16/03/2024

P'las Veredas de Monchique 2023/24 | Percurso Pedestre das Cascatas + Rota das Adelfeiras (10-mar-2024)

Há alguns anos que ando - literalmente! - nestas lides. Contudo, raras foram as ocasiões que me permitiram desfrutar dos 19,2 km realizados na Foia, como no passado domingo. 

Porquê? Por causa da água com que nos deparámos ao longo de todo o percurso. Não me lembro de ter descido o trilho dos castanheiros da Foia, no sentido do Penedo do Buraco, pelas bermas do mesmo, caso contrário ficaria com os pés encharcados. O trilho era o que outrora fora: um curso de água. 

As cascatas do Penedo do Buraco e do Chilrão, praticamente secas durante todo o ano, voltaram a mostrar-nos resquícios do passado: resplandecentes, refrescantes e cristalinas (figuras 1 e 2).

 

Figura 1. Cascata do Penedo do Buraco, Foia, Monchique, Portugal (10-mar-2024).

 

Figura 2. Cascata do Chilrão, Monchique, Portugal (10-mar-2024).

 

Uma vez que estes momentos podem ser cada vez mais efémeros, em seguida deixo-vos um vídeo com breves imagens da cascata do Chilrão para a posterioridade. O que foi, talvez nunca o voltará a ser do mesmo modo. A água, essa, a existir, procurará sempre os caminhos que lhe pertencem por direito.


26/02/2024

Artigo do mês #50 – fevereiro 2024 | Proposta ecológica para o desenvolvimento da habilidade e da performance no treino de guarda-redes de futebol: Evidências empíricas e aplicações para o treino

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto. 

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Autores: Modric, T., Carling, C., Lago-Peñas, C., Versic, Š, Morgans, R., & Sekulic, D.

País: Suécia

Data de publicação: 31-janeiro-2024

Título: An ecological approach for skill development and performance in soccer goalkeeper training: Empirical evidence and coaching applications

Referência: Bastias, E., Otte, F. W., Vaughan, J., Swainston, S., & O’ Sullivan, M. (2024). An ecological approach for skill development and performance in soccer goalkeeper training: Empirical evidence and coaching applications. Journal of Sports Sciences, 1–12. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/02640414.2024.2306449

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 50 – fevereiro de 2024.

 

Apresentação do problema

A dinâmica ecológica tem surgido como uma estrutura teórica de referência para o desenvolvimento de habilidades e para a melhoria do desempenho desportivo (Araújo & Davids, 2016; O’Sullivan et al., 2021; Vaughan et al., 2019). O respetivo racional pressupõe que o desenvolvimento das habilidades é um processo dinâmico, no qual os praticantes e o ambiente estão intrinsecamente ligados. Esta teoria sublinha que a performance é o resultado de uma interação contínua que requer uma constante autorregulação e adaptação do sistema percetivo-motor (Araújo & Davids, 2016; Davids et al., 2017). Mais especificamente, os sistemas percetivo-motores adaptam-se às capacidades do indivíduo, à tarefa e às propriedades do ambiente (Gibson, 1979; Newell, 1986). No desporto, os constrangimentos da tarefa visam moldar a intenção da atividade, incluindo as dimensões do campo, o número de jogadores, número e tipo de balizas, sinalizadores e modificação das regras. Os constrangimentos ambientais geralmente vão além da manipulação do treinador, como o clima, a temperatura e a iluminação (Newell, 1986). Embora haja evidências que sustentam que os constrangimentos da tarefa e do ambiente influenciam a aprendizagem e o desempenho desportivo (Edelman & Gally, 2001; Ribeiro et al., 2019a, 2019b), ainda há a necessidade de confirmar empiricamente este raciocínio, especialmente relevante em contextos específicos como o treino específico de guarda-redes (GR) no futebol. 

O impacto dos constrangimentos da tarefa e do ambiente na performance desportiva tem sido estudado em diversas modalidades (Aguiar et al., 2012; Sarmento et al., 2018). Por exemplo, no futebol, ajustar o tamanho da área de treino pode afetar a frequência de ações básicas, como interceções, remates à baliza ou desarmes (Casamichana & Castellano, 2010; Fleay et al., 2018). Introduzir um desequilíbrio numérico nas equipas (e.g., 6v5) pode aumentar o número de passes bem-sucedidos em jogos reduzidos (Bonney et al., 2020). Embora estudos anteriores confirmem que a aquisição de habilidades motoras melhora com a prática acumulada (Dayan & Cohen, 2011; Doyon & Ungerleider, 2002; Pascual-Leone et al., 1994), os efeitos do treino no desempenho podem variar consideravelmente dependendo da tarefa (Ashby et al., 2010; Doyon & Benali, 2005). Os constrangimentos ambientais também podem influenciar significativamente o desempenho técnico dos jogadores. Aliás, tem sido produzida investigação em torno do impacto do clima nas capacidades fisiológicas dos atletas (Carling et al., 2011; Mohr et al., 2012) e nas oportunidades de golo durante um jogo (Brocherie et al., 2015). 

Contudo, examinar a influência dos constrangimentos da tarefa e do ambiente no desempenho desportivo pode ser condicionado por fatores de confusão específicos, ou seja, que podem mascarar os efeitos das variáveis do estudo na performance dos jogadores (Bernards et al., 2017; Teune et al., 2022a). Por exemplo, a estrutura da sessão de treino (i.e., a ordem das tarefas após o aquecimento) pode deturpar o efeito dos constrangimentos (Araújo & Davids, 2016), ao regular o estado físico e/ou coordenativo crítico dos participantes no decurso da sessão de treino. Deste modo, a análise dos resultados da aplicação de constrangimentos no desempenho, em vários contextos desportivos tão específicos como o treino de GR (figura 2), merece mais atenção académica.

 

Figura 2. Guarda-redes da equipa feminina do Liverpool FC em situação de treino específica (imagem não publicada pelos autores; fonte: https://theathletic.com).

 

Constrangimentos da tarefa e ambientais no treino de GR

No futebol, o GR enfrenta uma variedade de desafios que exigem adaptação constante às dinâmicas do jogo (Otte et al., 2022; Quinn et al., 2023; West, 2018). Este ajuste abrange aspetos tático-técnicos, físicos, psicológicos e sociais. A perceção das respetivas oportunidades de ação varia substancialmente consoante a informação ambiental disponível (O’Sullivan et al., 2021; Ribeiro et al., 2019b). É neste âmbito que pesquisas delineadas segundo a abordagem ecológica enriquecem a nossa compreensão acerca da aquisição de habilidades por parte dos GR. Recentemente, foi proposta uma estrutura teórica precisamente para contextualizar o treino de GR do ponto de vista ecológico (figura 3): Periodization of Skill Training (PoST), em português “Periodização da Aquisição de Habilidades” (Otte et al., 2019; Otte et al., 2021).

