28/05/2020

Artigo do mês #5 – maio 2020 | Períodos sensíveis para treinar capacidades motoras gerais: Uma apreciação crítica

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Van Hooren, B., & De Ste Croix, M.
País: Holanda
Título: Sensitive periods to train general motor abilities in children and adolescents: do they exist? A critical appraisal
Revista: Strength and Conditioning Journal
Referência:
Van Hooren, B., & De Ste Croix, M. (2020). Sensitive periods to train general motor abilities in children and adolescents: do they exist? A critical appraisal. Strength and Conditioning Journal. doi: 10.1519/SSC.0000000000000545 (link)


Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 5 - maio 2020.


Apresentação do problema
As crianças e os adolescentes experienciam inúmeras alterações morfológicas e orgânicas, como consequência de processos de crescimento e maturação, até alcançarem a idade adulta. Os tempos e os ritmos de ocorrência destes processos são, porém, individualizados. Alguns modelos de desenvolvimento de atletas a longo prazo (ver post antigo aqui) têm proposto que, durante a infância e a adolescência, há períodos sensíveis ou “janelas de oportunidades” que são ótimos para treinar e melhorar capacidades motoras gerais, como são, por exemplo, a força ou a velocidade (figura 2).


Figura 2. Períodos sensíveis para treinar capacidades motoras gerais em rapazes (esquerda) e raparigas (direita), de acordo com o modelo LTAD. As caixas com linhas sólidas representam períodos dependentes da idade cronológica, enquanto as caixas com linhas tracejadas representam períodos associados à maturação. As curvas de crescimentos são baseadas em crianças e adolescentes holandeses (fonte: Van Hooren & De Ste Croix, 2020).

Por exemplo, entre os 7 e os 9 anos e entre os 13 e os 16 anos são considerados períodos sensíveis para estimular a velocidade em rapazes, enquanto o treino da capacidade aeróbia é particularmente indicado antes do Pico de Velocidade em Altura (i.e., fase na qual se verifica um ganho máximo em estatura). Acresce a assunção de que treinar capacidades motoras fora destes períodos sensíveis resulta em menores magnitudes de adaptação e, por isso, o efeito na performance é mais reduzido.

No primeiro modelo de desenvolvimento do atleta a longo prazo, proposto em 2005, não foram fornecidas evidências científicas que suportassem a existência de períodos sensíveis. Nos modelos subsequentes, já atualizados, as evidências apresentadas basearam-se, primariamente, na ideia de que o crescimento acelerado e o desenvolvimento maturacional de um dado atributo físico ou capacidade motora geral também conduziriam a uma maior sensibilidade ao processo de treino. Revisões prévias acerca dos períodos sensíveis e da treinabilidade têm sugerido que, no presente, há evidências insuficientes que sustentem a crença que um indivíduo nunca alcançará a sua capacidade atlética máxima geneticamente predeterminada, ou um nível específico de proficiência, durante a idade adulta, se uma capacidade motora geral não for especificamente treinada num hipotético período sensível (Bailey, et al., 2010; Ford et al., 2012; Ford et al., 2011).

Além disso, os períodos sensíveis projetados no modelo LTAD (Long-term Athlete Development) resultaram de estudos transversais (cross-sectional) e de intervenções experimentais de baixa qualidade. Em consequência da adoção abrangente dos períodos sensíveis genéricos e da falta de evidência robusta a favor ou contra esta conceção em revisões anteriores, é necessária uma reavaliação dos ditos períodos sensíveis. Assim, este artigo de revisão teve como propósito produzir uma avaliação crítica do racional e das evidências por detrás dos períodos sensíveis genéricos, recorrendo a estudos recentemente publicados.

Método
Foi utilizada uma síntese narrativa em vez de revisão sistemática, pois poucos estudos têm investigado os efeitos de uma intervenção de treino em grupos de idades (biológicas) diferentes, recorrendo a um grupo de controlo passível de separar os efeitos do treino e da maturação. Portanto, uma revisão sistemática neste tópico seria prematura. De qualquer modo, o processo de pesquisa foi o mais sistemático possível, através de motores de busca da internet, como o Google Scholar e o PubMed, utilizando combinações de palavras-chave para identificar a literatura relevante.

