22/08/2020

Desgraça (1999), de J. M. Coetzee

John Maxwell Coetzee é um escritor sul-africano que recebeu o prémio nobel da literatura em 2003. Foi o segundo escritor sul-africano e o quarto africano a receber a distinção. “Desgraça”, cuja primeira data de publicação remonta a 1999 (figura 1), foi a primeira obra que li do autor.

 

Figura 1. Capa do livro “Desgraça” (7.ª Edição, 2010, Publicações D. Quixote).

 

Para uma boa compreensão do romance é essencial estar minimamente familiarizado com o conceito de apartheid (em africâner: separação), um regime de segregação racial, liderado por uma minoria branca no poder, desde 1948 até meados da década de 90, cessando com a eleição de Nelson Mandela para presidente da África do Sul, em 1994. Embora o autor aborde o assunto de forma subtil e com mestria, uma leitura atenta é capaz de estabelecer um paralelismo entre a desgraça do professor David Lurie e a tensão sociorracial que se vivia naquele país à época. A expressão máxima dessa tensão é alcançada com o assalto e as agressões brutais a David e à sua filha Lucy, na propriedade rural de Lucy, consumados por três indivíduos de raça negra. Lucy, inclusivamente, caracteriza a violação de que foi vítima com base no ódio: “uma submissão de alguém que está em território alheio”. Mais tarde, compreende-se que o prestável vizinho Petrus tinha, de facto, a pretensão de apropriar-se de todos os bens de Lucy, somente garantindo a sua proteção caso ela se tornasse uma deles. 

Quanto à personagem principal – David Lurie –, é um indivíduo complexo. Gosta de mulheres mais novas, belas e desinibidas, tendo fracassado nos relacionamentos sérios que teve (dois divórcios). É professor de Línguas Modernas na Universidade Técnica da Cidade do Cabo e, apesar de ser uma pessoa culta e amante de literatura europeia, sabe que os alunos não gostam das suas aulas: “Uma vez que não respeita a matéria que ensina, não tem qualquer impacto nos seus alunos” (p. 8). Entende na perfeição aqueles que são os limites da decência, mas não deixa de os ultrapassar em prol dos seus impulsos (por exemplo, a chamada para casa da “acompanhante” Soraya e o assédio à aluna Melanie Isaacs). 

É precisamente a relação com a aluna Melanie que determina a espiral negativa em que entra – a sua desgraça. Resignado, admite que errou e assume a culpa perante a comissão de inquérito da universidade, teimando em não contestar as declarações de Melanie sem tomar conhecimentos das mesmas. “Primeiro a sentença, depois o julgamento” (p. 47). É no avolumar constante de problemas que Lurie dá passos para a remição dos pecados, embora ele afirme não querer tornar-se numa pessoa melhor. “Não deixa de ser curioso que um homem egoísta como ele se tenha oferecido para tratar de cães mortos” (p. 157), diz-nos o narrador. Aliás, a propósito de ser uma boa pessoa, o narrador, quase no papel de superego do protagonista, comenta que: “Não é uma má resolução a tomar numa época negra” (p. 231), quiçá aludindo à tensão racial vigente, fruto da inversão da opressão exercida pela minoria branca, nos tempos de apartheid, face aos indivíduos de raça negra. 

As especialidades do professor Lurie – mulheres e literatura – são, perto do final do livro, alvo de crítica irónica e vincada do narrador: “Grande parte da literatura trata disso: raparigas jovens tentando fugir à opressão de homens velhos, para o bem da espécie” (p. 202). Qual consequência cármica, o infortúnio é extensível às mulheres, de Melanie, bela e perfeita, a Bev Shaw, com tendência a piorar, e à sua obra artística: “Ele não possui os recursos musicais nem as reservas de energia para conseguir tirar Byron em Itália da monotonia em que caiu desde o início” (p. 228). 

A minha interpretação do final, em que David vai buscar o cão que o venera para ser abatido, com todo o carinho que o animal merece, remete-nos para uma metáfora da relação superior, e intempestiva, que manteve com a filha Lucy após o incidente na fazenda. Para o bem de ambos, importava deixar partir a proteção excessiva que evidenciou nos tempos de desgraça comum. 

Pessoalmente, julgo que o livro prometia muito nos primeiros seis capítulos – um thriller repleto de emoções, todavia, a desgraça de David levou a trama para algo menos exuberante e mais real, ficando algumas pontas soltas por esclarecer. Os livros não têm de corresponder às expectativas de cada leitor, isso seria impossível, cabe-nos a tarefa de retirar uma ou mais lições da história que o autor nos conta. Desta, eu retiro o seguinte: nunca é tarde para controlarmos os nossos impulsos, ou para corrigirmos o que de mal deles resulta.

