Os campeonatos do mundo de
futebol da FIFA são organizados de 4 em 4 anos e, porque são disputados pelas
melhores seleções nacionais e pelos melhores jogadores do planeta, constituem
uma oportunidade singular para os investigadores e analistas do desempenho
identificarem e compreenderem as tendências contemporâneas da modalidade.
Imagem 1. O livre direto de Cristiano Ronaldo à Espanha no Rússia 2018 (fonte: www.fifa.com). |
O Mundial Rússia 2018 tem sido pródigo em golos concretizados através de esquemas táticos ou, como são mais comummente conhecidos, em situações de bola parada. Esta é seguramente a tendência mais evidente do certame. Para termos uma ideia concreta, estudos científicos reportam taxas de golos através de bola parada entre os 25% e os 40% em competições oficiais (Sainz de Baranda & López-Riquelme, 2012). Se nos campeonatos do mundo da FIFA de 2010 (África do Sul) e 2014 (Brasil) os esquemas táticos deram origem a 24,14% e 17,54% dos golos, respetivamente (Njororai, 2013; Rumpf et al., 2016), o maior registo obtido foi verificado no Mundial de 1998 (França), com cerca 36% dos golos marcados em situações fixas do jogo. Este anterior record foi agora largamente superado na presente edição Rússia 2018, com uma taxa de 42,6% de golos obtidos em esquemas táticos, fruto de 72 golos de bola parada de um total de 169 golos no torneio.
Figura 1. Evolução das taxas de golos de bola parada no Mundial Rússia 2018. (clique para ampliar) |
A informação que consta na
figura 1 demonstra que em todas as fases da competição as taxas de golos de
bola parada foram sempre (anormalmente) altas, acima dos 33%. A importância
deste tipo de situações de jogo não foi uma mera casualidade circunstancial,
foi sim um fator de rendimento determinante para o sucesso ofensivo das
seleções no decurso desta fase final na Rússia. Por isso, dedicar apenas 10-30
minutos de um microciclo semanal para este tipo de situações, geralmente na
última sessão de trabalho, parece-me bastante redutor e desfasado daquilo que é
o jogo de futebol contemporâneo. Pior é quando se alega que os esquemas táticos
são uma aleatoriedade, um acaso, sendo esse o principal motivo pelo qual não são
alvo de intervenção/aperfeiçoamento no processo de treino. No futebol de elite,
se em cada 10 golos 4 são de bola parada, é lógico prescrever exercícios
direcionados para o desenvolvimento dos métodos ofensivos e defensivos nos
esquemas táticos em 2-4 unidades de treino da semana, dependendo do número de
unidades que o microciclo engloba. Contudo, que esquemas táticos devemos
priorizar neste âmbito?
Figura 2. Golos obtidos no Mundial Rússia 2018 por tipo de bola parada. (clique para ampliar). |
A figura 2 exibe a
distribuição dos golos obtidos no Mundial pelos tipos de bola parada mais
vulgares. Da totalidade das situações estáticas bem-sucedidas, os pontapés de
canto foram os que mais contribuíram para o efeito (33,33%),
o que é consistente com os dados observados nos campeonatos do mundo de 2006 (Alemanha)
e 2010 (África do Sul) (Sainz de Baranda & López-Riquelme, 2012; Njororai,
2013). Os penáltis, aos quais subtraímos naturalmente os desempates por grandes
penalidades, constituíram uma fatia importante das bolas paradas bem-sucedidas (31,94%), notando-se um aumento substancial em relação
ao número de golos concretizados nestas circunstâncias (9) no Mundial 2010
(Njororai, 2013). Os pontapés livres laterais (16,67%),
os pontapés livres frontais diretos (8,33%) e
indiretos (6,94%), e os lançamentos laterais
longos colocados diretamente na área de penálti adversária (2,78%) compuseram o quadro dos golos apontados a
partir de bola parada. Embora todos os esquemas táticos devam ser aprimorados
no treino, porque todos são passíveis de gerar um golo decisivo numa modalidade
caracterizada por resultados numéricos reduzidos (e.g., média de 2,64 golos/jogo
neste campeonato), a importância relativa de cada um deles deve ser ajustada à
realidade competitiva da equipa (frequência de esquemas táticos) e à respetiva
possibilidade de êxito (eficácia). Segundo os dados do torneio, os treinadores
deveriam priorizar o trabalho dos esquemas táticos do seguinte modo: (1)
pontapés de canto, (2) grandes penalidades, (3) pontapés livres laterais, (4)
pontapés livres frontais e (5) lançamentos laterais. Convém não esquecer que 4
jogos foram decididos no desempate por grandes penalidades (3 dos oitavos e 1
dos quartos de final) e houve 6 penáltis falhados/defendidos pelo Gr no decurso
do tempo regulamentar ou do prolongamento dos jogos, o que reforça a
relevância deste tipo de bola parada no evento em análise.
