Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes
critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com
revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3)
associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do
Desporto.
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Autores: Thompson, C. J., Smith, A., Coutts,
A. J., Skorski, S., Datson, N., Smith, M. R., & Meyer, T.
País: Alemanha
Data de publicação: 15-outubro-2021
Título: Understanding the
presence of mental fatigue in elite female football
Revista: Research Quarterly for
Exercise and Sport
Referência: Thompson, C. J.,
Smith, A., Coutts, A. J., Skorski, S., Datson, N., Smith, M. R., & Meyer,
T. (2021). Understanding the presence of mental fatigue in elite female
football. Research Quarterly for Exercise and Sport. https://doi.org/10.1080/02701367.2021.1873224
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 23 – novembro de
2021.
Apresentação do problema
No futebol feminino de elite, as exigências físicas do jogo (i.e., distância total de corrida, volume de corrida de alta intensidade, número de sprints) são bem conhecidas (Bradley et al., 2010; Dalton et al., 2017), porém, as exigências do foro mental permanecem por revelar, não existindo ainda evidências experimentais. A fadiga mental é um estado psicobiológico, caracterizado por sentimentos de cansaço e de falta de energia e é induzido por períodos prolongados de atividades cognitivas exigentes (Boksem et al., 2005; Loris et al., 2005). Coutts (2016) sugeriu que a fadiga mental é experienciada por jogadores de elite mediante pressões efetuadas pela equipa técnica, pelos adeptos, pela comunicação social e pelos patrocinadores. Também é provável que os jogadores estejam sujeitos a fadiga mental durante os jogos, muito devido à necessidade de se manterem vigilantes e de se adaptarem às ações dos adversários e às opções estratégico-táticas do próprio treinador.
A verdade é que a evidência existente em torno da
presença de fadiga mental no futebol feminino de elite é limitada, em primeira
instância, pela falta de representatividade do género feminino na literatura
(figura 2). No global, apenas seis estudos examinaram os efeitos da fadiga
mental na performance específica do futebol (ver revisão de Smith, Thompson et
al., 2018), todos envolvendo futebolistas masculinos de nível recreativo ou
pertencentes a escalões de formação. Por exemplo, no âmbito de jogos
reduzidos/condicionados, a fadiga mental proporcionou efeitos pouco claros na
performance física (Coutinho et al., 2017), efeitos negativos na performance
técnica (Badin et al., 2016), em conjugação com decréscimos na performance
tática, devido à diminuição da dispersão da equipa e da coordenação interpessoal (Coutinho et al., 2018). Contudo, seria interessante entender as
causas da fadiga mental na vida real, já que as tarefas utilizadas para induzir
a fadiga mental acarretam pouca validade ecológica em contextos específicos de futebol (Carling et al., 2018; Thompson et al., 2018).
Figura 2. O futebol feminino
de elite e a fadiga mental: um tema por aprofundar (fonte: npr.org; foto não
publicada pelos autores).
A fim de compreender as exigências cognitivas da vida real de atletas de elite, os estudos mais recentes têm recorrido a grupos de foco e inquéritos. Uma investigação com grupos de foco compostos por atletas de elite (n = 17) e treinadores (n = 15), abrangendo oito desportos profissionais (predominantemente, netball, râguebi e cricket), culminou com diversas perceções da fadiga mental (Russell et al., 2019): (1) associação a alterações de comportamento (i.e., descomprometimento, desmotivação e falta de entusiasmo); (2) reduções na concentração, na disciplina e na atenção aos detalhes; (3) deveres para com a comunicação social, tarefas repetitivas e pensamentos sobre o desporto em questão. Por outro lado, num outro estudo com jogadores de futebol de uma academia de elite em Inglaterra (n = 256; dos Sub-14 aos Sub-23), a fadiga mental não foi percebida como prejudicial para a performance (Thompson et al., 2020).
Assim, havendo pouco entendimento das causas reais das exigências
psicológicas do futebol de elite e nenhuma representação do género feminino na
literatura, o objetivo do estudo foi usar grupos de foco compostos por
jogadoras de futebol de elite, de modo a explorar os tipos de atividade que
resultam em fadiga mental no futebol feminino de nível internacional. As
informações obtidas neste trabalho podem contribuir para o desenvolvimento de
tarefas mais ecológicas para induzir fadiga mental em investigações
experimentais futuras sobre os efeitos da fadiga mental no desempenho no
futebol, bem como orientar os profissionais do treino para a identificação das
causas da fadiga mental e para a otimização de estados psicobiológicos nocivos,
aquando da sua presença.