 

Figura 3. Representação da estrutura teórica “Periodização da Aquisição de Habilidades” para contextos específicos de treino (adaptado de Otte et al., 2019).

 

Esta proposta providencia uma clara distinção entre a aprendizagem de habilidades e a preparação para o rendimento, introduzindo princípios de treino e etapas de desenvolvimento das habilidades. Estas etapas centram-se em 2 constrangimentos da tarefa fundamentais: 1) o nível de “representatividade do jogo” no treino e 2) a complexidade percebida das tarefas (Teune et al., 2022a, 2022b). Não obstante o desenvolvimento desta estrutura teórica, a influência da representatividade do jogo e da complexidade no desempenho dos GRs ainda não foi testada empiricamente. O objetivo deste estudo foi analisar como constrangimentos da tarefa e ambientais, juntamente com potenciais fatores de confusão relacionados com a amostra, influenciaram o desempenho de duas GRs profissionais de futebol feminino, num conjunto de 13 tarefas de treino.

 

Métodos

  

·     Participantes

Foram recrutadas duas GRs (doravante designadas por GR1 e GR2) com experiência de 2 anos na primeira divisão feminina sueca e passado em seleções nacionais. Para assegurar complexidade e representatividade semelhantes ao jogo real, envolveram-se outras duas GRs da equipa Sub-19, além dos treinadores de GR e jogadores de campo, quando necessário. Todos os participantes deram consentimento informado para a experiência.

  

·     Desenho do estudo e análise de dados

Tarefas de treino: a recolha de dados ocorreu ao longo de 57 dias de pré-época numa equipa feminina da primeira divisão sueca. As GRs do estudo foram expostas a 13 tarefas de treino representativas do ponto de vista ecológico, concebidas segundo o racional teórico proposto por O’Sullivan et al. (2021). As tarefas incluíram jogos em espaços reduzidos e formas jogadas, ajustáveis em complexidade e representatividade. Não foram dados feedbacks explícitos pelos treinadores durante as sessões, seguindo as diretrizes de Otte et al. (2019). O aquecimento antes das tarefas seguiu o protocolo FIFA11+S para prevenção de lesões, visando a ativação muscular dos membros superiores e inferiores. 

Variáveis preditivas: as tarefas de treino foram concebidas com base nos seguintes elementos: i) 8 constrangimentos da tarefa, ou seja, complexidade numérica, continuidade, função do jogador, equilíbrio da equipa, dimensões do campo, graus de liberdade espacial, representatividade paisagística e recorrência do treino; ii) 1 constrangimento ambiental, ou seja, o clima; e iii) ordem de atividade após o aquecimento, como uma variável referente à ordem das tarefas de estudo após o aquecimento, de modo a testar potenciais efeitos de confusão no desempenho das GRs. Uma síntese das definições destas variáveis consta na tabela 1.


Tabela 1. Variáveis independentes do estudo, em função do tipo de constrangimento, e respetivas definições operacionais (adaptado de Bastias et al., 2024).


Coeficientes de desempenho dos GRs: cada guarda-redes recebeu pontos por diferentes ações durante o treino, como defesas ou passes. Os coeficientes de desempenho foram calculados dividindo os pontos pelo número de tentativas, resultando numa média para cada tarefa e GR. Este cálculo não levou em conta a quantidade de tentativas, como confirmado pela correlação entre pontos e tentativas. 

Análise estatística: seguindo o Modelo de Pesquisa Aplicada para Ciências do Desporto (ARMSS; Bishop, 2008), foram realizadas análises de variância univariadas (ANOVA) para testar as relações entre o coeficiente de desempenho, usado como variável dependente, e os 10 preditores (ou variáveis independentes). As variáveis foram transformadas em logaritmo antes da análise para atender às assunções de normalidade e homogeneidade de variância. Além disso, foram realizadas ANOVAs múltiplas para explorar a variação do coeficiente de desempenho em relação aos preditores do estudo, utilizando um processo de eliminação progressiva para obter o modelo mais adequado. Foram utilizadas regressões lineares para investigar as relações entre o coeficiente de desempenho e os preditores mais significativos. Por fim, foram calculados coeficientes de correlação de Pearson para testar a associação entre os preditores mais significativos e o coeficiente de desempenho. Foram ainda utilizados modelos lineares mistos para testar o efeito das variáveis independentes sobre o coeficiente de desempenho, com a ordem de atividade após o aquecimento como fator aleatório. As análises foram executadas no software R versão 3.5.2 (R Core Team, 2018), com significância estatística definida em α = 0.05.

 

Principais resultados

Os coeficientes de desempenho das GRs variaram consideravelmente entre as tarefas de treino. Para a GR1, oscilou entre 0,12 e 0,75, com uma média de 0,49 ± 0,06, enquanto para a GR2 variou entre 0,10 e 0,92, com média de 0,59 ± 0,07 (tabela 2). O coeficiente de variação do desempenho entre as tarefas de treino foi de 40% para a GR1 e 37,7% para a GR2.

 

Tabela 2. Coeficientes de desempenho das duas GR do estudo ao longo das 13 tarefas de treino (adaptado de Bastias et al., 2024).

Nota 1: O coeficiente de desempenho foi calculado através da divisão do número de pontos alcançados (pa) por cada GR pelo número de pontos potenciais (pp) que poderiam alcançar.

Nota 2: Para a GR1, os dados da tarefa 5 não foram apresentados (na) devido à participação da atleta num encontro da equipa nacional.


Os resultados da ANOVA revelaram relações significativas entre o desempenho e alguns constrangimentos. Para a GR1, o desempenho esteve positivamente relacionado com a complexidade numérica e mostrou uma tendência de relação positiva com as dimensões do campo. No caso da GR2, o desempenho correlacionou-se positivamente com a complexidade numérica, representatividade paisagística e dimensões do campo. Além disso, a ordem de atividade após o aquecimento também teve influência no seu desempenho. A relação significativa entre o coeficiente de desempenho e a ordem de atividade após o aquecimento para a GR2 sugere que fatores de confusão podem ter influenciado as relações observadas entre as variáveis preditoras e o coeficiente de desempenho e, portanto, validam o uso de efeitos aleatórios na modelagem. 

As análises de regressão indicaram que, para as duas GRs, a relação entre o coeficiente de desempenho e a complexidade numérica é mais bem explicada por um modelo de regressão assintótica. A complexidade numérica esteve correlacionada com as dimensões do campo e tende a estar correlacionada com a representatividade paisagística. As dimensões do campo estiveram correlacionadas com a representatividade paisagística. Por fim, modelos de regressão linear múltipla mostraram que uma combinação linear de alguns destes fatores elucida melhor o desempenho do que modelos simples isoladamente, explicando 49% da variância observada para a GR1 e 46% para a GR2.