Avaliação crítica dos períodos sensíveis genéricos
Capacidades motoras gerais
Os modelos LTAD frequentemente simplificam/dividem os aspetos físicos do desporto em 5 capacidades motoras gerais: flexibilidade, velocidade, coordenação, resistência e força. Embora esta abordagem reducionista possa ser útil para simplificar a gestão dos cinco construtos físicos supramencionados, implica (incorretamente) que haja capacidades motoras distintas que são treinadas de forma independente, cada qual com os seus períodos sensíveis. Tal simplificação conduz à ideia, por exemplo, de que a velocidade máxima de corrida possa ser melhorada independentemente da coordenação ou da força. Também pressupõe que a maturação de subsistemas envolvidos na coordenação difira (largamente) da maturação dos subsistemas associados à velocidade ou à força, resultando na separação de períodos sensíveis para estas capacidades motoras.

Contudo, evidências científicas recentes (e.g., Buckner et al., 2019; Ellison, Kearney, Sparks, Murphy, & Marchant, 2018; Yeung et al., 2018) têm colocado em causa a conceção de capacidades motoras gerais, uma vez que cada habilidade motora é determinada por uma integração complexa de capacidades que são parcialmente específicas da tarefa. Segundo esta linha de raciocínio, pode-se questionar se os períodos sensíveis para as capacidades motoras gerais existem, de facto, ou se devem ser específicos para cada tarefa motora, ou, pelo menos, para grupos de ações motoras com características muito similares (Figura 3).

Figura 3. Abordagem reducionista com as variáveis latentes (em cima) e abordagem holística baseada na análise de rede (em baixo) para períodos sensíveis (fonte: Van Hooren & De Ste Croix, 2020).

Métodos de treino para melhorar as capacidades motoras gerais
O segundo problema prende-se com a falta de informação sobre os métodos de treino que devem ser utilizados durante os períodos sensíveis propostos. Nos artigos que suportam a utilização de modelos LTAD não é claro se, por exemplo, a velocidade (sprint) deve ser estimulada, durante os períodos sensíveis, mediante treino específico de sprint, treino pliométrico ou de força. Um estudo de Moran e colaboradores (2018) demonstrou que o treino de sprint em jovens praticantes de futebol, proposto na fase pré Pico de Velocidade em Altura (PVA), foi ligeiramente mais efetivo para melhorar a velocidade máxima de corrida e a capacidade de mudança de direção, que durante o PVA (i.e., fase coincidente ao primeiro e ao segundo períodos sensíveis para trabalhar a velocidade no modelo LTAD). Adicionalmente, Armstrong e Baker (2011) verificaram, numa revisão que somente incluiu estudos que aplicaram estímulos de treino que resultaram em incrementos no VO2máx., resultados aproximadamente iguais em crianças com menos de 11 anos e outras com mais de 11 anos (7,7 vs. 8,6%, respetivamente). Estes e outros estudos sugerem que certas ações motoras ou capacidades motoras derivadas são apenas extrassensíveis a determinados métodos de treinos e não a todos os que potencialmente possam ser empregues para trabalhar a ação motora ou a capacidade motora genérica visada.

Características do método de treino durante os períodos sensíveis
Os modelos de desenvolvimento do atleta fornecem poucas linhas orientadoras sobre as características dos métodos de treino, embora este seja um fator que também influencia a eficácia do treino (Lesinski, Prieske, & Granacher, 2016; Otero-Esquina, de Hoyo Lora,
Gonzalo-Skok, Dominguez-Cobo, & Sanchez, 2017). Não é claro se, por exemplo, uma sessão de treino extra por semana é suficiente nos ditos períodos sensíveis, ou se o treino específico deve ser incluído durante ou após o aquecimento em todas as sessões de treino.

