patrão gostava de ter a seu mandato: fizesse o que fizesse, era bem feito! Pelo menos, até ao dia em que desapareceram dinheiros e ferramentas e surgiu a inevitável suspeita. Nenhuma vivalma o vira a roubar, mas como era Ernesto… apontaram-lhe o dedo.

Esmoreceu-lhe a paciência e quis abalar para longe dali. Na vila, dizia-se que havia gentes a partir para trabalhar numas terras férteis das planícies alentejanas. Pagavam bem e davam teto para dormir. Ernesto não era ladrão, nunca o fora, mas, como uma mentira contada mil vezes, torna-se verdade, decidiu-se logo a apanhar a dita camioneta. Os outros, na esperança de melhores dias, comentavam que iriam pela estrada da felicidade. «Encontrá-la-iam?», perguntava-se Ernesto.

Numa bela manhã de novembro, os primeiros raios de sol abrilhantavam a despedida. Por estes dias, a geada andava de mão dada com a madrugada e tudo parecia cristalino. As pessoas, essas, aglomeravam-se no largo da carreira. Estavam sorridentes, porém batiam o dente. Ernesto não sabia se era do frio ou se do nervoso miudinho provindo do desconhecido, da lonjura ou da própria esperança. Então, no outro lado do largo, lá apareceu a viatura, meticulosamente a tempo e horas. «Assim se faz. Tudo em ordem!», alguém soltou evidentemente satisfeito.

O chauffeur, um homem para meia-idade, apresentou-se como Salvador e solicitou aos passageiros que se identificassem. Trinta e três era o número de dissidentes, de foragidos da agrura da serra e da sua pobreza mercante. Abraços, beijos e lágrimas condimentaram a hora do «adeus, até breve!». Ernesto não deixava ninguém de especial, apenas a desonestidade apregoada desde o dia do seu batismo. Para ele, não havia lágrimas, restavam-lhe as memórias, fossem elas boas ou más. E, assim, tomaram a estrada rumo ao que diziam ser a felicidade.

O branco caiado da serra ia ficando cada vez mais minúsculo à medida que se afastavam. Ernesto sorria, contemplando a beleza outonal das suas origens. O verde mesclado com o castanho e o cinzento do asfalto salpicado pelo desfolhar dos plátanos. Do rádio escutava-se o «1, 2, 3, vou nascer outra vez» dos Ritual Tejo; nem a música podia ser mais apropriada. Preocupava-o, contudo, a velocidade com que tudo ficava para trás e o trajeto não era exatamente retilíneo. Os passageiros conversam animadamente, bem agarrados aos pertences que não depositaram na bagageira. A bordo iam vidas, orgânicas e inorgânicas, literalmente. Talvez por isso, e pela velocidade, a camioneta balouçasse nas curvas.

Mais adiante, algures ainda pela serra, o piso atraiçoou a confiança do Salvador e a camioneta não balançou, deslizou para a berma e precipitou-se por um barranco abaixo. Os gritos, os galhos a quebrar, o rodopio, culminado pelo estrondo do embate final, deram lugar ao silêncio e ao vazio. Momentos… Ernesto flutuava, invadido por uma sensação de paz inexplicável. Uma luz – quiçá salvadora – tomou-lhe o destino. E, enquanto outros jaziam a contorcer-se de dor, Ernesto havia encontrado, inadvertidamente, o seu intento… a mais pura das felicidades.

Imagem: A estrada e a beleza outonal da serra de Monchique (6-dez-2013).