NOTA PRÉVIA: O presente texto foi publicado no número mais recente da Revista AF Algarve (n.º 72, Fevereiro / Março 2013).
Imagem: Capa da Revista AF Algarve, n.º 72, Fevereiro / Março 2013 (download pdf aqui).
A Relevância do Microciclo nos Modelos de Periodização Atuais no Futebol
Nos jogos desportivos coletivos, onde se inclui o futebol, o tipo de periodização do treino não é idêntico ao comummente observado nos desportos individuais. Há algumas décadas atrás, era vulgar projetar e implementar estruturas de planeamento fortemente assentes no desenvolvimento das capacidades condicionais (i.e., força, velocidade, resistência e flexibilidade) no treino de modalidades coletivas. Tratando-se de desportos com estruturas de rendimento complexas, acabou por se perceber que os modelos de periodização clássicos eram bastante limitados. Por isso, a teoria e a metodologia do treino têm vindo a evoluir no sentido de dar resposta às necessidades, cada vez mais específicas e exigentes, desta tipologia de desportos, designadamente no que concerne ao alto rendimento.
Particularmente no futebol, a lógica de ajustar a periodização ao calendário competitivo enfatizou o microciclo como estrutura fundamental de planeamento ao longo da época desportiva (Seirul-lo Vargas, 2001). A sua definição surge em função da distribuição cíclica dos jogos (competição), permitindo organizar e assegurar a coerência dos processos/conteúdos de treino numa determinada sequência de sessões, embora corresponda normalmente a uma semana de preparação. Nos modelos de periodização mais recentes, com destaque para a Periodização Tática, o desenvolvimento do “jogar” é concretizado mediante o estabelecimento de um microciclo padrão. Esta microestrutura é padronizada, contudo, os seus conteúdos não são estanques, nem tão pouco devem ser repetidos de forma rotineira. Segundo Guilherme Oliveira, citado por Silva (2008), o padrão semanal é basilar para a organização do processo, porém, após o jogo, é feita uma análise e elaborado um conjunto de objetivos a atingir na semana seguinte (dinâmica aquisitiva do “jogar”), pelo que os conteúdos e os meios de treino podem ser muito diversificados. A competição assume um papel determinante na configuração do padrão semanal, na medida em que se constitui como o meio mais fidedigno de identificar se o que o treinador pretende está ou não a ser conseguido, se as ideias estão ou não a ser transmitidas corretamente.
Periodizar o Treino de Crianças/Jovens: Algumas Considerações
Não é novidade que o treino de jovens não se pauta pelos mesmos critérios da prática desportiva adulta. Apesar disso, a realidade mostra-nos um elevado grau de generalização dos modelos de periodização nos diferentes níveis de rendimento, inclusivamente nas diversas etapas de formação no futebol. Por exemplo, a Periodização Tática, que tem vindo a ganhar imensos seguidores na modalidade, tem sido aplicada indiscriminadamente tanto a equipas de elite, como a nível sénior no distrital e, disparatadamente, no treino com crianças/jovens com menos de 13 anos de idade.
Vítor Frade, conhecido como o mentor da Periodização Tática, admite que este modelo de periodização deve ser introduzido somente a partir da fase de especialização, ou seja, do escalão de Iniciados (Sub-15) (Fonseca & Garganta, 2006). Esta ideia adquire significado uma vez que este modelo de periodização apresenta uma orientação conceptual e metodológica no sentido do alto rendimento. Portanto, não é o processo de formação de jovens na modalidade que está em causa, mas sim a organização da forma desportiva dos jogadores (o individual) e da equipa (o coletivo), no quadro de ações e comportamentos inerentes ao modelo de jogo pretendido pelo treinador.
