31/10/2025

Artigo do mês #70 – outubro 2025 | Quais os fatores que perturbam a concentração dos futebolistas? Uma investigação sobre as opiniões de treinadores de seleções nacionais jovens

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Maurin, M., Leprince, C., Carling, C., Lachaux, J-P., & Martinent, G.

País: França

Data de publicação: 9-outubro-2025

Título: Which factors disrupt football players’ concentration? A qualitative investigation into the opinions of national youth team coaches

Referência: Maurin, M., Leprince, C., Carling, C., Lachaux, J-P., & Martinent, G. (2025). Which factors disrupt football players’ concentration? A qualitative investigation into the opinions of national youth team coaches. Journal of Sports Sciences, 1–13. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/02640414.2025.2569238

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 70 – outubro de 2025.

 

Apresentação do problema

Para Arsène Wenger, atingimos o limite da velocidade física e, por isso, “o próximo fator de mudança será a neurociência”, por definir o futuro da tomada de decisão, da execução e da coordenação no futebol (Lewis, 2020). Esta perspetiva destaca a atenção e a concentração como pilares essenciais do desempenho.

 

Atenção e concentração: explorar a linha ténue

A atenção e a concentração são conceitos interligados, mas distintos. A atenção corresponde ao processo de seleção e priorização de estímulos do ambiente, direcionando a perceção para pistas relevantes à tomada de decisão e à execução motora (Goldstein, 2008; Bahmani et al., 2019; Magill & Anderson, 2014). A concentração, por sua vez, traduz a integração entre perceção, intenção e ação – uma orquestração tridimensional em que o comportamento se orienta totalmente para um objetivo (Lachaux, 2020).

Neste processo, a intenção define o propósito da ação e determina a hierarquia entre perceções e respostas relevantes ou irrelevantes (Peelen & Kastner, 2014). Assim, intenções mal definidas comprometem a concentração e, consequentemente, o desempenho. A concentração, portanto, não se limita à atenção: envolve a articulação entre perceber, decidir e agir de forma coordenada, assumindo-se como um ingrediente determinante para a performance desportiva (Moran, 2008). 

De acordo com a Meshed Control Theory, esta interação pode ser analisada em níveis estratégico-cognitivos e automáticos de controlo (Christensen et al., 2016), o que estabelece uma via promissora para compreender como os jogadores alcançam estados ótimos – ou se veem perturbados – em contextos reais de jogo.

 

Investigação sobre atenção e concentração no desporto e no futebol

Os estudos mostram que atletas experientes apresentam melhores competências percetivo-cognitivas (Mann et al., 2007) e estratégias atencionais mais eficazes (Roca et al., 2011) do que os principiantes. No futebol, a atenção tem sido sobretudo estudada em contextos laboratoriais, em tarefas fechadas como as grandes penalidades (Savelsbergh et al., 2005; Wood & Wilson, 2010, 2011) e em cenários mais dinâmicos (Roca et al., 2011, 2013). Os jogadores mais experientes focam-se mais em adversários e espaços livres, com fixações visuais mais breves e direcionadas (figura 2).

 

Figura 2. A atenção e a concentração são essenciais em contextos competitivos (fonte: neurotracker.com; imagem não publicada pelos autores).


Recentemente, o conceito de scanning (i.e., varrimento visual) ganhou destaque. Trata-se de movimentos de cabeça intencionais para recolher informação relevante antes de uma ação com bola (Pokolm et al., 2022). Os futebolistas que mais varrem o envolvimento tendem a realizar mais passes eficazes (Jordet et al., 2013). No entanto, a frequência de scanning diminui em cenários de elevada pressão (Jordet et al., 2020). Em contextos de ansiedade competitiva, como nas grandes penalidades, os processos atencionais podem ser comprometidos (Beilock & Carr, 2001; Eysenck et al., 2007). 

Além disso, as limitações metodológicas, como o uso de dispositivos eye-tracking, dificultam a investigação em ambientes reais. Por essa razão, têm sido utilizadas abordagens qualitativas para explorar focos atencionais e vivências subjetivas de jogadores em momentos críticos (Bahmani et al., 2019; Gesbert et al., 2017). Ainda assim, são raros os estudos que analisam conteúdos atencionais internos e externos em diversos contextos de jogo, bem como a visão experiente dos treinadores sobre os fatores que mais influenciam a concentração no futebol.