Métodos
Participantes: foram recrutadas para o estudo 10 jogadoras de futebol de elite (idade: 27.1 ± 4.8 anos), todas representando a mesma seleção nacional (total de 411 internacionalizações). As jogadoras pertenciam a diversos clubes das principais ligas domésticas europeias. Além disso, todas acumulavam a prática de futebol com compromissos académicos, profissionais (part-time ou tempo inteiro) ou uma combinação de ambos.
Procedimentos: as jogadoras foram devidamente informadas do propósito e do âmbito do estudo, tendo facultado o respetivo consentimento informado. Dadas as características da amostra, as participantes foram informadas que a confidencialidade não poderia ser sempre garantida, mas que os respetivos nomes, equipas, estádios e competições seriam removidos de eventuais dados publicados, por forma a aumentar o grau de anonimato. Após terem sido fornecidas cópias da transcrição dos grupos de foco e dos documentos posteriormente codificados a todas as participantes, foi obtida permissão para a publicação dos dados.
Funcionamento
dos grupos de foco: foram constituídos dois grupos de foco (2x5 jogadoras),
cada qual tendo a duração de aproximadamente 60 minutos, de maneira a permitir
que as participantes se envolvessem numa discussão aberta e partilhassem as
suas opiniões num ambiente confortável (Smith et al., 1995). Como linha de
orientação, foi pré-preparada uma lista de questões e criadas frases
pertinentes para cumprir os propósitos do estudo. Para cada tópico, foi
inicialmente apresentado um artigo de jornal/revista sobre o assunto, no
sentido de facilitar a discussão e despersonalizar a questão e as potenciais
respostas. Os grupos de foco consistiram numa fase introdutória e, posteriormente, num debate em torno de 5
tópicos, com a realização de outras questões mais específicas para
recolher informação adicional. Os tópicos selecionados foram: (1) perceção
sobre as exigências das viagens; (2) relação entre períodos concentrados de
jogos e fadiga mental; (3) opinião do grupo sobre um artigo de revista relativo
à potencial “paralisia de análise” ao receber grande quantidade de informação
tática dos treinadores; (4) rotina das jogadoras antes do jogo; (5) análise de
uma citação de um treinador de futebol de elite, num artigo de jornal, relativa
à pressão mental associada com o resultado do jogo.
Figura 3. Grupo de foco: discussão aberta e partilha de opiniões sobre
uma temática, num ambiente aprazível (fonte: adso.pt; foto não publicada pelos
autores).
Análise dos
dados: as entrevistas gravadas foram literalmente transcritas.
Em seguida, as transcrições foram lidas várias vezes pelo primeiro e pelo
segundo autores para aumentar a familiaridade com os dados, que foram,
subsequentemente, analisados indutiva e tematicamente pelo principal autor.
Através da leitura das transcrições foram gerados códigos iniciais associados a
temas ou ideias comuns que surgiam em segmentos, ou elementos, dos dados em
bruto. Os códigos similares (i.e., citações/temas) identificados ao longos das
transcrições foram extraídos e agrupados para desenvolver temas de ordem
superior. Estes temas de ordem superior foram, finalmente, categorizados em
temas singulares que deram origem aos resultados do estudo.
Principais
resultados
Os
resultados do estudo foram divididos em 5 subsecções: fadiga de viagem,
incapacidade para desligar do futebol, perceção das reuniões de equipa, pressão
interna para ter sucesso e redução da fadiga mental pré-jogo.
· Fadiga de viagem
A fadiga ocasionada pelas viagens foi citada pelos diversos elementos do plantel, com o grau de perceção de fadiga a aumentar em função das distâncias percorridas.
Participante 8: (…) então,
quando chegas a casa na sexta-feira, tu sabes que te vais sentar e tomar o teu
jantar, mas, depois, estás de pé outra vez no dia seguinte e a viajar, ficando
fora o fim de semana inteiro. (…) às vezes, tu sabes a sorte de um
sorteio se tiveres que viajar para um lugar distante e que pode ser mentalmente
exaustivo, sim.