16/08/2020

Artigo do mês #8 – agosto 2020 | Performance física no futebol juvenil: Exercícios técnicos de alta intensidade vs. jogos reduzidos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autor: Karahan, M.

País: Turquia

Data de publicação: 26-junho-2020

Título: Effect of skill-based training vs. small-sided games on physical performance improvement in young soccer players

Revista: Biology of Sport

Referência: Karahan, M. (2020). Effect of skill-based training vs. small-sided games on physical performance improvement in young soccer players. Biology of Sport, 37(4), 305–312. https://doi.org/10.5114/biolsport.2020.96319 (link) 

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 8 – agosto de 2020.

 

Apresentação do problema

Os jogos desportivos coletivos (JDC), como o futebol, são, por natureza, intermitentes no que respeita ao esforço realizado. Neste sentido, os jogadores devem possuir qualidades físicas bem desenvolvidas, tal como a capacidade de mudança de direção, a velocidade e as potências aeróbia e anaeróbia. 

Diversos modelos de treino têm sido utilizados para melhorar o desempenho físico no futebol, contudo, estes serão tanto mais eficazes se forem compatíveis com a execução de ações técnicas e táticas específicas da modalidade. Quando bem conceptualizados, tanto os jogos reduzidos e/ou condicionados, como os exercícios técnicos em alta intensidade, podem promover incrementos qualitativos, em simultâneo, nas componentes técnica, tática e física dos praticantes. Recentemente, estes dois tipos de atividades têm sido amplamente propostos pelos treinadores. Por um lado, os jogos reduzidos constituem uma estratégia efetiva de treino integrado, induzindo também efeitos positivos em subcomponentes da condição física (Hammami et al., 2018); por outro lado, os exercícios técnicos (figura 2) são considerados especialmente efetivos para a aquisição de ações motoras específicas em jovens jogadores não especializados, ou para refinar e maximizar habilidades técnicas noutros praticantes mais experientes e/ou de nível mais elevado. Inclusive, estudos noutros JDC (andebol, basquetebol, futsal e voleibol) têm vindo a demonstrar que os exercícios técnicos em alta intensidade promovem melhorias significativas no sprint de 20 metros, na agilidade e em indicadores de potência aeróbia e anaeróbia (Karahan, 2012; Süel, 2015). 

 

Figura 2. Jovem praticante empenhado num exercício técnico – “skill-based training” (imagem não publicada pelo autor; fonte: dtsnewjersey.com)

 

No quadro de uma abordagem de desenvolvimento individual, os exercícios técnicos podem ter um efeito significativo nas componentes técnica e física, quando uma determinada dose de intensidade é alcançada (Dellal et al., 2012) e, fundamentalmente, se a conceptualização for direcionada a jovens praticantes, ainda não especializados numa dada modalidade desportiva. Até à data, embora se saiba que os jogos reduzidos e os exercícios técnicos em alta intensidade produzem efeitos positivos na performance física dos praticantes, nenhum estudo avaliou qual dos dois tipos de atividade pode ser mais eficaz. O objetivo do estudo foi determinar os efeitos de dois regimes de treino (small-sided games vs. skill-based) em diversas subcomponentes da condição física (sprint de 20 metros, altura do salto vertical, capacidade de mudança de direção, força explosiva, VO2máx e potência anaeróbia) e compará-los quanto à sua eficácia.

 

Materiais e Métodos

Participantes: 24 jovens praticantes de futebol, pertencentes à mesma equipa e competindo a nível amador, foram aleatoriamente distribuídos por dois grupos de intervenção: jogos reduzidos (small-sided games – SSG: n = 12, idade: 15.4 ± 0.6 anos) e exercícios técnicos em alta intensidade (skill-based training – SBT: n = 12; idade: 15.3 ± 0.3 anos). 

Procedimentos: o estudo de design longitudinal, randomizado e controlado, decorreu em paralelo para os 2 grupos de intervenção (SSG e SBT), durante 8 semanas no período preparatório (pré-época). Os testes de avaliação da performance física foram realizados 5 dias antes e após os programas de intervenção, durante o mesmo período do dia (15:00–17:00), num ginásio indoor com piso sintético. A bateria de testes consistiu num sprint de 20 metros, teste de agilidade “T” e salto vertical com contramovimento (segunda-feira), vaivém de 20 metros (quarta-feira) e RAST (running anaerobic sprint test) para avaliar a potência anaeróbia (sexta-feira). Posteriormente, os protocolos de intervenção (SSG e SBT) envolveram duas sessões por semana (terças e quintas-feiras), intercaladas com os treinos regulares da equipa (segundas e quartas-feiras), decorrendo num campo de relva natural à mesma hora do dia (15:00–16:00). O protocolo SSG envolveu jogos 3v3 entre 4 equipas fixas, havendo rotação de adversários nas sessões práticas. Em cada sessão foram realizados 4 jogos de 6 minutos, num campo 20x25 metros, com 2 minutos de recuperação passiva. O protocolo SBT envolveu 3 estações distintas realizadas com intensidade máxima: 1) corrida vaivém de 15 metros com remates para uma baliza de 2x2m, situada a 10 metros do local da bola, em cada uma das extremidades; 2) corrida transversal com mudança de direção num cone a anteceder a ação de remate, estando várias bolas sucessivamente colocadas num arco de 18 metros a 8 metros da linha de golo; 3) 5 segundos de cabeceamentos numa bola pendurada 5 cm abaixo da altura máxima de salto de cada participante, seguido de sprint de 5 metros e remate de uma bola colocada a 10 metros da baliza. As habilidades foram realizadas continuamente até perfazer o tempo de cada repetição. As componentes da carga do programa SBT encontram-se especificadas na tabela 1.

