A todos quantos desvendo o véu da minha intimidade manifesto o orgulho em
ser natural de Monchique e residir na minha terra natal. Gabo o ar puro, a água
cristalina, o sossego e a predominância do verde que cobre esta magnífica serra
algarvia. Nos dias que agora passam a predominância deixou de ser o verde e
passou a ser o negro. A imponente serra de Monchique ardeu, consumida por
labaredas que se propagaram como não há memória, segundo os dizeres das gentes
mais antigas da terra. O Município de Monchique reporta cerca de 16700
hectares de floresta e mato queimados, o que corresponde a 42,3% da área total do
concelho, para não referir os imóveis e/ou outros bens materiais perdidos por muitos
cidadãos.
Em seguida tentarei, sucintamente, relatar os dias que vivi por Monchique
nesta semana que será de má memória para todos nós e cujas repercussões
perdurarão por muitos dias, meses e até anos. Não é mais do que a minha versão
dos acontecimentos, o meu testemunho, e estou certo de que muitos dos meus
conterrâneos terão mais e melhores histórias para contar e que ficarão, pela negativa, para a
posterioridade.
Sexta-feira, 3 de agosto de
2018. Deflagrou
o fogo na Perna da Negra, na região norte do concelho de Monchique, pelas
13h32. Eu estava a almoçar em casa, na vila de Monchique, mas apenas soube do
sucedido à tarde quando estava a trabalhar nas piscinas municipais. Infelizmente,
os fogos não são eventos estranhos por cá, mas o facto de ter sido decretado
“risco extremo de incêndio” pela Proteção Civil para o distrito de Faro não
augurava coisa boa. Lembro-me de comentarem comigo que a área em chamas era um
autêntico “barril de pólvora”, uma vez que havia cerros repletos de mato denso,
seco e pouca acessibilidade. Ainda nessa sexta-feira à noite foram evacuadas
pessoas nas Taipas e na Foz do Carvalhoso, a aproximadamente 20 km da vila.
Sábado, 4 de agosto de 2018.
No sábado o cenário mudou e
as chamas propagaram em direção à Altura das Corchas e Portela do Vento. O calor
e o vento forte dificultaram imenso o trabalho dos efetivos no terreno. À
tarde, pelas 17h, aquando das atividades das Jornadas Exercício e Saúde 2018
do Município de Monchique, o fumo cobriu o céu sobre a vila (imagem 1), o que
indiciava uma progressão da frente de fogo para a sede de concelho,
precisamente a área de maior densidade populacional. Nos povoados acima
mencionados as pessoas começaram a ser evacuadas das suas casas. Em Monchique,
a preocupação era cada vez mais evidente, sendo já estabelecidos termos de
comparação com o incêndio que lavrou o concelho em 2003.
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Imagem 1. Fumo sobre a vila de Monchique (4-ago-2018). |
Domingo, 5 de agosto de
2018. As
condições climáticas agravaram e o avanço do incêndio, ao invés de abrandar,
acelerou rumo às vertentes Sul e Nascente da vila. Pelo meio, foi varrendo tudo
a uma velocidade temente. Pouco após as 16h, a piscina municipal foi
evacuada e a Proteção Civil ligou-me para cancelar a última semana das Férias
Desportivas 2018. Demorei duas horas a ligar para todos os encarregados de
educação e, quando terminei essa tarefa, já o fogo estava às portas da vila (Bica
Boa, Relva de Trás, Cruz dos Madeiros). Quando
olhei pela varanda da minha casa, apesar do denso fumo que invadiu Monchique,
deu para perceber que a situação estava totalmente descontrolada. A decisão de
levar a minha esposa e o bebé para Portimão foi imediata, mas organizar a mala
com os bens necessários levou o seu tempo. Consegui regressar a Monchique pelas
22h, já as chamas desciam a encosta Sul da Picota, sendo visíveis a partir da
zona de Vale de Boi (Parque da Mina) e das Caldas de Monchique. Volvidos 30-40
minutos a estrada N266 Monchique – Portimão foi cortada pela GNR. Na vila, a
paisagem da minha casa era desoladora com o incêndio ainda a lavrar na Cruz dos
Madeiros, Cerca da Rita, Malhada Quente, Carolo, Bemposta, São Roque, Caminho
do Vale e a “subir” a encosta Norte da Picota. Entretanto, uma outra frente
progrediu em direção a Alferce, barbeando tudo em redor da aldeia, incluindo
algumas casas. O término do dia não chegou sem que as labaredas surgissem no Cerro
do Touro. Da Rua do Viador observei diversas casas ameaçadas no dito cerro, no
sítio da Mata Porcas e projeções a atingirem a rua onde me situava e a Rua do
Bemparece. O Cerro de São Pedro foi, também, atingido por projeções e só não ateou devido à rápida atuação de populares e bombeiros já prontos para
a contenção. O sentimento de impotência no momento foi indescritível e o número
de moradias que estiveram em perigo em plena vila e arredores foi impressionante
(imagem 2).
