Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.
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Autores: Bastias, E., Otte, F. W., Vaughan, J., Swainston, S., & O'Sullivan, M.
Data de publicação: 31-janeiro-2024
Título: An ecological approach for
skill development and performance in soccer goalkeeper training: Empirical
evidence and coaching applications
Referência: Bastias, E., Otte, F. W., Vaughan, J., Swainston, S.,
& O’ Sullivan, M. (2024). An ecological approach for
skill development and performance in soccer goalkeeper training: Empirical
evidence and coaching applications. Journal of Sports Sciences, 1–12.
Advance online publication. https://doi.org/10.1080/02640414.2024.2306449
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 50 – fevereiro
de 2024.
Apresentação do problema
A dinâmica ecológica tem surgido como uma estrutura teórica de referência para o desenvolvimento de habilidades e para a melhoria do desempenho desportivo (Araújo & Davids, 2016; O’Sullivan et al., 2021; Vaughan et al., 2019). O respetivo racional pressupõe que o desenvolvimento das habilidades é um processo dinâmico, no qual os praticantes e o ambiente estão intrinsecamente ligados. Esta teoria sublinha que a performance é o resultado de uma interação contínua que requer uma constante autorregulação e adaptação do sistema percetivo-motor (Araújo & Davids, 2016; Davids et al., 2017). Mais especificamente, os sistemas percetivo-motores adaptam-se às capacidades do indivíduo, à tarefa e às propriedades do ambiente (Gibson, 1979; Newell, 1986). No desporto, os constrangimentos da tarefa visam moldar a intenção da atividade, incluindo as dimensões do campo, o número de jogadores, número e tipo de balizas, sinalizadores e modificação das regras. Os constrangimentos ambientais geralmente vão além da manipulação do treinador, como o clima, a temperatura e a iluminação (Newell, 1986). Embora haja evidências que sustentam que os constrangimentos da tarefa e do ambiente influenciam a aprendizagem e o desempenho desportivo (Edelman & Gally, 2001; Ribeiro et al., 2019a, 2019b), ainda há a necessidade de confirmar empiricamente este raciocínio, especialmente relevante em contextos específicos como o treino específico de guarda-redes (GR) no futebol.
O impacto dos constrangimentos da tarefa e do ambiente na performance desportiva tem sido estudado em diversas modalidades (Aguiar et al., 2012; Sarmento et al., 2018). Por exemplo, no futebol, ajustar o tamanho da área de treino pode afetar a frequência de ações básicas, como interceções, remates à baliza ou desarmes (Casamichana & Castellano, 2010; Fleay et al., 2018). Introduzir um desequilíbrio numérico nas equipas (e.g., 6v5) pode aumentar o número de passes bem-sucedidos em jogos reduzidos (Bonney et al., 2020). Embora estudos anteriores confirmem que a aquisição de habilidades motoras melhora com a prática acumulada (Dayan & Cohen, 2011; Doyon & Ungerleider, 2002; Pascual-Leone et al., 1994), os efeitos do treino no desempenho podem variar consideravelmente dependendo da tarefa (Ashby et al., 2010; Doyon & Benali, 2005). Os constrangimentos ambientais também podem influenciar significativamente o desempenho técnico dos jogadores. Aliás, tem sido produzida investigação em torno do impacto do clima nas capacidades fisiológicas dos atletas (Carling et al., 2011; Mohr et al., 2012) e nas oportunidades de golo durante um jogo (Brocherie et al., 2015).
Contudo, examinar a influência dos constrangimentos da
tarefa e do ambiente no desempenho desportivo pode ser condicionado por fatores
de confusão específicos, ou seja, que podem mascarar os efeitos das variáveis
do estudo na performance dos jogadores (Bernards et al., 2017; Teune et al.,
2022a). Por exemplo, a estrutura da sessão de treino (i.e., a ordem das tarefas
após o aquecimento) pode deturpar o efeito dos constrangimentos (Araújo &
Davids, 2016), ao regular o estado físico e/ou coordenativo crítico dos
participantes no decurso da sessão de treino. Deste modo, a análise dos
resultados da aplicação de constrangimentos no desempenho, em vários contextos
desportivos tão específicos como o treino de GR (figura 2), merece mais atenção
académica.
Figura 2. Guarda-redes da equipa feminina do Liverpool FC em
situação de treino específica (imagem não publicada pelos autores; fonte: https://theathletic.com).