Uma meta-análise com jovens atletas femininas evidenciou que variáveis do programa de treino, como o número de sessões semanais e a duração da sessão, afetaram a eficácia do treino pliométrico na altura do salto (Moran, Clark, Ramirez-Campillo, Davies, & Drury, 2018). Uma outra investigação de Rodriguez-Rosell, Franco-Marquez, Mora-Custodio e Gonzalez-Badillo (2017) demonstrou que o treino combinado de pliometria e força foi mais efetivo em jovens praticantes de futebol Sub-13 (≈ pré PVA), do género masculino, perdendo eficácia com o incremento da idade cronológica (figura 4). Como último exemplo, uma combinação de treino de jogos reduzidos/condicionados e HIIT (high-intensity interval training) mostrou ser mais efetivo para melhorar parâmetros da performance física, como o VO2pico, em praticantes de desportos de equipa com 13 anos, comparativamente à utilização exclusiva de jogos reduzidos (Harrison, Kinugasa, Gill, & Kilding, 2015).

Figura 4. Treino de pliometria com jovens praticantes de futebol (fonte: chriswinstone.wordpress.com).
(imagem não publicada pelos autores)

Os resultados dos estudos aqui sumarizados sugerem que as características dos métodos e dos exercícios propostos (e.g., tipo de estímulo, carga de treino, duração, repetições, séries, tempos de recuperação, etc.) são de enorme importância para induzir adaptações ao treino, melhorar a performance desportiva e gerir a maior suscetibilidade de lesões agudas e crónicas, no decurso dos hipotéticos períodos sensíveis.

O efeito da experiência anterior de treino e as diferenças individuais
Os modelos propostos também não clarificam se os períodos sensíveis e os respetivos conteúdos diferem entre indivíduos, com níveis de experiência e background de treino distintos. Atletas com menos experiência em programas de treino estruturados e com menos proficiência técnica tendem, na generalidade, a realizar exercícios menos avançados que outros desportistas mais novos, mas tecnicamente mais competentes e com mais experiência de treino (Lloyd et al., 2016). Assim, por exemplo, um atleta de 17 anos sem experiência de treino de força realizará, numa fase inicial, treino com cargas baixas antes de passar para o trabalho com cargas mais elevadas, o que potencialmente não lhe permitiria capitalizar (otimamente) o treino no período sensível para a força.

Os jovens atletas podem ser mais ou menos responsivos a um método de treino específico, dependendo também da sua predisposição genética. Esta predisposição genética, em conjunto com a experiência de treino prévia, limitam de sobremaneira a generalização dos períodos sensíveis para as diferentes capacidades motoras.


Consequências do treino não específico durante o período sensível
As consequências de se aplicar treino não específico de uma dada capacidade motora durante os períodos sensíveis parece ser ignorado pelos modelos já referidos. No entanto, é relevante questionar até que ponto é possível treinar capacidades motoras genéricas, em jovens que participam regularmente no desporto, através de métodos não específicos. No futebol tem sido reportado que a prática de jogos reduzidos (figura 5) produz melhorias em parâmetros da resistência (VO2máx), da velocidade (sprint de 20 metros) e da potência muscular (salto vertical) (Engel, Ackermann, Chtourou, & Sperlich, 2018; Hammami, Gabbett, Slimani, & Bouhlel, 2017; Ramizer-Campillo et al., 2018). De modo análogo, tem sido demonstrado que o treino de força promove incrementos em medidas da resistência, como a economia de corrida (Barnes & Kilding, 2014), da velocidade (Sander, Keiner, Wirth, & Schmidtbleicher, 2013) e no desempenho de mudanças de direção (Keiner, Sander, Wirth, & Schmidtbleicher, 2014).

Figura 5. Jogos reduzidos como atividades não específicas para o treino de capacidades motoras gerais. (imagem não publicada pelos autores)

Aplicações práticas
No cômputo geral, as evidências indicam que cada habilidade motora e capacidade motora derivada podem ser treinadas através de variados métodos, sendo que cada método é potencialmente mais eficaz em diferentes estádios de desenvolvimento. A efetividade do método depende das características do treino (e competição) e difere entre indivíduos de idade biológica similar, mas que apresentam experiências prévias e predisposições genéticas muito particulares. Por si só, estes factos colocam em causa a validade dos períodos sensíveis genéricos postulados em modelos de desenvolvimento a longo prazo.