 

O presente estudo

Este estudo teve como objetivo identificar, a partir das opiniões de treinadores principais, as situações e fatores que mais afetam a concentração dos jogadores durante os jogos. Partindo da premissa de que a concentração assume um papel mais relevante em certos momentos do jogo, procurou-se reconhecer os contextos críticos em que a sua perturbação pode influenciar o desempenho e o resultado competitivo.

 

Métodos

 

·     Posicionamento ontológico e epistemológico

O estudo seguiu uma perspetiva realista crítica (Maxwell, 2012), combinada com uma epistemologia construtivista. Assume-se que o conhecimento é construído e influenciado pela interpretação dos investigadores (Levers, 2013), sendo teórico e falível (Ronkainen & Wiltshire, 2021).

 

·     Participantes

Foram incluídos 12 selecionadores nacionais das equipas jovens masculinas (Sub-15 a Sub-20) e femininas (Sub-15 a Sub-23) da França (8 homens e 4 mulheres; idade média = 48,8 anos; experiência internacional média = 7,5 anos). Todos aceitaram participar voluntariamente. A maioria possui experiência adicional em ambientes de futebol de elite (ex-jogadores profissionais, treinadores de clubes, diretores de academias).

 

·     Procedimentos

O estudo foi aprovado pela comissão de ética (CERSTAPS N°IRB00012476-2024–28-05–316). Os treinadores deram consentimento informado após reunião de apresentação na Federação Francesa de Futebol. Realizaram-se 12 entrevistas semiestruturadas: 4 presenciais e 8 online (duração média: 31,3 minutos). A saturação de dados foi atingida após 10 entrevistas, mas as restantes foram realizadas conforme o protocolo. As entrevistas basearam-se num guião aberto (Martinent & Ferrand, 2009), preparado por 4 especialistas em psicologia do desporto e técnicas de entrevista. As perguntas focaram situações de jogo, momentos críticos e fatores que afetam a concentração dos jogadores.

 

·     Análise de dados

Transcreveram-se as entrevistas (corpus: 94 páginas). Usou-se análise temática indutiva (Braun & Clarke, 2006). Extraíram-se 338 unidades elementares de significado, que foram agrupadas por similaridade para formar temas emergentes (Patton, 2002). A análise passou por 5 fases:

1. Codificação individual das unidades elementares de significado (Martinent & Ferrand, 2015).

2. Agrupamento temático e revisão contínua das hierarquias (Giacobbi et al., 2004).

3. Análise grupal para identificar temas centrais (Uphill & Jones, 2007).

4. Definição clara dos temas, subtemas e categorias (Braun & Clarke, 2006).

5. Contagem das unidades elementares de significado por categoria e cálculo de proporções.

 

·     Fidelidade e triangulação

Foram adotadas várias estratégias para reforçar a confiança nos dados (Patton, 2002; Giacobbi et al., 2004). O primeiro autor aplicou perguntas abertas e escuta ativa, por forma a garantir o anonimato e a ausência de julgamentos. Na triangulação, 5 investigadores participaram da análise. Dois grupos codificaram 6 entrevistas (3 por grupo), e o autor principal também as analisou separadamente. As decisões foram validadas em reuniões de consenso. As entrevistas restantes foram analisadas pelo primeiro autor, com supervisão externa de 2 investigadores universitários independentes.

 

Principais resultados

Os treinadores nacionais inquiridos identificaram 6 grandes categorias de fatores que perturbam a concentração dos jogadores de futebol durante os jogos, com base em 338 unidades elementares de significado. Cada categoria reflete dimensões distintas, com impacto variável na performance.

 

·     Fatores pessoais (7,10%)

Referem-se ao estatuto individual do jogador face à equipa (ex. ser suplente ou estrela), aspetos da vida pessoal e crenças negativas. Estas condições internas podem afetar a capacidade de manter o foco competitivo.