Treinar com intensidades elevadas desde o período preparatório da época não faz muito sentido no treino com crianças/jovens. Nos escalões de formação de base, a aprendizagem nas dimensões técnica e tática não é um processo imediato, requerendo mais o volume que a intensidade, no intuito de aperfeiçoar ações técnicas, desenvolver a capacidade de raciocínio tático, evitando, por outro lado, o insucesso que conduz à saturação, desistência e abandono do processo de treino e competição (Stafford, 2005). Outra questão essencial na formação do jovem praticamente é a relação estabelecida entre os princípios da multilateralidade e da especificidade. Ambos são importantes, porém, a sua importância relativa varia ao longo do processo; o treinador deve procurar consagrar cumulativamente o papel destes dois princípios no decurso de cada etapa de formação. Adotando a Periodização Tática, toma-se a especificidade como princípio orientador do treino, havendo pouco tempo para o trabalho de caráter geral ou multilateral. O treino em especificidade, que não é o “sempre em contacto com a bola”, como erradamente alguns treinadores referem, pode não ser uma condição exclusiva nos escalões de formação de base. O jogo deve ser o principal meio para promover a aprendizagem da modalidade, no entanto, o trabalho de cariz multilateral, ainda que reduzido ou moderado, pode ser benéfico a longo prazo ao pressupor um desenvolvimento equilibrado das capacidades condicionais e coordenativas nas designadas fases sensíveis ou intervalos ótimos de treinabilidade (Stafford, 2005; Martin et al., 2008).
Por sua vez, é fulcral adequar os conteúdos a transmitir às características das crianças/jovens. A aprendizagem na dimensão tática é especialmente constrangida pelo desenvolvimento cognitivo e percetivo-motor dos jovens, devendo cingir-se, até ao escalão de Infantis (Sub-13), a pouco mais que aos princípios específicos (ofensivos e defensivos) e à noção estratégico-tática de jogar em triângulos, operacionalizados através de jogos reduzidos e/ou condicionados e formas jogadas. Importa dotar os mais jovens de simples regras de ação para solucionar problemas resultantes do contexto situacional do jogo e não propiciar, como na Periodização Tática, uma aquisição progressiva de princípios e subprincípios, conducentes a uma dinâmica organizada do “jogar” da equipa, em pleno respeito pelo modelo de jogo. Pretende-se que os jovens aprendam a pensar e a tomar decisões de forma autónoma, libertos de fatores extrínsecos que condicionem a manifestação do seu potencial individual, sejam eles o modelo de jogo a cumprir ou a obediência de instruções provenientes do treinador.
Proposta Metodológica para o Escalão de Infantis (Sub-13)
Conforme visto anteriormente, a adoção de um modelo de periodização nos escalões de formação de base deve reger-se por pressupostos distintos dos que norteiam a prática adulta amadora ou de alto rendimento. Ainda assim, é possível encontrar ideias suscetíveis de serem adaptadas na periodização do treino com crianças/jovens. A figura 1 exibe uma proposta de microciclo padrão, estruturalmente baseado no paradigma da Periodização Tática, mas com conteúdos e respetiva organização adaptados ao escalão de Infantis (12-13 anos).
Figura 1. Proposta de microciclo padrão para o escalão de Infantis (Sub-13) com três treinos semanais (p.f., clique em cima da figura para ampliar).
Esta proposta engloba três sessões semanais, cada uma com uma duração total entre os 75 e os 90 minutos. O domingo, a terça e a sexta-feira não constam na figura, sendo considerados dias de recuperação passiva, embora esta configuração possa, naturalmente, ser ajustada. De acordo com Rowland (2005), as crianças e os jovens pré-adolescentes tendem a recuperar mais rapidamente que os adultos, tanto em exercícios de intensidade elevada, como noutros de menor intensidade, devido a diferenças observadas nalguns parâmetros fisiológicos, o que leva a supor que os dias de repouso permitem a recuperação praticamente total para o treino ou competição seguinte.