 

Aplicações práticas

Os resultados deste estudo têm uma grande transferibilidade para o contexto prático. Foi possível redigir 5 sugestões para serem aplicadas em situações de treino específicas para GR:


1.  Equacionar os diversos constrangimentos da tarefa: as tarefas de treino que mantêm maior proximidade com o jogo – nomeadamente, o número de jogadores, as dimensões do campo e os elementos dentro do espaço de treino –, parecem beneficiar a eficácia dos GRs em competição. A complexidade numérica teve um efeito mais significativo sobre o coeficiente de desempenho, pelo que constitui um constrangimento-chave na conceção de tarefas de treino/aprendizagem representativas para GRs. Cerca de 47% da variabilidade observada no desempenho das GRs foi explicada pela combinação dos constrangimentos da tarefa, o reflete a importância da correta manipulação de condicionantes estruturais no processo de treino. 

2. Impacto prático da complexidade numérica: os treinadores são encorajados a conceber tarefas de treino que envolvam um maior número de jogadores em interação, uma vez que tende a produzir melhores desempenhos nos GRs. Por exemplo, propor formas jogadas mais realistas, como o 3v2+GR, aumenta a representatividade e complexidade do cenário de treino. Pelo contrário, tarefas de baixa complexidade, como situações isoladas de 1v1, podem limitar a perceção e eficácia dos GRs na execução de ações específicas. Portanto, os treinadores devem manipular a complexidade numérica das tarefas de treino para facilitar a aquisição e o aperfeiçoamento das habilidades dos GRs, promovendo assim a melhoria do seu desempenho em contextos competitivos. 

3. Exemplo concreto de como aumentar a complexidade numérica num exercício de GR: os resultados dos modelos mostraram que 4 ou 5 jogadores/treinadores em interação constitui a unidade mínima de complexidade dentro da tarefa que providencia um contexto informacional mais representativo para os GRs. Este dado sugere que as sessões de treino de GR tradicionais, limitadas a um grupo de 1 ou 2 GRs em interação com o treinador de GR, podem ser insuficientes para conduzir de forma ideal a aprendizagem e a adaptação tático-técnica para os requisitos competitivos. Num contexto de 3 jogadores com 1 GR, a atividade pode ser projetada de maneiras distintas: (1) relação bivariada com o GR na baliza (cada jogador com uma bola a rematar de forma previsível; figura 4, painel à esquerda); (2) interações diversas prévias à finalização (grupo de 3 jogadores com uma bola; figura 4, painel à direita).

 

Figura 4. Ilustração de como um grupo de 4 GRs pode ser treinado durante uma atividade de remate, ou seja, um GR (a preto) na baliza e 3 a finalizar (a verde) (Bastias et al., 2024).

 

A primeira opção provavelmente gerará mais remates, mas estabelece apenas uma carga total de complexidade de 3 (i.e., 2!/2 = 1 para cada jogador com o GR). Por outro lado, a segunda opção configura uma tarefa de maior complexidade, expandindo os graus de liberdade dos GRs, ocasionando um aumento significativo de interações (i.e., 4!/2 = 12). Este tipo de atividade envolve uma progressão desproporcional em função do número de jogadores envolvidos, tornando a abordagem mais representativa no que ao desempenho específico dos GRs diz respeito. 

4. A relevância da configuração do espaço no treino de GRs: os treinadores devem priorizar atividades específicas para GR em espaços amplos, promovendo a recorrência de situações de remate e cruzamento de média a longa distância. Este tipo de formato oferece aos GRs mais tempo e espaço para reagir e executar ações controladas, facilitando também as transições defesa-ataque. Privilegiar ambientes de treino com menos jogadores e dimensões de campo mais representativas pode potenciar a aquisição e o aperfeiçoamento das habilidades próprias dos GRs. 

5. A prática acumulada de treino é relativa: a quantidade de dias de prática acumulados não influenciou diretamente o desempenho das GRs estudadas, insinuando que a performance não depende somente da quantidade de treino. Contudo, para a GR2, a interação entre o número de dias de prática acumulados e a complexidade numérica foi significativa. Assim, a quantidade de prática, por si só, não garante um desempenho eficaz, mas pode ser relevante quando combinada com fatores qualitativos, como a carga informacional suscitada pelo exercício. Em suma, a aquisição de habilidades e a melhoria do desempenho requerem mais do que horas de treino, exigindo que haja uma afinação progressiva às informações relevantes do envolvimento.

 

Conclusão

O estudo reforça a importância da manipulação de constrangimentos da tarefa, como o número de GRs envolvido e as características espaciais, em cenários de treino, como meio para regular as intenções e os comportamentos motores específicos. Além disso, a avaliação das performances dos GRs, especialmente durante o treino, requer uma perspetiva baseada em análises multivariadas. A adoção de uma tal abordagem exige uma colaboração estreita entre treinadores e investigadores/analistas, a fim de desenvolver soluções que simplifiquem as múltiplas dimensões da informação a um modelo mais interpretável, permitindo assim a melhoria da conceção das tarefas de treino. Apesar das limitações inerentes ao estudo, os resultados suportam o racional subjacente à dinâmica ecológica e à abordagem baseada nos constrangimentos, em particular no contexto do treino de GR. Estas correntes teóricas contrastam totalmente com as metodologias tradicionais que se concentram em atividades técnicas isoladas, frequentemente desvinculadas do contexto situacional do jogo.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.

28/01/2024

Artigo do mês #49 – janeiro 2024 | Treinar ou não treinar (no dia do jogo)? Influência de uma sessão de preparação no desempenho competitivo no futebol profissional

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Modric, T., Carling, C., Lago-Peñas, C., Versic, Š, Morgans, R., & Sekulic, D.

País: Croácia

Data de publicação: 19-dezembro-2023

Título: To train or not to train (on match day)? Influence of a priming session on match performance in competitive elite-level soccer

Referência: Modric, T., Carling, C., Lago-Peñas, C., Versic, Š., Morgans, R., & Sekulic, D. (2023). To train or not to train (on match day)? Influence of a priming session on match performance in competitive elite-level soccer. Journal of Sports Sciences, 41(18), 1726–1733. https://doi.org/10.1080/02640414.2023.2296741

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 49 – janeiro de 2024.