Constrangimentos da tarefa e ambientais no treino de GR
No futebol, o GR enfrenta uma variedade de desafios que
exigem adaptação constante às dinâmicas do jogo (Otte et al., 2022; Quinn et
al., 2023; West, 2018). Este ajuste abrange aspetos tático-técnicos, físicos,
psicológicos e sociais. A perceção das respetivas oportunidades de ação varia substancialmente
consoante a informação ambiental disponível (O’Sullivan et al., 2021; Ribeiro et
al., 2019b). É neste âmbito que pesquisas delineadas segundo a abordagem
ecológica enriquecem a nossa compreensão acerca da aquisição de habilidades por
parte dos GR. Recentemente, foi proposta uma estrutura teórica precisamente para
contextualizar o treino de GR do ponto de vista ecológico (figura 3): Periodization
of Skill Training (PoST), em português “Periodização da Aquisição de Habilidades”
(Otte et al., 2019; Otte et al., 2021).
Figura 3. Representação da estrutura teórica “Periodização da
Aquisição de Habilidades” para contextos específicos de treino (adaptado de
Otte et al., 2019).
Esta proposta providencia uma clara distinção entre a aprendizagem
de habilidades e a preparação para o rendimento, introduzindo princípios de
treino e etapas de desenvolvimento das habilidades. Estas etapas centram-se em 2
constrangimentos da tarefa fundamentais: 1) o nível de “representatividade do
jogo” no treino e 2) a complexidade percebida das tarefas (Teune et al., 2022a,
2022b). Não obstante o desenvolvimento desta estrutura teórica, a influência da
representatividade do jogo e da complexidade no desempenho dos GRs ainda não
foi testada empiricamente. O objetivo deste estudo foi analisar como
constrangimentos da tarefa e ambientais, juntamente com potenciais fatores de
confusão relacionados com a amostra, influenciaram o desempenho de duas GRs
profissionais de futebol feminino, num conjunto de 13 tarefas de treino.
Métodos
· Participantes
Foram recrutadas duas GRs
(doravante designadas por GR1 e GR2) com experiência de 2 anos na primeira
divisão feminina sueca e passado em seleções nacionais. Para assegurar
complexidade e representatividade semelhantes ao jogo real, envolveram-se
outras duas GRs da equipa Sub-19, além dos treinadores de GR e jogadores de
campo, quando necessário. Todos os participantes deram consentimento informado
para a experiência.
· Desenho do estudo e análise de dados
Tarefas de treino: a recolha de dados ocorreu ao longo de 57 dias de pré-época numa equipa feminina da primeira divisão sueca. As GRs do estudo foram expostas a 13 tarefas de treino representativas do ponto de vista ecológico, concebidas segundo o racional teórico proposto por O’Sullivan et al. (2021). As tarefas incluíram jogos em espaços reduzidos e formas jogadas, ajustáveis em complexidade e representatividade. Não foram dados feedbacks explícitos pelos treinadores durante as sessões, seguindo as diretrizes de Otte et al. (2019). O aquecimento antes das tarefas seguiu o protocolo FIFA11+S para prevenção de lesões, visando a ativação muscular dos membros superiores e inferiores.
Variáveis preditivas: as tarefas de treino
foram concebidas com base nos seguintes elementos: i) 8 constrangimentos da
tarefa, ou seja, complexidade numérica, continuidade, função
do jogador, equilíbrio da equipa, dimensões do campo, graus
de liberdade espacial, representatividade paisagística e recorrência
do treino; ii) 1 constrangimento ambiental, ou seja, o clima; e iii)
ordem de atividade após o aquecimento, como uma variável referente à
ordem das tarefas de estudo após o aquecimento, de modo a testar potenciais
efeitos de confusão no desempenho das GRs. Uma síntese das definições destas
variáveis consta na tabela 1.
Tabela 1. Variáveis independentes do estudo, em função do tipo de constrangimento, e respetivas definições operacionais (adaptado de Bastias et al., 2024).
Coeficientes de desempenho dos GRs: cada guarda-redes recebeu pontos por diferentes ações durante o treino, como defesas ou passes. Os coeficientes de desempenho foram calculados dividindo os pontos pelo número de tentativas, resultando numa média para cada tarefa e GR. Este cálculo não levou em conta a quantidade de tentativas, como confirmado pela correlação entre pontos e tentativas.
