15/07/2018

Rússia 2018: O Mundial das bolas paradas

Os campeonatos do mundo de futebol da FIFA são organizados de 4 em 4 anos e, porque são disputados pelas melhores seleções nacionais e pelos melhores jogadores do planeta, constituem uma oportunidade singular para os investigadores e analistas do desempenho identificarem e compreenderem as tendências contemporâneas da modalidade.

Imagem 1. O livre direto de Cristiano Ronaldo à Espanha no Rússia 2018 (fonte: www.fifa.com).

O Mundial Rússia 2018 tem sido pródigo em golos concretizados através de esquemas táticos ou, como são mais comummente conhecidos, em situações de bola parada. Esta é seguramente a tendência mais evidente do certame. Para termos uma ideia concreta, estudos científicos reportam taxas de golos através de bola parada entre os 25% e os 40% em competições oficiais (Sainz de Baranda & López-Riquelme, 2012). Se nos campeonatos do mundo da FIFA de 2010 (África do Sul) e 2014 (Brasil) os esquemas táticos deram origem a 24,14% e 17,54% dos golos, respetivamente (Njororai, 2013; Rumpf et al., 2016), o maior registo obtido foi verificado no Mundial de 1998 (França), com cerca 36% dos golos marcados em situações fixas do jogo. Este anterior record foi agora largamente superado na presente edição Rússia 2018, com uma taxa de 42,6% de golos obtidos em esquemas táticos, fruto de 72 golos de bola parada de um total de 169 golos no torneio.

Figura 1. Evolução das taxas de golos de bola parada no Mundial Rússia 2018.
(clique para ampliar)

A informação que consta na figura 1 demonstra que em todas as fases da competição as taxas de golos de bola parada foram sempre (anormalmente) altas, acima dos 33%. A importância deste tipo de situações de jogo não foi uma mera casualidade circunstancial, foi sim um fator de rendimento determinante para o sucesso ofensivo das seleções no decurso desta fase final na Rússia. Por isso, dedicar apenas 10-30 minutos de um microciclo semanal para este tipo de situações, geralmente na última sessão de trabalho, parece-me bastante redutor e desfasado daquilo que é o jogo de futebol contemporâneo. Pior é quando se alega que os esquemas táticos são uma aleatoriedade, um acaso, sendo esse o principal motivo pelo qual não são alvo de intervenção/aperfeiçoamento no processo de treino. No futebol de elite, se em cada 10 golos 4 são de bola parada, é lógico prescrever exercícios direcionados para o desenvolvimento dos métodos ofensivos e defensivos nos esquemas táticos em 2-4 unidades de treino da semana, dependendo do número de unidades que o microciclo engloba. Contudo, que esquemas táticos devemos priorizar neste âmbito?

Figura 2. Golos obtidos no Mundial Rússia 2018 por tipo de bola parada.
(clique para ampliar).

A figura 2 exibe a distribuição dos golos obtidos no Mundial pelos tipos de bola parada mais vulgares. Da totalidade das situações estáticas bem-sucedidas, os pontapés de canto foram os que mais contribuíram para o efeito (33,33%), o que é consistente com os dados observados nos campeonatos do mundo de 2006 (Alemanha) e 2010 (África do Sul) (Sainz de Baranda & López-Riquelme, 2012; Njororai, 2013). Os penáltis, aos quais subtraímos naturalmente os desempates por grandes penalidades, constituíram uma fatia importante das bolas paradas bem-sucedidas (31,94%), notando-se um aumento substancial em relação ao número de golos concretizados nestas circunstâncias (9) no Mundial 2010 (Njororai, 2013). Os pontapés livres laterais (16,67%), os pontapés livres frontais diretos (8,33%) e indiretos (6,94%), e os lançamentos laterais longos colocados diretamente na área de penálti adversária (2,78%) compuseram o quadro dos golos apontados a partir de bola parada. Embora todos os esquemas táticos devam ser aprimorados no treino, porque todos são passíveis de gerar um golo decisivo numa modalidade caracterizada por resultados numéricos reduzidos (e.g., média de 2,64 golos/jogo neste campeonato), a importância relativa de cada um deles deve ser ajustada à realidade competitiva da equipa (frequência de esquemas táticos) e à respetiva possibilidade de êxito (eficácia). Segundo os dados do torneio, os treinadores deveriam priorizar o trabalho dos esquemas táticos do seguinte modo: (1) pontapés de canto, (2) grandes penalidades, (3) pontapés livres laterais, (4) pontapés livres frontais e (5) lançamentos laterais. Convém não esquecer que 4 jogos foram decididos no desempate por grandes penalidades (3 dos oitavos e 1 dos quartos de final) e houve 6 penáltis falhados/defendidos pelo Gr no decurso do tempo regulamentar ou do prolongamento dos jogos, o que reforça a relevância deste tipo de bola parada no evento em análise.