 

Apresentação do problema

A análise de jogo é frequentemente utilizada em muitos desportos, pois fornece aos treinadores um meio de recolher informações objetivas que podem ser usadas para dar feedback sobre o desempenho em jogo (Kim et al., 2023). No futebol, o rendimento competitivo é determinado por uma interação complexa entre fatores físicos, técnicos, táticos e psicossociais (Schuth et al., 2016). O desempenho físico é geralmente avaliado pela quantificação de diferentes variáveis cinemáticas (e.g. distância total percorrida, distâncias percorridas em diferentes zonas de intensidade e frequências de aceleração/desaceleração (Byrkjedal et al., 2023; Riboli & Castagna, 2023). Os remates, passes, cruzamentos e dribles estão entre as variáveis mais utilizadas para examinar o desempenho técnico (Yi et al., 2019), enquanto a coordenação entre jogadores e entre as equipas é usualmente analisada para avaliar o desempenho tático (Folgado et al., 2015). Embora o desempenho técnico dos jogadores seja considerado decisivo para o sucesso competitivo (Hoppe et al., 2015; Moalla et al., 2018), não é possível alcançar um alto nível de rendimento no futebol contemporâneo sem um nível apropriado de condição física (Mackenzie & Cushion, 2013). Portanto, aprimorar o desempenho técnico e físico dos jogadores constitui um objetivo essencial para os profissionais do treino no futebol. 

Juntamente com uma recuperação e alimentação adequadas, uma estratégia importante para melhorar o desempenho técnico e físico no dia do jogo é a periodização da carga de treino (Los Arcos et al., 2017). A maior parte dos esforços para otimizar a preparação para o jogo ocorre durante as sessões de treino semanais; no entanto, a preparação final acontece no dia do jogo. Assim, na manhã do dia do jogo (visto que os jogos são habitualmente disputados à tarde ou à noite), a equipa técnica pode optar pela realização de uma “sessão de preparação” (priming session; figura 2), no futebol também designada de “ativação”. A investigação sobre a prevalência e aplicação de exercícios de preparação em desportos de alto rendimento mostraram que estas sessões consistem predominantemente em exercícios para a parte superior do corpo (e.g., supino, lançamento de bola medicinal, elevações, etc.) e para a parte inferior do corpo (e.g., agachamento, variações de levantamento olímpico, saltos, etc.), envolvendo ou não carga adicional (Harrison et al., 2020).

 

Figura 2. Jogadores em preparação matinal antes de um jogo competitivo (imagem não publicada pelos autores; fonte: https://www.soccersupplement.com).

 

As sessões de preparação em geral visam melhorar o desempenho à tarde/noite por meio de vários mecanismos, como a redução da rigidez articular e muscular, a ativação dos motoneurónios de alta frequência e o aumento agudo da testosterona (Harrison et al., 2019; Nutt et al., 2022). Contudo, apesar de algumas evidências empíricas sugerirem que as sessões de preparação podem ser uma estratégia eficaz para melhorar a performance dos atletas (Marrier et al., 2019; McGowan et al., 2017; Nutt et al., 2022), outros estudos não reportaram qualquer efeito positivo (Fry et al., 1995; Harrison et al., 2020). A existência de resultados contraditórios pode ser em parte atribuída a prescrições distintas das sessões de preparação, uma vez que tem sido aplicada uma vasta gama de métodos na prática (Harrison et al., 2020). Independentemente da causalidade, é importante destacar que os estudos investigaram apenas medidas instantâneas de desempenho, como saltos e/ou indicadores de força. 

Considerando a importância comprovada do desempenho físico e técnico no futebol (Hoppe et al., 2015; Moalla et al., 2018; Schuth et al., 2016), até à presente data, nenhum estudo investigou os efeitos de sessões de preparação na performance em jogos oficiais de futebol (Harrison et al., 2020). Consequentemente, permanece incerto se as sessões de preparação têm ou não um efeito positivo no desempenho competitivo dos jogadores, havendo necessidade de mais investigação. Este estudo visou suprir esta lacuna, examinando o efeito das sessões de preparação no desempenho físico e técnico de jogadores profissionais em competição.

 

Métodos

Abordagem experimental: neste estudo observacional, a performance competitiva dos futebolistas foi analisada em função de duas rotinas específicas implementadas pela equipa no dia do jogo: (i) uma sessão de preparação de 15 a 20 minutos, (ii) um período de 15 a 20 minutos de caminhada ou descanso. Este desenho permitiu investigar as potenciais diferenças no desempenho em jogos precedidos e não precedidos por uma sessão de preparação. Os seguintes fatores contextuais também foram controlados (covariáveis): posição de jogo, local e resultado do jogo, qualidade do adversário e tipo de campo. 

Amostra: foram recolhidos dados de 31 jogadores de campo de uma equipa sénior profissional da primeira divisão da Letónia (9 médios centro, 7 defesas centrais, 4 avançados, 5 defesas laterais e 6 médios ala). Os jogadores participaram em 32 jogos oficiais do campeonato, 12 precedidos por uma sessão de preparação e 20 não precedidos por uma sessão de preparação. Apenas foram incluídos na análise os jogos disputados com a mesma estrutura tática de base: 4-3-3. A nível individual, somente foram incluídas observações caso o jogador tivesse participado em, pelo menos, 75 minutos do jogo. No total, foram obtidas 266 observações individuais (92 precedidas por sessão de preparação e 174 observações não precedidas por sessão de preparação). Obteve-se o consentimento verbal do clube e dos jogadores e, ao longo do estudo, foi garantido o anonimato dos participantes. 

Procedimentos: a performance física dos jogadores foi medida utilizando um sistema global de posicionamento (GPS) de 10 Hz (Vector S7, Catapult Sports Ltd., Melbourne, Austrália). Cada jogador usou sempre o mesmo dispositivo em cada jogo. Os dados brutos foram exportados após o final de cada jogo através do software específico do sistema (OpenField, Catapult Sports Ltd., Melbourne, Austrália). O desempenho técnico dos jogadores foi analisado mediante o sistema ótico semiautomático InStat Scout (Instat Limited, Limerick, República da Irlanda). O sistema foi recentemente comprovado como sendo altamente fiável (Silva & Marcelino, 2022). Com base na experiência prática dos autores do estudo, que têm um histórico comprovado de trabalho no futebol profissional como preparadores físicos, foi elaborado um protocolo de preparação pré-jogo (figura 3). O protocolo teve a duração de 15–20 minutos e consistiu em 4 partes: (i) aquecimento no solo, (ii) exercícios de força média (core), (iii) exercícios de força para membros inferiores e (iv) exercícios de agilidade reativa. Este protocolo foi realizado nas manhãs dos dias de jogo e foi orientado pelo preparador físico da equipa (um dos coautores do estudo). Dependendo da hora do jogo, as sessões de preparação foram realizadas 6 a 9 horas antes do apito inicial.


Figura 3. Protocolo da sessão de preparação pré-jogo (traduzido de Modric et al., 2023).