Análise estatística: seguindo
o Modelo de Pesquisa Aplicada para Ciências do Desporto (ARMSS; Bishop, 2008),
foram realizadas análises de variância univariadas (ANOVA) para testar as
relações entre o coeficiente de desempenho, usado como variável dependente, e
os 10 preditores (ou variáveis independentes). As variáveis foram transformadas
em logaritmo antes da análise para atender às assunções de normalidade e
homogeneidade de variância. Além disso, foram realizadas ANOVAs múltiplas para
explorar a variação do coeficiente de desempenho em relação aos preditores do
estudo, utilizando um processo de eliminação progressiva para obter o modelo
mais adequado. Foram utilizadas regressões lineares para investigar as relações
entre o coeficiente de desempenho e os preditores mais significativos. Por fim,
foram calculados coeficientes de correlação de Pearson para testar a associação
entre os preditores mais significativos e o coeficiente de desempenho. Foram
ainda utilizados modelos lineares mistos para testar o efeito das variáveis
independentes sobre o coeficiente de desempenho, com a ordem de atividade
após o aquecimento como fator aleatório. As análises foram executadas no
software R versão 3.5.2 (R Core Team, 2018), com significância estatística
definida em α = 0.05.
Principais resultados
Os coeficientes de desempenho das GRs variaram
consideravelmente entre as tarefas de treino. Para a GR1, oscilou entre 0,12 e
0,75, com uma média de 0,49 ± 0,06, enquanto para a GR2 variou entre 0,10 e
0,92, com média de 0,59 ± 0,07 (tabela 2). O coeficiente de variação do
desempenho entre as tarefas de treino foi de 40% para a GR1 e 37,7% para a GR2.
Tabela 2. Coeficientes de desempenho das duas GR do estudo ao longo das 13 tarefas de treino (adaptado de Bastias et al., 2024).
Nota 1: O
coeficiente de desempenho foi calculado através da divisão do número de pontos
alcançados (pa) por cada GR pelo número de pontos potenciais (pp) que poderiam
alcançar.
Nota 2: Para a
GR1, os dados da tarefa 5 não foram apresentados (na) devido à participação da
atleta num encontro da equipa nacional.
Os resultados da ANOVA revelaram relações significativas entre o desempenho e alguns constrangimentos. Para a GR1, o desempenho esteve positivamente relacionado com a complexidade numérica e mostrou uma tendência de relação positiva com as dimensões do campo. No caso da GR2, o desempenho correlacionou-se positivamente com a complexidade numérica, representatividade paisagística e dimensões do campo. Além disso, a ordem de atividade após o aquecimento também teve influência no seu desempenho. A relação significativa entre o coeficiente de desempenho e a ordem de atividade após o aquecimento para a GR2 sugere que fatores de confusão podem ter influenciado as relações observadas entre as variáveis preditoras e o coeficiente de desempenho e, portanto, validam o uso de efeitos aleatórios na modelagem.
As análises de regressão indicaram que, para as duas GRs,
a relação entre o coeficiente de desempenho e a complexidade numérica é mais
bem explicada por um modelo de regressão assintótica. A complexidade numérica
esteve correlacionada com as dimensões do campo e tende a estar
correlacionada com a representatividade paisagística. As dimensões do
campo estiveram correlacionadas com a representatividade paisagística.
Por fim, modelos de regressão linear múltipla mostraram que uma combinação
linear de alguns destes fatores elucida melhor o desempenho do que modelos
simples isoladamente, explicando 49% da variância observada para a GR1 e 46%
para a GR2.
Aplicações práticas
Os resultados deste estudo têm uma grande transferibilidade para o contexto prático. Foi possível redigir 5 sugestões para serem aplicadas em situações de treino específicas para GR:
1. Equacionar os diversos constrangimentos da tarefa: as tarefas de treino que mantêm maior proximidade com o jogo – nomeadamente, o número de jogadores, as dimensões do campo e os elementos dentro do espaço de treino –, parecem beneficiar a eficácia dos GRs em competição. A complexidade numérica teve um efeito mais significativo sobre o coeficiente de desempenho, pelo que constitui um constrangimento-chave na conceção de tarefas de treino/aprendizagem representativas para GRs. Cerca de 47% da variabilidade observada no desempenho das GRs foi explicada pela combinação dos constrangimentos da tarefa, o reflete a importância da correta manipulação de condicionantes estruturais no processo de treino.