Viajar
também teve um efeito adicional na prontidão percebida para treinar e na
performance.
Participante 1: (…) por
vezes há situações em que não chegas lá antes das 2 horas da manhã, depois
pedem para te levantares à hora habitual, mesmo que o fuso horário tenha mudado,
tu sabes, nós ainda nos estamos a habituar ao fuso horário deles. Nós
levantamo-nos às 9 horas e treinamos talvez às 11 ou às 12 horas desse dia,
portanto, é tal como as raparigas estão a dizer aí, acerca de estarem fatigadas
mentalmente e, também, fisicamente.
·
Incapacidade para
desligar do futebol
O impacto do jogo, por si, recebeu pouca atenção nos
grupos de foco, provavelmente devido às participantes estarem expostas a um
calendário competitivo mais desanuviado em comparação com o que sucede no
futebol masculino. Contudo, as participantes aludiram frequentemente à elevada
exposição a atividades relacionadas com o futebol a que estão sujeitas.
Participante 9: Sim, eu apenas penso que tudo o que
faço é futebol. Quando vou para casa, o meu pai tem o futebol a dar e, de
repente “como foi o teu jogo?” e é tipo “fo****”. [risos] (…) depois
vais para as redes sociais e tudo, tudo o que verás é futebol, a WSL (Women’s
Super League), tu sabes, é tudo futebol. É… não te consegues afastar disto, não
me interpretem mal (…).
A necessidade de uma pausa também foi levantada.
Participante 2: Nós não temos, de facto, uma pausa, especialmente
durante o período competitivo. Temos alguns dias de folga no período do Natal,
mas tirando isso, é constante.
Participante 3: Embora o corpo também precise
fisicamente disso, mentalmente tu precisas mesmo de fazer uma pausa.
· Fadiga experienciada nas reuniões de equipa
Um ponto-chave frequentemente falado nos grupos de foco
foi a longa (e desnecessária) duração das reuniões de equipa, no intuito de
preparar jogos internacionais futuros. As participantes indicaram que uma reunião
de equipa poderia durar cerca de duas horas.
A fim de
melhorar as reuniões de equipa, foram recomendadas reuniões mais curtas e com
informação mais concisa.
Participante 8: Não
há necessidade para termos reuniões tão prolongadas, tipo apenas precisa de
ter, no máximo, 20–30 minutos.
A
palestra ao intervalo também foi referida como um aspeto crítico.
Participante 1: Pessoalmente,
às vezes, eu sei que não é antes do início do jogo, mas durante o intervalo, se
um treinador entra e fala todo o período de 15 minutos, eu acho que é realmente
exaustivo.
As
participantes partilharam algumas histórias de palestras eficazes ao intervalo
que tiveram nos respetivos clubes.
Participante 2: O
que eu gosto, tipo no nosso, no nosso clube, é que quando entramos no balneário
ao intervalo, o nosso treinador fica em segundo plano e dá-um minuto (…) para
falarmos entre nós e tomarmos as nossas bebidas e os nossos snacks (…).
· Pressão interna para ter sucesso
As jogadoras citaram usualmente a existência de pressão
dentro da sua equipa para obter êxito, o que influenciou negativamente a sua perceção
de performance.
Participante 10: Eu
penso que a pior coisa é quando tu sabes que fizeste algo de errado e tu ouves
da linha lateral que falhaste, e tu ficas tipo: eu sei, fui eu que o fiz, não
preciso que alguém grite para mim a dizer que fiz asneira.
A pressão
para ser bem-sucedida pareceu ter um impacto mais negativo nas jogadoras mais
jovens e inexperientes.
Participante 7: E
as coisas que têm sido ditas ao longo dos anos. Se não fôssemos mentalmente
fortes, há raparigas que não foram e nunca mais voltaram [à seleção].
Participante 8: Tantas
jogadoras talentosas que apenas afastaram-se porque não conseguiram aguentar.
Não foram capazes de passar por aquilo novamente, não lidaram com a pressão,
e tu sabes, não é justo, pois não?
Aparentemente,
há diferenças entre os contextos internacional e doméstico.
Participante 2: Tu
claramente sentes-te uma jogadora mais confiante ao nível dos clubes, eu diria.