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Imagem 2. Fogo às portas da Vila de Monchique (Cerro do Touro e Caminho da Foia; fonte: bombeiros24.pt). |
Segunda-feira, 6 de agosto
de 2018. A
madrugada foi longa e só quando o fogo começou a recuar no Cerro do Touro, por
meio da alteração do vento e da intervenção dos bombeiros, me permiti descansar
algumas horas. Acordei sem água canalizada e com rede muito instável no
telemóvel. Os serviços de televisão e internet já tinham ido abaixo na véspera.
Este foi o dia em que o impensável aconteceu: jamais julguei possível sentir a
minha casa em risco dentro do perímetro da vila. De manhã fui para o quartel
dos bombeiros para ajudar no que fosse preciso e juntei-me a um grupo de malta
conhecida na logística. Por volta da hora do almoço andava a distribuir refeições
na Altura das Corchas aos operacionais no terreno com um elemento da Proteção
Civil de Castro Marim. A vista do veículo era constrangedora (imagem 3).
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Imagem 3. Casa dos Cantoneiros (Altura das Corchas, 6-ago-2018). |
Na rádio o locutor afirmava que a Proteção Civil anunciava ter 95% do fogo
controlado até ao final da tarde. Comentei com o senhor da Proteção Civil que
achava a situação demasiado otimista e, ao passar a segunda vez pela Portela da
Sernada, avistei uma frente de fogo na zona da Alcaria do Peso e do Barranco
dos Pisões a consumir mato com uma força incrível. Disse-lhe que o vento estava
de quadrante Norte e que, provavelmente, chegaria à Portela das Eiras e, no
pior dos cenários, ao Cerro do Convento; daí até entrar na vila pela vertente
Poente seria um ápice. A resposta que obtive foi um leve encolher de ombros e... silêncio. Entretanto,
ardia noutros pontos do concelho como, por exemplo, no Semedeiro e nas Caldas
de Monchique. Retornado ao quartel, a recolha e a distribuição de alimentos,
águas e outras bebidas foi uma constante. Às 19h, num período de atividade mais
calmo, vislumbrei um céu mais escuro sobre a vila e o que temia aconteceu
mesmo. O fogo estava a lavrar a Portela das Eiras e o vento aumentou de
intensidade: ia chegar ao Convento. Despedi-me e fui para casa, no sentido de
tentar perceber a gravidade do contexto. Estar sem água canalizada e com pouca
rede agravavam as circunstâncias. Por volta das 20h40 – nem sei bem precisar – vimos
as primeiras labaredas a se aproximarem, felizmente pudemos contar com a
preciosa colaboração de mais 7/8 amigos na proteção das casas e do espaço
aberto do antigo Colégio de Santa Catarina, isto com o singelo recurso a baldes
e água de um tanque aí situado. Ouvimos o guinchar grotesco de dois cabritos a
serem queimados vivos, embora o pastor do Convento tivesse conseguido salvar quase
na totalidade os dois rebanhos, um de ovelhas e outro de cabras. Aparte disso,
o zumbido das chamas a avançar no cerro e as árvores a estalar eram qualquer
coisa de muito intimidante. Num par de vezes faúlhas afoguearam o pasto seco do
antigo Colégio de Santa Catarina, a porta do fogo para o centro da vila, mas a
rápida intervenção da malta jovem no local com os tais baldes de água evitou males
maiores. A chegada algo tardia da Força Especial de Bombeiros e de um carro da
Associação de Bombeiros Voluntários de Monchique, entretanto desviado para debelar
uma projeção no sítio do Pomar Velho, permitiram controlar a situação na zona
Poente da vila (imagem 4). Na hora e meia de maior aflição fomos abordados por quatro
militares da GNR para abandonarmos a nossa casa e o espaço aberto do Colégio de
Santa Catarina, porém, perceberam que estávamos ali para ajudar e não houve detenções
ou evacuações forçadas.