Assim, os treinadores não se devem basear nestes períodos sensíveis genéricos, mas sim trabalhar todos os atributos físicos do atleta, segundo critérios lógicos e equilibrados, ao longo das fases de desenvolvimento. Tal não implica que alguns métodos de treino não possam ser priorizados ou mitigados em certos períodos (e.g., dar primazia ao treino de coordenação motora durante o PVA, precisamente quando esta capacidade se encontra comprometida e o risco de lesão aumentado).

Conclusão
Este foi o primeiro estudo que produziu uma avaliação crítica do racional por detrás dos períodos sensíveis genéricos, amplamente adotados no treino de jovens atletas. Os problemas teóricos ora identificados fornecem evidências mais fortes do que as críticas anteriormente realizadas, ao ponto de questionar a validade deste constructo. Os profissionais do treino desportivo não devem, por isso, sustentar as suas práticas com crianças/jovens pressupondo a existência de períodos sensíveis genéricos.


P.S.:
1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;
2-  Para melhor compreender as ideias referidas neste texto, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada no Strength and Conditioning Journal.

23/05/2020

Crónica de uma morte anunciada (1981), de Gabriel García Márquez

Esta foi a primeira obra que li de Gabriel García Márquez, prémio Nobel da Literatura em 1982. Na contracapa do livro, ou pelo menos naquela da 18.ª edição publicada pela D. Quixote (figura 1), a citação do autor colombiano é extremamente interessante: classifica o romance como o melhor, não por ser o último, mas aquele em que conseguiu fazer exatamente o que queria. Sinceramente, não me recordo de ter lido outro livro em que, à partida, sabemos qual é o final da história, só não sabemos o que levou ao fatídico desenlace. Esse aspeto, longe de tornar o livro desinteressante, ainda reforçou mais a minha curiosidade e a leitura acabou por ser muito agradável e fluente.

Figura 1. Capa do livro “Crónica de uma morte anunciada”, publicado pela D. Quixote.

Na minha perspetiva, há duas palavras em torno das quais gira o enredo: honra e moral. A honra é o aspeto nuclear do romance, na medida em que é a desonra de Angela Vicario, manifestada na sua noite de núpcias, que determina que os irmãos (gémeos) Pedro e Pablo Vicario assassinem Santiago Nasar. Matam-no por uma questão de honra da família.

Ela demorou tão-só o tempo necessário para dizer o nome. Procurou-o nas trevas, encontrou-o à primeira vista entre tantos e tantos nomes confundíveis deste mundo e do outro, e deixou-o espetado na parede com o seu dardo certeiro, como a uma borboleta sem vontade própria cuja sentença estava escrita desde sempre.
(p. 46)

Daqui resulta a importância da moralidade ou falta dela. Angela Vicario personifica a desonra e a imoralidade, pois condenou Santiago à morte, quando tudo indica que não foi ele que lhe retirou a virgindade e, para além disso, ela nunca se predispôs a levantar o véu em relação ao mistério. Angela narrava a história da sua noite de núpcias a quem quisesse ouvi-la até ao pormenor, menos aquele que nunca haveria de ser declarado: quem foi, como e quando, o verdadeiro causador da sua desonra – as amigas contavam “disse-nos o milagre mas não o santo.” (p. 90) –, pois ninguém acreditou que tivesse sido realmente Santiago. Segundo o narrador e amigo do protagonista, “Nunca ninguém os viu juntos, e muito menos sozinhos. Santiago Nasar era orgulhoso de mais para reparar nela.” (p. 81)

Os gémeos encarnam a imoralidade do homicídio premeditado e a todos anunciado. Passado pouco tempo, ao morrer o pai Poncio Vicario, o narrador explica que “levou-o a dor moral.”, quiçá provocada pelas malfeitorias dos descendentes. O resto da imoralidade é partilhado pelas gentes da vila:

Mas a maioria das pessoas que teriam podido fazer alguma coisa para impedir o crime e no entanto não fizeram, consolaram-se com o pretexto de que os assuntos de honra são arquivos sagrados a que só têm acesso os donos do drama.
(p. 87-88)