(…) É que nem se compara a nível internacional, de todo.
· Atividade pré-jogo (redução da fadiga mental)
De acordo
com as participantes, a música desempenha um papel importante na preparação
para o jogo. Em primeiro lugar, atua como fator de relaxamento nas horas que
precedem a partida.
Participante 2: Mas,
em termos de jogos internacionais, também é porreiro, tu sabes quando tens
algum tempo durante o dia, deitas-te, relaxas e ouves a tua música, estar
apenas deitado na tua cama e, sim, teres alguma paz por momentos.
Em
segundo lugar, a música atua como fator motivacional mais perto do pontapé de
saída.
Participante 6: No
balneário, música ligada, preparando para o aquecimento e depois sair para
aquecer.
Aplicações práticas
Uma vez que viagens internacionais (10–18 horas) tendem a promover decréscimos significativos na quantidade e na qualidade do sono, os/as jogadores(as) podem beneficiar de medidas educativas e de suporte à higiene do sono: rotinas bem estabelecidas, luz apropriada, evitar cafeína e tecnologias com emissão de luz e estratégias de relaxação.
Treinadores, jogadores, professores e pais devem interagir, de forma adaptativa, para produzir um ambiente de aprendizagem ótimo e que contribua para o desenvolvimento do talento. Alguns exemplos passam por conselhos e orientação sobre o desporto praticado (e.g., desenvolvimento de qualidades psicológicas), adoção de expectativas realistas e papel de gestão de tensões. Adicionalmente, “desligar” do desporto, através de dias de folga, já se mostrou ser uma estratégia efetiva para promover a recuperação física e cognitiva (Balk et al., 2019, 2017).
A informação recebida nas reuniões de equipa foi frequentemente caracterizada como irrelevante e repetitiva, gerando sentimentos de apatia e de cansaço físico e mental. Os treinadores devem, por isso, implementar abordagens mais concisas, livres de redundâncias e que fomentem a concentração dos(as) jogadores(as) para aspetos-chave.
A mixórdia de efeitos da música é evidente na literatura sobre futebol feminino. Previamente, foi demonstrado que a utilização de música no aquecimento teve um impacto positivo na capacidade de sprints repetidos em jogadoras de futebol (Tounsi et al., 2019), contudo, não pareceu influenciar a corrida específica da modalidade e a frequência cardíaca ou a perceção subjetiva de esforço (Young et al., 2019). Por sua vez, a música aparenta ter o condão de inspirar, motivar e ampliar a perceção da performance na tarefa. Nas atividades pré-jogo, a introdução de música numa rotina orientada (e.g., música, aquecimento, palestra e entrada em campo) não parece produzir fadiga mental e pode até estimular estados psicológicos positivos passíveis de serem transferidos para a competição.
Os grupos
de foco reportaram um uso excessivo de feedbacks explícitos durante os jogos, o
que parece comprometer os níveis de concentração e a liberdade de pensamento. Os(As)
jogadores(as) de elite têm uma elevada propensão para beneficiar de instruções
implícitas (e.g., “analisa o espaço envolvente antes de receberes a bola”), que
lhes permitam identificar pistas contextuais e solucionar situações-problema em
jogo. De resto, já foi anteriormente comprovado que este tipo de abordagem fomenta o
aperfeiçoamento de competências percetivo-cognitivas (Farrow & Abernethy,
2002).
Conclusão
Este estudo forneceu novas evidências relacionadas com a
experienciação de fadiga mental por jogadoras de futebol de elite, em situações
da vida real. Algumas jogadoras sentiram-se desconfortáveis de saírem constantemente
da sua rotina diária e absorvidas pela exposição permanente a atividades relativas
ao futebol. Ademais, houve a perceção genérica de que as reuniões de equipa são
desnecessariamente longas e ocasionam frustração e apatia. Deste modo, os
profissionais do treino devem equacionar alterações às tarefas propostas nos
estágios (i.e., tempo, conteúdo e duração das reuniões de equipa) e à forma
como comunicam em treino e em jogo (mais instruções implícitas), tendo o
cuidado de, se possível, conceder algum tempo livre para as jogadoras.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram originalmente
escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua
portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos
autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão
original publicada na revista Research Quarterly for Exercise and Sport.