 

Variáveis: a performance física foi avaliada através das variáveis “distância total” (m), “distância em corrida de baixa intensidade” (m; <4m/s), “distância em corrida de intensidade moderada” (m; 4–5.5m/s), “distância em corrida de alta intensidade” (m; >19.8km/h), “total de acelerações” (n; >0.5m/s2), “acelerações de alta intensidade” (n; >3m/s2), “total de desacelerações” (n; <-0.5m/s2) e “desacelerações de alta intensidade” (n; <-3m/s2). Por sua vez, o desempenho técnico foi verificado através de remates, passes, cruzamentos, desarmes, dribles e duelos (n). O contexto foi analisado através das variáveis categóricas “posição de jogo” (defesa central, defesa lateral, médio centro, médio ala e avançado), “resultado do jogo” (vitória, empate e derrota), “localização do jogo” (casa e fora), “qualidade da oposição” (forte, 1.º–5.º lugares e fraca, 6.º–10.º lugares) e “tipo de campo” (relva artificial e relva natural). Para examinar o efeito de uma sessão de preparação no desempenho físico e técnico dos jogadores, foi criada a variável categórica “sessão de preparação” (jogo precedido por uma sessão de preparação ou não precedido). 

Análise estatística: foi corrido um modelo linear misto para examinar o efeito das sessões de preparação no desempenho físico e técnico dos jogadores. As variáveis físicas e técnicas nos jogos que foram precedidos ou não por sessões de preparação foram incluídas no modelo como variáveis dependentes. A posição de jogo, o resultado do jogo, a localização do jogo, a qualidade da oposição e o tipo de campo constituíram as variáveis independentes, sendo inseridas no modelo como efeitos fixos. A identidade dos jogadores foi modelada como efeito aleatório. O d de Cohen foi utilizado para identificar as dimensões de efeito e interpretado da seguinte forma: trivial (<0.2), pequeno (≥0.2–0.5), moderado (≥0.5–0.8) e grande (>0.8) (Cohen, 2013). Todas as análises foram executadas no software SPSS (IBM, SPSS, versão 25.0). A significância estatística foi estabelecida em p < 0.05.

 

Principais resultados

 

·     Distâncias total e percorridas em diversas zonas de intensidade

Em jogos precedidos por uma sessão de preparação (vs. sem sessão de preparação), os futebolistas alcançaram valores significativamente superiores nas seguintes variáveis: distância total (10727m vs. 10468m, respetivamente; efeito pequeno), corrida de intensidade moderada (1632m vs. 1484m, respetivamente; efeito moderado) e corrida de alta intensidade (689m vs. 625m, respetivamente; efeito pequeno). As covariáveis posição de jogo, localização do jogo e resultado do jogo tiveram influência na distância total e nas distâncias percorridas em corrida de intensidade moderada e de alta intensidade. Além disso, o tipo de campo teve impacto na distância total e na distância percorrida em alta intensidade.

 

·     Atividades de aceleração e desaceleração

Não houve um efeito significativo de prescrever sessão de preparação antes dos jogos nas 4 variáveis afetas a acelerações e desacelerações. Ainda assim, quando os jogos foram precedidos por uma sessão de preparação, os jogadores manifestaram valores ligeiramente superiores de acelerações de alta intensidade (30 vs. 28, respetivamente; efeito pequeno) e desacelerações de alta intensidade (39 vs. 36, respetivamente; efeito pequeno), comparativamente aos jogos que não foram precedidos por uma sessão de preparação. A covariável posição de jogo teve influência nas acelerações e desacelerações de alta intensidade. O resultado e a localização do jogo manifestaram efeitos significativos no número total de acelerações e desacelerações. A qualidade da oposição influiu nas acelerações de alta intensidade, enquanto o tipo de campo afetou o número total de acelerações e desacelerações, e as acelerações de alta intensidade.

 

·     Desempenho técnico

Das 6 variáveis analisadas (remates, passes, cruzamentos, desarmes, duelos e dribles), os jogadores apenas executaram significativamente mais duelos em jogos precedidos de sessões de preparação (vs. sem sessão de preparação). As respetivas médias foram 18.66 e 16.71, respetivamente (efeito pequeno). Os duelos também foram afetados pelas covariáveis posição de jogo e qualidade da oposição.

 

Aplicações práticas

As evidências extraídas do estudo proporcionaram a formulação de 3 sugestões práticas para os treinadores de futebol profissional:

 

1. Melhorar o desempenho físico em competição: implementar sessões de preparação na manhã do dia do jogo pode conduzir a uma melhoria notável no desempenho físico dos jogadores durante o jogo subsequente. Ao contrário de sessões altamente intensivas, a natureza não intensiva e de curta duração destas sessões de preparação é improvável que afete negativamente o estado anímico dos jogadores. Assim, os treinadores podem incorporar com confiança estas sessões nas rotinas pré-jogo sem preocupações com efeitos adversos no bem-estar psicológico dos jogadores. 

2. Impacto na performance técnica: embora as sessões de preparação não melhorem diretamente a performance técnica dos jogadores em competição, também não a prejudicam. Por um lado, esta evidência sugere que a integração de sessões de preparação (ativação) no dia de jogo não compromete a execução de habilidades técnicas associadas à obtenção de sucesso no futebol. Por outro lado, destaca a importância de incorporar sessões de preparação pré-jogo no planeamento semanal (microciclo), no intuito de otimizar a prontidão física dos jogadores, mantendo o nível tático-técnico inalterado. 

3. Eficácia das sessões de preparação em diversos contextos de jogo: o impacto positivo das sessões de preparação no desempenho físico permanece significativo mesmo quando foram controlados diversos fatores contextuais conhecidos por influenciar o rendimento no futebol. Os resultados enfatizam a eficácia das sessões de preparação em múltiplos contextos de futebol profissional e enaltecem a sua relevância na mitigação da variabilidade natural que existe entre jogos.

 

Conclusão

Este estudo pioneiro demonstrou que as sessões de preparação no dia do jogo podem melhorar o desempenho físico dos jogadores em competição. Especificamente, observou-se que em jogos precedidos por uma sessão de preparação, os jogadores percorreram maiores distâncias totais e em corrida de intensidade moderada e alta, comparativamente com jogos não precedidos por este tipo de trabalho. Embora tenham sido observadas ligeiras melhorias nas acelerações e desacelerações de alta intensidade, estas não foram estatisticamente significativas. Além disso, não foi detetado nenhum efeito negativo no desempenho técnico. Em suma, os autores destacam que a aplicação de carga adicional na manhã do dia do jogo não compromete o desempenho competitivo subsequente.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.

30/12/2023

Artigo do mês #48 – dezembro 2023 | Práticas contemporâneas de treinadores de futebol portugueses e brasileiros na conceção e aplicação de jogos reduzidos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Clemente, F. H., Afonso, J., Silva, R. M., Aquino, R., Vieira, L. P., Santos, F., Teoldo, I., Oliveira, R., Praça, G., & Sarmento, H.