Imagem 2. Penálti de Modric defendido por Kasper Schmeichel (fonte: www.fifa.com).

Uma outra premissa muito discutida é que “os selecionadores não são treinadores”, são apenas “gestores de recursos humanos” sob a égide de que “não há tempo para treinar e refinar processos coletivos em contexto de seleção”. Na minha modesta opinião é um disparate. Ainda que não seja possível preparar uma equipa de forma análoga ao que se faz nos clubes, a prestação de uma seleção nacional vai muito além do resultado de 3-4 semanas de preparação para um campeonato do mundo. Para atestar esta ideia não me alongarei em muitas palavras, pois os vídeos seguintes (p.f., clicar no link para visualizar) comprovam que é possível aperfeiçoar processos coletivos (no caso, bolas paradas) em pouco tempo de trabalho ou em poucas unidades de treino, isto se não forem situações já trabalhadas e implementadas em ocasiões prévias (fase de qualificação ou outras competições):


Para ter havido um incremento significativo na percentagem de golos de bola parada teve que haver, em sentido inverso, um decréscimo abrupto no valor relativo de golos marcados em jogo corrido. A especulação avançada pelos media não andará muito longe da verdade. Compreende-se que há duas formas básicas de uma equipa controlar o jogo: controlo da bola pela dominância da posse; controlo do espaço de jogo, entregando a iniciativa à equipa oponente. O ideal passará sempre por uma forma hídrida de abordar o jogo. O Mundial da Rússia 2018 tem-nos demonstrado estratégias mais profícuas pelo controlo do espaço em detrimento do controlo da posse de bola. Portanto, os processos individuais e coletivos inerentes à fase de organização defensiva superaram os processos antagónicos da fase ofensiva. A incapacidade das equipas em perturbar eficazmente organizações defensivas mais sofisticadas determinou o aumento da preponderância dos esquemas táticos nos resultados finais dos jogos. Por sua vez, a própria introdução do Video Assistant Referees (VAR) fez com que fossem descortinados e assinalados, por exemplo, mais penáltis neste Mundial como nunca acontecera anteriormente.

Em síntese, as bolas paradas estão em voga no futebol moderno e cabe a todos os treinadores e profissionais da modalidade encararem estas situações como uma séria tendência evolutiva do jogo. Paradoxalmente, a vertente estética ou o “romantismo” (o futebol bonito) que tanto apreciamos parece já não dar os frutos de outrora. Repleto de razão estava o nosso Camões quando sabiamente escreveu “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

Referências
Njororai, W. W. S. (2013). Analysis of goals scored in the 2010 world cup soccer tournament held in South Africa. Journal of Physical Education and Sport, 13(1), 6-13.
Rumpf, M. S., Silva, J. R., Hertzog, M., Farooq, A., & Nassis, G. (2016). Technical and physical analysis of the 2014 FIFA World Cup Brazil: Winners vs. losers. The Journal of Sports Medicine and Physical Fitness, 57(10), 1338-1343.
Sainz de Baranda, P. & Lopez-Riquelme, D. (2012). Analysis of corner kicks in relation to match status in the 2006 World Cup. European Journal of Sport Science, 12(2), 121-129.


PS. – Parabéns à França pela conquista do seu segundo título de Campeão do Mundo da FIFA.

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