2. Impacto prático da complexidade numérica: os treinadores são encorajados a conceber tarefas de treino que envolvam um maior número de jogadores em interação, uma vez que tende a produzir melhores desempenhos nos GRs. Por exemplo, propor formas jogadas mais realistas, como o 3v2+GR, aumenta a representatividade e complexidade do cenário de treino. Pelo contrário, tarefas de baixa complexidade, como situações isoladas de 1v1, podem limitar a perceção e eficácia dos GRs na execução de ações específicas. Portanto, os treinadores devem manipular a complexidade numérica das tarefas de treino para facilitar a aquisição e o aperfeiçoamento das habilidades dos GRs, promovendo assim a melhoria do seu desempenho em contextos competitivos.
3. Exemplo concreto de como aumentar a complexidade
numérica num exercício de GR: os resultados dos modelos mostraram que 4
ou 5 jogadores/treinadores em interação constitui a unidade mínima de
complexidade dentro da tarefa que providencia um contexto informacional mais
representativo para os GRs. Este dado sugere que as sessões de treino de GR
tradicionais, limitadas a um grupo de 1 ou 2 GRs em interação com o treinador
de GR, podem ser insuficientes para conduzir de forma ideal a aprendizagem e a
adaptação tático-técnica para os requisitos competitivos. Num contexto de 3
jogadores com 1 GR, a atividade pode ser projetada de maneiras distintas: (1)
relação bivariada com o GR na baliza (cada jogador com uma bola a rematar de
forma previsível; figura 4, painel à esquerda); (2) interações diversas prévias
à finalização (grupo de 3 jogadores com uma bola; figura 4, painel à direita).
Figura 4. Ilustração de como um grupo de 4 GRs pode ser treinado
durante uma atividade de remate, ou seja, um GR (a preto) na baliza e 3 a
finalizar (a verde) (Bastias et al., 2024).
A primeira opção provavelmente gerará mais remates, mas estabelece apenas uma carga total de complexidade de 3 (i.e., 2!/2 = 1 para cada jogador com o GR). Por outro lado, a segunda opção configura uma tarefa de maior complexidade, expandindo os graus de liberdade dos GRs, ocasionando um aumento significativo de interações (i.e., 4!/2 = 12). Este tipo de atividade envolve uma progressão desproporcional em função do número de jogadores envolvidos, tornando a abordagem mais representativa no que ao desempenho específico dos GRs diz respeito.
4. A relevância da configuração do espaço no treino de GRs: os treinadores devem priorizar atividades específicas para GR em espaços amplos, promovendo a recorrência de situações de remate e cruzamento de média a longa distância. Este tipo de formato oferece aos GRs mais tempo e espaço para reagir e executar ações controladas, facilitando também as transições defesa-ataque. Privilegiar ambientes de treino com menos jogadores e dimensões de campo mais representativas pode potenciar a aquisição e o aperfeiçoamento das habilidades próprias dos GRs.
5. A prática acumulada de treino é relativa: a quantidade de dias de
prática acumulados não influenciou diretamente o desempenho das GRs estudadas, insinuando
que a performance não depende somente da quantidade de treino. Contudo, para a
GR2, a interação entre o número de dias de prática acumulados e a complexidade
numérica foi significativa. Assim, a quantidade de prática, por si só, não
garante um desempenho eficaz, mas pode ser relevante quando combinada com
fatores qualitativos, como a carga informacional suscitada pelo exercício. Em
suma, a aquisição de habilidades e a melhoria do desempenho requerem mais do
que horas de treino, exigindo que haja uma afinação progressiva às informações
relevantes do envolvimento.
Conclusão
O estudo reforça a importância da manipulação de
constrangimentos da tarefa, como o número de GRs envolvido e as características
espaciais, em cenários de treino, como meio para regular as intenções e os
comportamentos motores específicos. Além disso, a avaliação das performances
dos GRs, especialmente durante o treino, requer uma perspetiva baseada em
análises multivariadas. A adoção de uma tal abordagem exige uma colaboração
estreita entre treinadores e investigadores/analistas, a fim de desenvolver
soluções que simplifiquem as múltiplas dimensões da informação a um modelo mais
interpretável, permitindo assim a melhoria da conceção das tarefas de treino. Apesar das limitações
inerentes ao estudo, os resultados suportam o racional subjacente à dinâmica
ecológica e à abordagem baseada nos constrangimentos, em particular no contexto
do treino de GR. Estas correntes teóricas contrastam totalmente com as
metodologias tradicionais que se concentram em atividades técnicas isoladas,
frequentemente desvinculadas do contexto situacional do jogo.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram originalmente
escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua
portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal of Sports Sciences.
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