País: Portugal

Data de publicação: 20-novembro-2023

Título: Contemporary practices of Portuguese and Brazilian soccer coaches in designing and applying small-sided games

Referência: Clemente, F. H., Afonso, J., Silva, R. M., Aquino, R., Vieira, L. P., Santos, F., Teoldo, I., Oliveira, R., Praça, G., & Sarmento, H. (2024). Contemporary practices of Portuguese and Brazilian soccer coaches in designing and applying small-sided games. Biology of Sport, 41(2), 185–199. https://doi.org/10.5114/biolsport.2024.132985

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 48 – dezembro de 2023.

 

Apresentação do problema

Os jogos reduzidos são exercícios que simplificam a complexidade do jogo formal e, por meio do recurso a constrangimento da tarefa, visam aprimorar comportamentos específicos dos jogadores (Davids et al., 2013). A popularidade destas atividades jogadas tem vindo a aumentar devido à sua capacidade para, por um lado, exacerbar os comportamentos desejados e, por outro lado, proporcionar esforços intensos (Clemente et al., 2021). Na perspetiva do treinador, as configurações destas tarefas podem ser manipuladas para fomentar a concretização de determinados objetivos, incluindo o número, a forma e a disposição das balizas, o tamanho e a forma do campo, limitações na coordenação intra e interpessoal (e.g., restrição do número de toques), constrangimentos temporais e diversas relações numéricas. Consequentemente, os jogos reduzidos oferecem uma integração abrangente das várias dimensões de desempenho, abrangendo aspetos tático-técnicos (Clemente et al., 2020; Clemente & Sarmento, 2020; Ometto et al., 2018), físico/fisiológicos (Clemente et al., 2021; Moran et al., 2019) e psicológicos/sociológicos (Arcos et al., 2015). 

Nas últimas duas décadas, os investigadores têm-se focado cada vez mais em examinar os efeitos da modificação dos constrangimentos neste tipo de exercícios, uma vez que os jogos reduzidos proporcionam um ambiente de treino enriquecedor que fornece múltiplas oportunidades de ação e que garante que os jogadores permaneçam envolvidos em dinâmicas específicas da modalidade (Dellal et al., 2012; Owen et al., 2012). Por exemplo, formatos de jogo mais reduzidos (i.e., com menos jogadores envolvidos) tipicamente suscitam cargas internas mais elevadas (Lacome et al., 2018) e aumentam a frequência de ações tático-técnicas individuais (Clemente & Sarmento., 2020; Silva et al., 2014). Ao invés, jogos com dimensões >100 m2/jogador aumentam as exigências de carga externa, como a distância percorrida a alta velocidade (Casamichana & Castellano, 2010), e a ocorrência de comportamentos coletivos, tais como a mobilidade e a exploração dos corredores laterais (Castelão et al., 2014). 

Apesar da extensa investigação e do estabelecimento dos jogos reduzidos na literatura científica, há uma escassez de estudos especificamente direcionados à análise (1) da frequência com que os treinadores desportivos incorporam estas tarefas práticas nos seus processos de treino e (2) dos fatores que influenciam a sua aplicação (Clemente et al., 2015). Parece ser fundamental transmitir perceções sobre as práticas reais de treino relacionados com os jogos reduzidos, respondendo à questão: como é que os treinadores têm integrado os jogos reduzidos na sua atividade diária? Previamente, Gonçalves et al. (2021) monitorizaram os tipos de exercícios empregues por um treinador profissional ao longo de 5 meses. Os autores mostraram que, em média, foram dedicados 19.8 ± 13.4 minutos das sessões de treino a jogos de dimensões reduzidas (de 1v1 a 5v5), e mais 19.2 ± 7.4 minutos a formatos de maiores dimensões (de 6v6 a 11v11). 

Em 2017, Alves e colaboradores realizaram um estudo qualitativo com 2 treinadores de futebol experientes acerca da implementação de jogos reduzidos no treino. Os resultados indicaram que os treinadores reconhecem a importância destas tarefas, devido ao seu potencial em combinar princípios táticos e componentes da condição física, o que concorre para um transfer positivo da performance para os jogos competitivos. Um outro estudo qualitativo explorou como os treinadores concebem os jogos reduzidos e articulam a respetiva elaboração com os seus objetivos em contextos reais de prática (Clemente et al., 2015). Este trabalho revelou que treinadores experientes foram mais efetivos a implementar constrangimentos da tarefa para obter o estímulo fisiológico desejado, com uma correlação forte (r = 0.827) entre a frequência cardíaca (FC) estimada pelo treinador e a FC registada pelos jogadores. Apesar destes estudos explanarem a utilização e a importância dos jogos reduzidos no processo de treino no futebol, é evidente que são necessárias mais pesquisas para alcançar uma compreensão mais abrangente dos vários fatores que influenciam a conceção e a aplicação destas atividades pelos treinadores, em particular em contextos desportivos com nuances (e.g., culturas, métodos e abordagens de treino) próprias, como sucede em diferentes países. 

Os casos de Portugal e Brasil são paradigmáticos no concerne com a utilização de jogos reduzidos (figura 2). Em Portugal, o desenvolvimento da Periodização Tática (Delgado-Bordonau & Mendez-Villanueva, 2012) e a emergência de figuras influentes, como José Mourinho, fomentou a adoção de exercícios ecológicos, incluindo os jogos reduzidos, nas práticas de treino. Por inerência, tem havido uma expansão concomitante de literatura relacionada com os jogos reduzidos. O Brasil seguiu de perto esta tendência, com os jogos reduzidos a adquirir popularidade como uma abordagem de treino fundamental, quer para jovens futebolistas, quer para seniores (Aquino et al., 2016; Greboggy & Silva, 2018). Dada a implementação dos jogos reduzidos em ambos os países, torna-se especialmente premente explorar e comparar as suas aplicações práticas no quotidiano de treino diário.

 

Figura 2. Exemplo de um jogo reduzido aplicado na aprendizagem do jogo em idades infantojuvenis, em Portugal (imagem não publicada pelos autores).

 

Os principais objetivos deste estudo consistiram em realizar um inquérito sobre a utilização dos jogos reduzidos no treino de futebol. A abordagem quantitativa envolveu a distribuição de questionários a treinadores em Portugal e no Brasil, com o intuito de proporcionar perceções valiosas, esclarecer práticas atuais e formular recomendações para aprimorar a eficácia da implementação destas tarefas no processo de treino. Além disso, procurou-se oferecer uma visão direta de como os treinadores estão a aplicar os jogos reduzidos, verificando se esse uso está alinhado com a literatura científica mais recente, a fim de identificar lacunas que possam contribuir para melhorar a formação contemporânea dos treinadores.