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Imagem 4. Vista da minha casa sobre o Cerro do Convento, o pior já tinha passado (6-ago-2018). |
Após o episódio anterior a vila ficou às escuras com o corte de energia da
EDP. Permaneci na zona da minha casa para me assegurar que não havia reacendimentos
ou mudança de direção do vento e a maior parte do nosso grupo foi para o Bairro
da Ceiceira para colaborar com os populares e as autoridades no que fosse
necessário, pois o fogo encaminhou-se para lá. Já madrugada adentro fui buscar
os carros para a minha rua e ainda regressei ao quartel para perceber como
estava a situação no terreno. Inúmeros focos continuavam ativos no concelho e
os bombeiros não tinham mãos a medir.
Terça-feira, 7 de agosto de
2018. Outro dia
sem água e agora sem rede de telemóvel; todas as vias de acesso a Portimão
estiveram parte do dia cortadas ao trânsito. As frentes de fogo ativas lavraram
na Fóia, nas Caldas de Monchique e na Arqueta, em direção à Nave. Múltiplos
reacendimentos foram resolvidos pelos meios aéreos ou terrestres em áreas que
já tinham ardido parcialmente. Neste dia fiquei, essencialmente, pelo quartel na
ajuda ao setor da logística e, ao que me foi possível acompanhar, a vila de
Monchique passou ao lado dos sobressaltos vividos nos dois dias anteriores. O
mesmo não podemos referir em relação à generalidade do concelho.
Quarta-feira, 8 de agosto de
2018. Com a
situação aparentemente mais calma na vila e com o regresso de um ar mais suscetível
para respirar, desloquei-me a Portimão para ir buscar a família. O caminho no
sentido de Alferce – Laranjeira – Rasmalho foi percorrido de coração apertado
(imagem 5). Enquanto fui e vim, o incêndio não deu descanso aos bombeiros nas
zonas da Foia, Caldas de Monchique, Barranco do Banho e Nave. Mais a Sul, as
chamas dirigiam-se a Silves, ameaçando a povoação de Enxerim. A tarde foi
passada em limpezas. A quantidade de cinza, folhas queimadas e cascas de diferentes
tipos de árvore retirada do quintal foi considerável. No interior da habitação,
a cinza penetrou em todas as divisões com janelas.
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Imagem 5. Panorama do miradouro da Pedra Branca, Alferce (8-ago-2018). |
Quinta-feira, 9 de agosto de
2018. A manhã
foi passada no quartel, período com atividade mais moderada relativamente ao
início da semana. O horário do almoço acarretou um serviço mais intensivo,
fruto da distribuição de muitas refeições ao mesmo tempo, mas como tive de me
ausentar para ir a Portimão, não experienciei essas dificuldades. O dia foi de resolução,
embora se tivessem verificado reacendimentos na zona da Palmeira, Foia e Nave, ocorrências
estas prontamente solucionadas pelos bombeiros e GIPS.
Sexta-feira, 10 de agosto de
2018. O dia
mais calmo da semana, com ações de resolução por parte dos bombeiros e forças
militares em reposta a alguns reacendimentos. A frente de Silves concentrou as
principais preocupações do posto de comando. No quartel dos bombeiros foi dos
dias mais tranquilos que vivemos durante a semana. Alguns operacionais dos bombeiros,
GIPS, GNR, exército e forças especiais do exército começaram a desmobilizar e a
regressar a casa. O teatro de operações perdeu fulgor e a vila retomou algumas das
suas atividades quotidianas, não todas.
Longe de acusar quem quer que seja, caberá às autoridades apurar responsabilidades.
À semelhança de muitos populares senti-me desprotegido, em risco e sem o apoio (bombeiros
e carros de combate) que seria de esperar no interior do perímetro da vila. Fui
convidado a deixar a casa por mais do que uma vez mas, no nosso caso, reinou o
bom senso dos agentes da autoridade. Apesar de toda a tristeza e revolta que
possamos acumular, é tempo de nos reerguermos e lutarmos por um concelho
renovado e com mais vitalidade. Decerto que não será fácil para aqueles que
perderam tudo, ainda para mais quando não vão para novos, mas nunca os tempos
foram tão urgentes e propícios para que a comunidade monchiquense se envolva em
prol de um bem comum. Sarar as feridas e renascer Monchique não é um trabalho
para um ou para outro, é um trabalho de todos e para todos (imagem 6).
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Imagem 6. As "cicatrizes" da Picota como consequência do incêndio que lavrou Monchique. |
Aproveito o ensejo para agradecer a todos os operacionais que colaboraram para
que esta semana fosse o menos trágica possível. Aos bombeiros, forças
especiais, GIPS, GNR, exército e todos os populares e técnicos que se
voluntariaram e abnegadamente deram um pouco de si a esta missão, o meu sincero
OBRIGADO!
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