Muitos sabiam que iria haver crime, poucos o tentaram evitar, mas, quando o juiz de instrução foi apurar os factos, havia uma multidão para fazer declarações sem ser convocada. A hipocrisia e o preconceito emergem como qualidades daquilo que não é moral. Reparem que, por exemplo, o presidente da câmara – o coronel Lázaro Aponte –, preocupou-se muito com os boatos acerca dos árabes, a propósito de uma presumível retaliação pela morte de Santiago, “mas nenhum alimentava propósitos de vingança.” (p. 75) Aliás, para o jovem juiz, tal como para os amigos, o comportamento de Santiago Nasar nas últimas horas de vida era a prova cabal da sua inocência. Numa nota relevante do processo de instrução, o juiz faz uma alusão tácita à questão do preconceito: “Dai-me um preconceito e moverei o mundo.” (p. 90)

A imoralidade comunitária, se assim pode ser mencionada, aparece bem destacada pelo narrador na página 105, ao expor que os criminosos Pedro e Pablo Vicacio “não ouviram os gritos da vila inteira espantada com o seu próprio crime.” Portanto, o delito não se circunscreveu àqueles que explicitamente o executaram.

Vale bem a pena a leitura!

17/05/2020

Julian Brandt deu o mote no regresso do futebol de alto nível

Ontem, o futebol profissional regressou e Julian Brandt, o médio ofensivo do Borussia Dortmund, brilhou, mesmo não sendo considerado o melhor em campo no dérbi alemão diante do Schalke 04 (4-0). O jovem de 24 anos, transferido do Bayer Leverkusen, por 25M€, tinha feito uma média de 39 minutos por jogo nos últimos cinco compromissos oficiais, três deles como titular substituído e dois como suplente utilizado. A paragem forçada, devido ao COVID-19, parece que foi bem aproveitada pelo rapaz (figura 1). Talento não lhe falta!

Figura 1. Julian Brandt contra o Schalke 04 (fonte: Lance!).

Esteve em todas as jogadas da sua equipa que resultaram em golo (duas assistências). Revelou inteligência para procurar espaços livres no corredor central e no corredor lateral para ligar jogo entre setores ou com companheiros do meio-campo. Pautou o ritmo de jogo ofensivo com um rigor assinalável, recorrendo a ações específicas simples, mas eficazes. Não fez uma exibição perfeita, pois teve os seus erros, mas andou lá perto. Vejamos:

Borussia Dortmund 1 x 0 Schalke 04 (28’)
Muito perspicaz o modo como procurou o espaço entre linhas no corredor lateral para receber o passe de Piszczek e, com um toque subtil, desmarcar Thorgan Hazard que viria a fazer a assistência para o golo de Haaland.


Borussia Dortmund 2 x 0 Schalke 04 (45’)
Antes de realizar a assistência para Raphael Guerreiro, a temporização é de craque (1). Reparem que se não temporiza, dificilmente o português bateria o defensor em velocidade (2); se temporiza em demasia pode, face à perceção que dispõe do envolvimento imediato, colocar o companheiro de equipa em fora-de-jogo. O passe foi executado com a direção e a força ideais.


Borussia Dortmund 3 x 0 Schalke 04 (48’)
Recebeu o passe de Hummels e deu a melhor sequência ao contra-ataque. Primeiro, efetuando combinação tática direta com Haaland, depois a fixar os apoios do único defensor enquadrado (1), excluindo o guarda-redes e, finalmente, a colocar a bola em zona propícia para finalização (2). T. Hazard nem precisou de rececionar para rematar para golo.


Borussia Dortmund 4 x 0 Schalke 04 (63’)
Brandt, bem posicionado, ganhou a segunda bola, fletiu em drible para o corredor central (1) e, aproveitando a basculação da equipa do Schalke 04, variou o lado do centro do jogo, respeitando a progressão do lateral Raphael Guerreiro (2). O português associou-se com Haaland para marcar o último golo da equipa.


Breves pormenores individuais
Porém, nem só de ações com sucesso vive o jogo. Exemplo disso aconteceu aos 60’, quando numa outra tentativa de contra-ataque, Brandt leu convenientemente o contexto, identificou a melhor oportunidade de ação disponível (i.e., passe de rotura para Haaland), acelerou o ritmo ofensivo como o jogo pedia, mas a execução não correspondeu à pretensão do médio germânico. Outro pormenor individual delicioso ocorreu aos 71’: num passe por alto de Hummels para o corredor central, Brandt descongestionou o jogo para o corredor livre, com um soberbo toque de calcanhar ao primeiro toque.