 

Métodos

Desenho do estudo: de natureza transversal, o trabalho visou examinar e descrever as práticas atuais de treinadores de futebol portugueses e brasileiros no que respeita à conceção e à implementação de jogos reduzidos no treino. O tamanho da amostra foi calculado a priori no software G*power (versão 3.1), atendendo aos seguintes parâmetros: dimensão de efeito pequena (0.3), valor de p de 0.05, potência de 0.95 e 2 graus de liberdade (duas nacionalidades). O tamanho da amostra recomendado foi de 172. Um grupo diversificado de treinadores, incluindo treinadores principais, treinadores-adjuntos e preparadores físicos, foi convidado a participar no inquérito e partilhar as suas práticas e perspetivas sobre a utilização de jogos reduzidos no treino de futebol. Antes de responder ao questionário, foi obtido o consentimento informado de todos os participantes, cuja participação foi totalmente voluntária. 

Participantes: foram recolhidas 187 respostas válidas, por parte de indivíduos de Portugal e do Brasil, sendo 82 homens portugueses e 105 homens brasileiros. Estes treinadores desempenhavam diversos papeis no seio da equipa técnica, com 63 a atuarem como treinadores principais, 38 como treinadores-adjuntos, 38 como preparadores físicos e 48 noutras funções, como analistas de jogo e fisiologistas. Além disso, os participantes treinavam escalões competitivos jovens (n = 102) e seniores (n = 59), embora alguns não estivessem à data a trabalhar num clube ou a desempenhar funções de treinador. 

Procedimentos: o inquérito online foi realizado através do Google Forms e esteve disponível para preenchimento entre 9 e 18 de julho de 2022. O recrutamento dos participantes ocorreu durante um webinar concretizado no dia 9 de julho de 2022. Aos interessados foram apresentados, de modo abrangente, os conceitos fundamentais e a importância dos jogos reduzidos no futebol. O desenvolvimento do inquérito sobre os jogos reduzidos envolveu os “quandos”, os “comos” e os “porquês” da sua utilização, sendo primariamente elaborado por 3 investigadores com base na literatura existente. De modo a assegurar a qualidade do instrumento, 3 académicos especialistas em jogos reduzidos foram convidados a rever o esboço, determinando uma série de melhorias. O inquérito foi, então, enviado a 4 treinadores de futebol, 2 com formação académica em Ciências do Desporto e 2 sem. Após incorporar os feedbacks destes, a versão final foi enviada aos especialistas iniciais para avaliação final. Após aprovação, o inquérito foi lançado online, com os participantes a receber explicações claras sobre o propósito do instrumento e as devidas garantias de anonimato. O questionário abordou aspetos demográficos e questões sobre a implementação dos jogos reduzidos, incluindo 18, 14, e 43 perguntas nos domínios “quando”, “como” e “porquê”, respetivamente. 

Recolha dos dados e procedimentos estatísticos: os dados recolhidos do inquérito foram exportados e compilados num ficheiro Excel. Para questões de resposta fixa, foi realizada uma análise de frequência, que permitiu uma avaliação quantitativa das escolhas e das preferências dos participantes dentro das categorias de resposta predefinidas. O teste do Qui-quadrado foi aplicado para investigar potenciais relações entre duas variáveis categóricas, como a nacionalidade e a questão em causa. O teste de Mann-Whitney U foi utilizado para escalas ordinais, também para detetar diferenças entre as nacionalidades. Os testes estatísticos foram realizados através do software SPSS (versão 28.0), com significância estatística definida em p ≤ 0.05.

 

Principais resultados

 

·     Perspetiva global

Independentemente do país, a maioria dos treinadores propõe jogos reduzidos duas a três vezes por semana, quer na pré-época, como no período competitivo. Para o grosso dos participantes, a duração dos jogos reduzidos varia entre os 16 e os 30 minutos, situando-os nas partes inicial (aquecimento) e fundamental. Os treinadores concebem jogos reduzidos para melhorar a aptidão aeróbia e as mudanças de direção e fazem-no menos frequentemente para desenvolver a performance em sprint. O treino técnico e tático é, para a grande maioria, o principal objetivo que decorre da aplicação de jogos reduzidos. Os treinadores preferem formatos mais pequenos (1v1 a 4v4) para estimular a aptidão aeróbia, as mudanças de direção e as habilidades técnicas. Ao invés, os formatos médios (5v5 a 8v8) são mais idealizados para desenvolver comportamentos táticos e ações de sprint.

 

·     “Quando?”

Os treinadores tendem a integrar frequentemente os jogos reduzidos nos seus planos de treino, embora não o façam em todas as sessões de treino. Houve associações significativas entre a nacionalidade e a frequência de jogos reduzidos na pré-época e no período competitivo. Na pré-época e no período competitivo, os treinadores brasileiros tendem a propor duas sessões de treino semanais com jogos reduzidos, enquanto os portugueses privilegiam 3 sessões práticas por semana. Na parte do retorno à calma, 33% dos brasileiros refere não utilizar jogos reduzidos, porém, 43% dos portugueses confessaram implementar abaixo de metade do número de sessões de treino definidas. As diferenças nas outras distribuições – duração das sessões de treino, o tempo despendido em jogos reduzidos e as frequências de jogos reduzidos no aquecimento e na parte fundamental – não foram significativas.

 

·     “Como”? (para melhorar a condição física)

As associações significativas ocorreram entre a nacionalidade e (1) o desenvolvimento do sprint, (2) de mudanças de direção, (3) o tempo despendido para o treino aeróbio e (4) a frequência de jogos reduzidos para aprimorar as ações de sprint. Em concreto, 56% dos treinadores brasileiros usam os jogos reduzidos como método de treino para treinar a velocidade máxima, mas 52% dos participantes portugueses referiram não o fazer. Também, 76% dos treinadores brasileiros utilizam jogos reduzidos para desenvolver as mudanças de direção, valor que baixa para os 66% no caso dos treinadores portugueses. Os treinadores brasileiros dedicam mais tempo de treino para desenvolver a aptidão aeróbia (21–30 min; 39%), comparativamente aos portugueses (11–20 min; 41%). Os treinadores brasileiros também mencionaram recorrer a mais sessões para potenciar a performance em sprint: 1–2 sessões (38% vs. 37% portugueses); 3–4 sessões (16% vs. 2% portugueses).