 

Tabela 1. Componentes da carga das tarefas do protocolo de intervenção SBT em cada sessão (Karahan, 2020). 

Os exercícios foram ministrados por treinadores de futebol credenciados, que intervieram nos programas de treino por forma a manter os jogadores motivados e focados ao máximo nas tarefas práticas. Foram ainda prescritas atividades de aquecimento e de retorno à calma padronizadas, tanto para os testes físicos, como para ambos os programas de intervenção. 

Análise estatística: os resultados foram apresentados como médias ± desvios-padrão. Os pressupostos de normalidade e de homogeneidade de variâncias foram avaliados, sendo aplicado um teste t para amostra independentes para determinar se as diferenças pré intervenção foram significativas entre os 2 grupos. Uma ANOVA de duas vias com medidas repetidas [2 grupos (SSG e SBT) x 2 períodos (Pré e Pós)] foi utilizada para estimar os efeitos principais e de interação das variáveis independentes na performance física. Testes post hoc de Bonferroni também foram usados caso fossem detetadas interações significativas. O tamanho dos efeitos foi apresentado através de valores de partial eta squared2) ou Cohen’s d. O nível de significância adotado foi de 5% (p ≤ 0.05).

 

Principais resultados

O estudo demonstrou que 8 semanas de treino com o programa de intervenção SBT (exercícios técnicos com intensidade máxima) melhorou significativamente todos os indicadores da performance física analisados, enquanto o programa SSG (jogos reduzidos) foi apenas efetivo (p < 0.05) no desenvolvimento do salto vertical com contramovimento, VO2máx e potência anaeróbia média. A comparação de ambos os protocolos de intervenção mostrou que o programa SBT foi significativamente mais efetivo do que o programa SSG em todos os testes físicos (sprint de 20 metros: 3.99 vs. 1.72%; salto vertical com contramovimento: 5.35 vs. 2.99%; teste de agilidade “T”: 3.7 vs. 2%; força explosiva: 8.4 vs. 5.6%; potência anaeróbia: 10.98 vs. 6.26%), à exceção da prova afeta à estimação do VO2máx (vaivém de 20 metros: 6.7 vs. 6.5%). 

No respeita à potência aeróbia, ambos os protocolos parecem induzir intensidades suficientes para o aumento de enzimas inerentes ao metabolismo aeróbio e à melhoria da performance em zonas de intensidade submáximas. O facto de o programa SSG não determinar melhorias significativas no sprint de 20 metros e na capacidade de mudança de direção pode estar relacionado com as dimensões do espaço (20x25m) e com o tempo de prática (4x6’) propostos na tarefa 3v3. 

As diferenças verificadas entre os grupos experimentais, ao nível do salto vertical com contramovimento e na força explosiva estimada, podem ser explicadas pela configuração das tarefas prescritas. O grupo SBT teve mais oportunidades para saltar (estação 3) e mais ações explosivas de curta duração nas sessões de treino que o grupo SSG. O perfil de atividade do grupo SBT, com intensidade máxima, também ocasionou ganhos mais evidentes na potência anaeróbia.

 

Conclusão

A investigação revelou que um período de intervenção de 8 semanas, incluindo exercícios técnicos em alta intensidade ou jogos reduzidos, pode melhorar a performance física de jovens jogadores de futebol durante o período preparatório da época (pré-época). Ambos os protocolos melhoraram substancialmente a potência anaeróbia, a força explosiva, o VO2máx e a altura do salto vertical dos praticantes. Contudo, no que se relaciona ao sprint de 20 metros e à capacidade de mudança de direção, apenas houve ganhos significativos no programa SBT. Desta forma, os resultados esclarecem que exercícios técnicos em alta intensidade podem ser mais apropriados que os jogos reduzidos para melhorar o desempenho físico de jovens jogadores, do género masculino, no período preparatório da época.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelo autor do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelo autor do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Biology of Sport.