O camisola 19 do Borussia Dortmund deu o mote para a qualidade no regresso do futebol profissional. Torço para que o rendimento deste jovem continue a fazer jus ao enorme talento que possui.

Saúde!

05/05/2020

Limitar o número de toques no exercício de treino de futebol: uma condicionante como as outras

Este texto surge na sequência de conversas e debates que tenho assistido neste período de quarentena. Se é real que esta pandemia tem sido nefasta, as medidas de confinamento implementadas também têm concedido tempo a muitas pessoas para refletir sobre as suas práticas profissionais e pessoais, e para se instruírem.

Em particular, no que respeita ao processo de treino, ou de ensino-aprendizagem, no futebol, tenho constatado que ainda subsistem muitos fundamentalismos em relação à conceção do exercício de treino: “não faço situações analíticas!”, “o uso de escadas de agilidade é proibido, só queremos futebol” ou “nunca imponho limite de toques no futebol de formação”. Se há coisa que tenho aprendido ao longo dos anos é a não adotar perspetivas extremistas, porque o futebol, como qualquer outra modalidade desportiva, não se pauta por metodologias pretas ou brancas, há que considerar toda a escala de tons cinzentos. A “prudência” é uma palavra-chave que não se coaduna com a palavra “nunca”.

Há uns anos, José Mourinho foi taxativo a afirmar que nunca promovia os designados “treinos-conjunto” (i.e., situações de jogo Gr+10v10+Gr em campo inteiro) nos seus microciclos. Ele justificou serem treinos generalistas e que não permitiam exacerbar determinados princípios de jogo que pretendia otimizar (Oliveira, Amieiro, Resende, & Barreto, 2006). Por um lado, é um ponto de vista válido, que produziu os resultados que todos conhecemos e que suporta a criação de atividades jogadas que impliquem a execução de comportamentos/ações, individuais ou coletivas, desejados pelo treinador. Por outro lado, será que as situações de jogo Gr+10v10+Gr devem ser totalmente descartadas do processo de treino? Não me parece sensato, quanto mais não seja por ser o meio que melhor representa, em termos de dificuldade e complexidade da tarefa, as condições de prática encontradas em competição. Por exemplo, pode ser utilizado para aferir o grau de cumprimento de ações e princípios previamente potenciados em exercícios que funcionem como “atractores do comportamento” (para mais detalhes, recomendo que leiam este excelente artigo de Rui Freitas).

Colocando o enfoque na limitação do número de toques (figura 1), urge compreender que uma condicionante do exercício ou um constrangimento da tarefa, para aqueles mais identificados com a Abordagem Baseada nos Constrangimentos, é tão-só impor restrições aos comportamentos específicos permitidos pelas Leis do Jogo, em conformidade com a lógica interna da modalidade. Decorre que, ao limitarmos a manifestação de umas ações, estaremos a facilitar ou a enfatizar a execução de outras. Esta é uma ferramenta fulcral para o desempenho da função de treinador, devendo ser uma das suas principais preocupações adequar a tarefa proposta às necessidades e às capacidades (nível de prática) dos praticantes.

Figura 1. Exemplo de um jogo reduzido Gr+4v4+Gr (30x20m; 60 m2/jogador), com a adição da limitação do número de toques por intervenção sobre a bola.

Não fará de todo sentido impor um limite de toques a crianças Traquinas (Sub-8), cuja relação individual com a bola seja deficitária, pois o estímulo que precisam é exatamente o inverso. Segundo esta lógica, um Juvenil (Sub-16), com uma boa relação com a bola, poderá necessitar da limitação do número de toques se, aquando do momento de recuperação da posse, não dissocia o olhar do solo e progride, sistematicamente, para contextos de insucesso por desvantagem numérica. Admito que faço uso da limitação do número de toques, uma vez que defendo que a aplicação ponderada desta condicionante proporciona oportunidades de ação aos praticantes – as designadas “affordances” –, que, contrariamente, não seriam tão exploradas.