 

·     Fatores relacionados com o treino diário (2,37%)

Incluem preparação deficiente, rotina excessiva e dificuldades em manter a concentração em sessões de vídeo ou reuniões técnicas. Embora pouco citados, revelam que a semana de treino condiciona a prontidão mental no jogo.

 

·     Fatores contextuais (8,88%)

Abrangem elementos antes ou durante o jogo que, embora externos à ação em campo, afetam a concentração: jogos com adversários mais fracos, condições meteorológicas adversas ou ambientes hostis nas bancadas.

 

·     Fadiga (13,61%)

A fadiga física e mental foi amplamente referida, especialmente no final de cada parte e durante fases de jogo prolongadas ou períodos competitivos intensos. A exaustão compromete os recursos cognitivos disponíveis para manter o foco.

 

·     Fatores situacionais (16,86%)

Incluem ruminância emocional (como reagir a erros, decisões do árbitro ou críticas do treinador) e cenários específicos de jogo (como liderar o marcador, sofrer golos tardios ou ser dominado em campo), que desviam o foco da tarefa.

 

·     Ritmo de jogo (51,18%)

A categoria mais referida. Engloba interrupções e retomas controladas pelo árbitro (ex. golos, substituições, inícios de parte), bolas paradas (ex. cantos, lançamentos) e alterações rápidas de ritmo (ex. transições defensivas, bolas perdidas). Nestes momentos, os jogadores revelam maior vulnerabilidade à distração e menor capacidade de reorientar a atenção rapidamente.


Aplicações práticas

Com base nos testemunhos de treinadores das seleções nacionais jovens francesas, foram identificadas 4 aplicações práticas fundamentais para a otimização da concentração dos jogadores em jogo. As recomendações incidem nos momentos críticos que mais perturbam o foco dos futebolistas e sugerem formas concretas de os integrar no treino.

 

1. Treinar interrupções, reinícios e bolas paradas com intenção clara: os momentos após interrupções – como cantos, lançamentos, livres ou golos – são dos mais suscetíveis a quebras de concentração. As equipas técnicas devem simular estas situações em treino, com reinícios rápidos e objetivos definidos para cada reposição. Para além disso, deve ser incutida nos jogadores uma intenção clara antes de cada bola parada, de modo que perceção, decisão e ação se articulem de forma natural e coordenada. 

2. Criar contextos de instabilidade emocional para testar o foco: o treinador deve introduzir no treino cenários situacionais extremos, como estar a ganhar por larga margem ou a perder nos últimos minutos. Estas condições ajudam os jogadores a manter a concentração quando a tendência emocional é dispersiva, o que previne quebras individuais ou colapsos coletivos em jogo. 

3. Gerir a influência do treinador – menos instruções, mais autorregulação: encoraja-se uma redução do número de instruções verbais em momentos decisivos para evitar sobrecarga cognitiva. Devem ser incluídos períodos de silêncio intencional para avaliar a capacidade de concentração autónoma dos jogadores. A equipa técnica deve ainda favorecer a leitura e correção mútua entre companheiros de equipa, no intuito de fomentar uma cultura de foco partilhado. 

4. Manipular o ritmo de jogo com constrangimentos específicos: sugere-se a estruturação de exercícios com variações abruptas de ritmo e transições rápidas entre ataque e defesa. Para tal, os treinadores podem introduzir regras condicionais (e.g., jogar com menos um após sofrer um golo) que estimulem a manutenção da concentração em fases particularmente exigentes, como as segundas bolas ou as mudanças rápidas de espaço.

 

Conclusão

As entrevistas com treinadores principais das seleções nacionais de futebol de França revelaram que os fatores relacionados com o ritmo de jogo (e.g., bolas paradas, interrupções longas) correspondem aos momentos em que os jogadores estão mais vulneráveis em termos de concentração. As evidências incentivam os investigadores e os treinadores a aprofundar o estudo destas situações, dado o seu potencial impacto no desfecho das partidas. A colaboração entre cientistas da área e os treinadores poderá favorecer a adoção de comportamentos de treino mais adequados, bem como a co-construção de métodos a integrar nas sessões de treino para otimizar a concentração dos jogadores.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.

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