 

·     “Como”? (para melhorar habilidades técnicas e comportamentos táticos)

O estudo revelou associações significativas entre a nacionalidade e o uso de jogos reduzidos para desenvolver habilidades técnicas e comportamentos táticos. Contudo, as associações entre nacionalidade e (1) escolha do tipo de jogos reduzidos, (2) relações numéricas propostas, (3) o tempo alocado para os jogos reduzidos e (4) frequência semanal de jogos reduzidos apenas foram significativas para o treino técnico, o que não aconteceu para o aperfeiçoamento tático. Comparativamente aos treinadores portugueses, os técnicos brasileiros afirmaram utilizar mais os jogos reduzidos para o desenvolvimento técnico (86% vs. 71%) e tático (84% vs. 70%). Enquanto os treinadores portugueses preferem utilizar jogos de dimensões mais reduzidas (49%) para aprimorar a técnica, os brasileiros referem combinar mais do que um grupo de formatos (40%). Na dimensão técnica, os portugueses preferem situações de igualdade numérica (41%), mas os técnicos do Brasil optam mais por jogos com superioridade/inferioridade numéricas (48%), concedendo mais tempo aos jogos reduzidos (11–30 min vs. 11–20 min).

 

·     “Como”? (caracterização dos objetivos das tarefas)

Não houve associações significativas entre a nacionalidade e as dimensões do espaço para o treino fisiológico, acelerações/desacelerações e o desenvolvimento de habilidades técnicas. No entanto, houve associações significativas entre a nacionalidade e as dimensões do espaço para potenciar o sprint e as ações táticas. Para promover a velocidade de corrida e os comportamentos táticos, os técnicos portugueses propõem espaços amplos (> 1/8 do campo formal) mais frequentemente (85% vs. 71% e 93% vs. 76%, respetivamente). Para o desenvolvimento de habilidades técnicas, houve ainda uma associação significativa entre a nacionalidade e o objetivo dos jogos reduzidos, com os treinadores brasileiros a proporem mais situações de posse de bola (52%) e os portugueses a utilizar jogos com alvos, i.e., com direcionalidade (56%).

 

·     “Porquê”? (importância de desenvolver diferentes capacidades)

Os resultados mostraram associações significativas entre a nacionalidade e a importância dos jogos reduzidos para potenciar (1) a condição física de base (aeróbia), (2) mudanças de direção, (3) agilidade, (4) habilidades técnicas ofensivas, (5) habilidades técnicas defensivas, (6) comportamentos táticos ofensivos, (7) comportamentos táticos defensivos e (8) o modelo jogo. Não houve nenhuma associação entre a nacionalidade e a importância dos jogos reduzidos para estimular a força máxima. Enquanto os treinadores brasileiros consideram os jogos reduzidos muito importantes para desenvolver princípios táticos ofensivos e defensivos, a maioria dos treinadores portugueses considera-os apenas importantes. Analogamente, a maioria dos treinadores brasileiros vê os jogos reduzidos como muito importantes para melhorar a aptidão aeróbica e a agilidade, enquanto os portugueses não enfatizam tanto essa relevância.

 

Aplicações práticas

Os resultados e a discussão do estudo levaram-me a formular 5 sugestões práticas que julgo poderem ser úteis para melhorar o planeamento e a aplicação de jogos reduzidos no processo de treino no futebol, a saber:

 

1. Personalizar os planos de treino: para otimizar a eficácia dos jogos reduzidos nas sessões de treino, os constrangimentos da tarefa propostos devem atender às preferências e aos objetivos específicos da equipa técnica. Uma abordagem personalizada permitir direcionar o desenvolvimento tático, técnico, físico e psicossocial no sentido pretendido, tendo em consideração as necessidades individuais e coletivas do plantel. 

2. Ajustar a periodização do treino: ao equacionar variações na frequência e na duração dos jogos reduzidos ao longo da temporada, os treinadores podem ajustar estrategicamente a periodização, equilibrando a relação entre carga de treino e recuperação. Adaptar o planeamento com base na cultura, na filosofia e nas nuances metodológicas locais permite rentabilizar o desempenho dos jogadores. 

3. Promover a variedade nos formatos de jogo reduzido propostos: os treinadores devem incorporar diversos formatos de jogo reduzido no seu processo de treino para trabalhar as dimensões do rendimento de forma holística. Formatos diferentes de jogo permitem usualmente atingir objetivos específicos, do ponto de vista tático, técnico, físico e fisiológico. Os formatos mais reduzidos (1v1 a 4v4) são mais propícios para o desenvolvimento técnico, da aptidão aeróbia e da componente neuromuscular (i.e., acelerações, desacelerações e mudanças de direção). Já os formatos médios (5v5 a 8v8) ou grandes (9v9 a 11v11) aparentam ser mais efetivos para o aperfeiçoamento de comportamentos táticos e para estimular ações contextualizadas de corrida em velocidade (sprint). 

4. Potenciar a integração dos jogos reduzidos nas sessões de treino: a integração de jogos reduzidos nas sessões de treino deve ocupar até, aproximadamente, 40 minutos da sessão. Não é de todo descabido propor jogos reduzidos ao longo de todo o microciclo semanal, mas nunca descurando o binómio “esforço – recuperação”. Além disso, os jogos reduzidos podem ser implementados na parte inicial da sessão (vulgo aquecimento), pois fomentam respostas agudas nos indivíduos relacionadas com as exigências subsequentes da sessão ou do jogo. A parte final (retorno à calma) também pode conter situações jogadas, desde que concebidas de modo a fazer jus às particularidades desta fase da sessão (e.g., inclusão de jogadores neutros ou jokers, ou utilização de restrições espaciais, em períodos de esforço curtos). 

5. Facilitar a diversidade de movimentos e multiplicidade de oportunidades de ação: os treinadores devem explorar a diversidade de movimentos e multiplicidade de oportunidades de ação (affordances) por meio da manipulação das características estruturais da tarefa. Alterações simples do jogo em termos espaciais, numéricos, temporais, materiais ou regulamentares podem ter um impacto considerável nos esforços físicos produzidos e nas habilidades tático-técnicas executadas.

 

Conclusão

O inquérito realizado permitiu caracterizar a aplicação de jogos reduzidos por treinadores portugueses e brasileiros, procurando compreender os “quandos”, os “comos” e os “porquês” da utilização destas atividades de treino. Os treinadores preferem realizar jogos reduzidos duas a 3 vezes por semana, com uma duração média de 16 a 30 minutos por sessão. Os jogos são principalmente utilizados para estimular a aptidão aeróbica, mudanças de direção, habilidades técnicas e comportamentos táticos. Os formatos mais reduzidos (1v1 a 4v4) são mais selecionados para potenciar a aptidão aeróbia e as capacidades neuromusculares e técnicas, embora os treinadores ajustem os constrangimentos da tarefa conforme necessário. No geral, os treinadores consideram os jogos reduzidos altamente importantes para aprimorar a aptidão aeróbica, as habilidades técnicas e os comportamentos táticos. As evidências contribuem para uma compreensão mais profunda de como os treinadores incorporam os jogos reduzidos no processo de treino, fornecendo inúmeras perspetivas sobre como otimizar o planeamento e diversificar as práticas no contexto do futebol.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Biology of Sport.