A literatura científica tem demonstrado que condicionar a intervenção de jogadores profissionais e semiprofissionais a um toque sobre a bola, comparativamente a contextos de jogo livre, tende a reduzir a eficácia da ação de passe e o número de duelos 1v1, no entanto, aumenta as exigências de movimento (distâncias percorridas em atividade de alta intensidade e sprint) e a capacidade de antecipar e ocupar espaços vazios antes dos defensores (Lemoine, Jullien, & Ahmaidi, 2005; Dellal, Chamari, Owen, Wong, Lago-Peñas, & Hill-Haas, 2011). No futebol de formação, há evidências de que jogar a dois toques por intervenção sobre a bola induz os jovens (no caso, Sub-13) a ler o jogo, tomar decisões e executar ações motoras de forma mais célere, sendo o envolvimento coletivo significativamente superior em relação ao mesmo formato de jogo disputado sem limite de toques (Almeida, Ferreira, & Volossovitch, 2012).

Acima de tudo, a introdução de quaisquer condicionantes/constrangimentos na prática deve estar associada à formulação das seguintes questões: "para quê?" (objetivo), "quando"? (parte da sessão ou microciclo) e "durante quanto tempo?" (dose/duração). É óbvio que não é profícuo passar uma sessão de treino ou um microciclo inteiro a trabalhar sobre as mesmas condições, pois produzem situações artificiais que, se subreutilizadas, criam maus hábitos (Paul, 2005; figura 2). Jogar só a dois toques/intervenção pode desenvolver um fantástico jogo de passe, porém, os jogadores não aperfeiçoam habilidades para resolver duelos 1v1. Na mesma linha de raciocínio, propor apenas jogos de dimensões reduzidas fomenta a adoção de um estilo de jogo apoiado, mas os jogadores não ficam afinados para procurar e utilizar espaços livres em profundidade, ou aptos para evidenciar uma linha defensiva coordenada no controlo do espaço em profundidade, sobretudo no futebol de 11. Tem de haver uma lógica subjacente aos objetivos definidos e à progressividade dos conteúdos, seja em qualquer nível do futebol sénior (amador, semiprofissional e profissional), como no futebol de formação.

Figura 2. Citação de Larry Paul (2005), presente no seu livro sobre o modelo de treino baseado nos jogos reduzidos.

Em suma, o processo de treino visa o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de comportamentos individuais ou coletivos, mais ou menos relevantes em função do contexto no qual estamos inseridos. Preparar um jogador para competir é dotá-lo de competências para lidar com as mais diversas circunstâncias com que se poderá deparar. Neste sentido, uma condição imposta num exercício, embora impossibilite temporariamente a execução de uma ação que o jogo pede, pode abrir graus de liberdade no futuro, contribuindo para a formação integral e/ou para o aumento do rendimento do praticante. O que importa é que o treinador encare o fenómeno de maneira a que haja adequabilidade (tarefa-praticante), representatividade (em relação ao jogo formal), coerência (objetivos, condicionantes e exercícios) e progressividade (lógica evolutiva dos conteúdos), mas não sejamos radicais: nem tanto à terra, nem tanto ao mar.


Referências
Almeida, C. H., Ferreira, A. P., & Volossovitch, A. (2012). Manipulating task constraints in small-sided soccer games: Performance analysis and practical implications. The Open Journal of Sports Sciences, 5, 174–180. doi: 10.2174/1875399X01205010193
Dellal, A., Chamari, K., Owen, A. L., Wong, D. P., Lago-Peñas, C., & Hill-Haas, S. (2011). Influence of technical instructions on the physiological and physical demands of small-sided soccer games. European Journal of Sport Science, 11(5), 341–346. doi: 10.1080/17461391.2010.521584
Lemoine, A., Jullien, H., & Ahmaidi, S. (2005). Technical and tactical analysis of one-touch playing in soccer – study of the production of information. International Journal of Performance Analysis in Sport, 5(1), 83–103. doi: 10.1080/24748668.2005.11868318
Paul, L. (2005). Playing better soccer is more fun: a complete guide to the small-sided games coaching model. Springfield, VA: Accotink Press.
Oliveira, B., Amieiro, N., Resende, N., & Barreto, R. (2006). Mourinho – Porquê tantas vitórias? Lisboa: Gradiva.