Imagem 2. Penálti de Modric defendido por Kasper Schmeichel (fonte: www.fifa.com). |
Uma outra premissa muito
discutida é que “os selecionadores não são treinadores”, são apenas “gestores
de recursos humanos” sob a égide de que “não há tempo para treinar e refinar
processos coletivos em contexto de seleção”. Na minha modesta opinião é um disparate.
Ainda que não seja possível preparar uma equipa de forma análoga ao que se faz
nos clubes, a prestação de uma seleção nacional vai muito além do resultado de
3-4 semanas de preparação para um campeonato do mundo. Para atestar esta ideia
não me alongarei em muitas palavras, pois os vídeos seguintes (p.f., clicar no
link para visualizar) comprovam que é possível aperfeiçoar processos coletivos (no
caso, bolas paradas) em pouco tempo de trabalho ou em poucas unidades de
treino, isto se não forem situações já trabalhadas e implementadas em ocasiões prévias
(fase de qualificação ou outras competições):
Para ter havido um
incremento significativo na percentagem de golos de bola parada teve que haver,
em sentido inverso, um decréscimo abrupto no valor relativo de golos marcados
em jogo corrido. A especulação avançada pelos media não andará muito longe da verdade. Compreende-se que há duas
formas básicas de uma equipa controlar o jogo: controlo da bola pela dominância
da posse; controlo do espaço de jogo, entregando a iniciativa à equipa
oponente. O ideal passará sempre por uma forma hídrida de abordar o jogo. O
Mundial da Rússia 2018 tem-nos demonstrado estratégias mais profícuas pelo
controlo do espaço em detrimento do controlo da posse de bola. Portanto, os
processos individuais e coletivos inerentes à fase de organização defensiva
superaram os processos antagónicos da fase ofensiva. A incapacidade das equipas
em perturbar eficazmente organizações defensivas mais sofisticadas determinou o
aumento da preponderância dos esquemas táticos nos resultados finais dos jogos.
Por sua vez, a própria introdução do Video
Assistant Referees (VAR) fez com que fossem descortinados e assinalados,
por exemplo, mais penáltis neste Mundial como nunca acontecera anteriormente.
Em síntese, as bolas
paradas estão em voga no futebol moderno e cabe a todos os treinadores e
profissionais da modalidade encararem estas situações como uma séria tendência
evolutiva do jogo. Paradoxalmente, a vertente estética ou o “romantismo” (o
futebol bonito) que tanto apreciamos parece já não dar os frutos de outrora. Repleto
de razão estava o nosso Camões quando sabiamente escreveu “mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades”.
Referências
Njororai, W. W. S. (2013). Analysis
of goals scored in the 2010 world cup soccer tournament held in South Africa. Journal of Physical Education and Sport, 13(1),
6-13.
Rumpf, M. S., Silva, J. R., Hertzog, M.,
Farooq, A., & Nassis, G. (2016). Technical and physical analysis of the
2014 FIFA World Cup Brazil: Winners vs. losers. The Journal of Sports Medicine and Physical Fitness, 57(10),
1338-1343.
Sainz de Baranda, P. & Lopez-Riquelme,
D. (2012). Analysis of corner kicks in relation to match
status in the 2006 World Cup. European Journal of Sport Science, 12(2), 121-129.
PS. – Parabéns à França pela
conquista do seu segundo título de Campeão do Mundo da FIFA.
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