Relativamente às dimensões do treino, a sua importância relativa (%) procura dar resposta às necessidades básicas de treino multilateral e específico nestas idades. Ainda que Stafford (2005) proponha uma relação de 40/60, o microciclo proposto privilegia mais o princípio da especificidade, sendo a proporção igual ou superior a 35/65. Este escalão etário constitui uma etapa fundamental para a aprendizagem, pelo que na dimensão tático-técnica o treinador deve estimular a autonomia decisional dos jovens praticantes, sem grandes restrições estratégico-táticas, mediante duas abordagens: a descoberta guiada e a resolução de problemas contextuais do jogo. Adaptando os procedimentos da Periodização Tática, a evolução semanal nesta dimensão comporta três níveis:
· Dia 1 (fração intermédia do “aprender a jogar”): espaço e número de jogadores reduzidos; condicionantes/constrangimentos ao nível do número de passes, toques sobre a bola ou circulação da mesma por determinados corredores; diversidade de alvos; superioridade/inferioridade numérica (Gr+2v4+Gr); paragens pontuais para instruções/feedbacks sobre conceitos táticos simples; privilegiar a manutenção da posse de bola; princípios específicos do jogo ofensivo.
· Dia 2 (grande fração do “aprender a jogar”): espaço e número de jogadores pouco reduzidos; igualdade numérica (Gr+5v5+Gr); condicionantes ligeiras ou inexistentes; poucas paragens; resolução de problemas de situações similares à competição; enfoque na organização setorial; referência aos princípios específicos do jogo defensivo.
· Dia 3 (pequena fração do “aprender a jogar”): jogos mais reduzidos (3v3; Gr+2v2+Gr); condicionantes inexistentes, para libertar a criança/jovem de restrições tático-técnicas na sessão anterior ao jogo; elevada velocidade de decisão e execução; situações muito descontínuas; incidir prioridade na finalização; proporcionar combinações táticas; promover a aprendizagem de situações de bola parada (pontapés de canto, pontapés livres e lançamentos laterais); focalizar um ou outro princípio específico.
No que concerne às capacidades condicionais e coordenativas, no Dia 1 a maior importância relativa é atribuída à força (geral e/ou específica), através de jogos lúdicos (“carrinho de mão”, “tração à corda”, “cavalitas”), estafetas (“pé coxinho”, “saltos a pés juntos”, “condução de bola com tração”, etc.) e circuitos (incluir exercícios com o próprio peso corporal, saltar barreiras/à corda) e, posteriormente, à flexibilidade (exercícios dinâmicos na fase preparatória). No Dia 2 o enfoque é dado à resistência e, em menor grau, à coordenação motora, promovendo-se o trabalho de habilidades motoras gerais e específicas em situações de jogo lúdico (apanhada), jogo pré-desportivo ou circuitos multiatividades. Por último, no Dia 3 privilegia-se o treino das diversas formas de manifestação da velocidade (geral e específica, cíclica e acíclica), por estarmos já no que Stafford (2005) menciona como intervalo ótimo de treinabilidade.
Muito mais haveria para escrever sobre esta proposta. Outras decerto terão o seu mérito. É importante que reflitamos sobre a temática e que se partilhem experiências. Como avançar no sentido de definir modelos de organização do treino conducentes a um desenvolvimento mais equilibrado e efetivo dos jovens e que garantam níveis de rendimento cada vez mais elevados no futuro? E mesmo que poucos atinjam o alto rendimento, não é admissível negligenciarmos procedimentos que, a longo prazo, funcionem como elementos estruturantes da formação desportiva e cívica daqueles que, futebol à parte, constituirão o futuro da nossa sociedade: as crianças e os jovens.
Referências
Fonseca, H., & Garganta, J. (2006). Futebol de rua: Um beco com saída. Do jogo espontâneo à prática deliberada. Lisboa: Visão e Contextos.
Martin, D., Carl, K., &
Lehnertz, K. (2008). Manual de teoria do
treinamento esportivo. São
Paulo: Phorte Editora.
Rowland, T. W. (2005). Children’s exercise physiology (2nd Edition). Champaign, IL: Human Kinetics.
Seirul-lo Vargas, F. (2001). Nuestra entrevista del mes: entrevista de metodologia y planificación. Revista Training Fútbol, 65, I-XI.
Silva, M. (2008). O desenvolvimento do jogar, segundo a Periodização Táctica. Pontevedra: MCSports.
Stafford, I. (2005). Coaching for long-term athlete development: To improve participation and performance in sport. Leeds: Sports Coach UK.