Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes
critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com
revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3)
associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do
Desporto.
- 63 -
Autores: Sunjic,
I., Pavlinovica, V., Skomrlja, J., Morgans, R., & Modric, T.
País: Croácia
Data de
publicação: 5-fevereiro-2025
Título: Win
the second balls! The impact of strategic ball recovery on match performance in
elite soccer
Referência: Sunjica, I.,
Pavlinovica, V., Skomrlja, J., Morgans, R., & Modric, T. (2025). Win
the second balls! The impact of strategic ball recovery on match performance in
elite soccer. International Journal of
Performance Analysis in Sport, 1–19. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24748668.2025.2462399
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 63 – março de
2025.
Apresentação do problema
O futebol é um desporto coletivo poliestrutural e
dinâmico (Kunrath et al., 2024; Radakovic et al., 2023). Devido à sua alta
variabilidade e complexidade de movimentos, a performance tem sido categorizada
em 3 dimensões: física, tática e técnica (Schuth et al., 2016). Do ponto de
vista científico, a performance tática tem sido examinada com base no
posicionamento dos jogadores e na coordenação interequipas (Olthof et al.,
2018), enquanto a vertente física é avaliada por variáveis como a distância
percorrida, acelerações e intensidades de deslocamento (Castellano et al.,
2024). O desempenho técnico, por sua vez, tem sido predominantemente analisado
através de eventos discretos do jogo, como remates, passes, duelos e dribles,
além da sua eficácia e localização (Feng et al., 2024).
Estudos prévios identificaram a performance técnica como
um dos principais indicadores de sucesso no futebol. Andrzejewski et al. (2022)
encontraram correlações significativas entre mais de 20 variáveis técnicas e o
sucesso na Bundesliga, destacando-se os golos, as assistências e os remates à
baliza. Na Superliga Chinesa, Yang et al. (2018) verificaram diferenças
significativas entre equipas mais e menos bem classificadas em variáveis como o
tempo de posse no meio-campo adversário, passes para entrada no último terço e
percentagem de duelos ganhos. Assim, melhorar o desempenho técnico dos
jogadores é um objetivo central para os profissionais da modalidade, pois
aumenta a probabilidade de alcançar os resultados desejados (Modric et al.,
2023).
Existe uma multiplicidade de fatores que afetam a
performance técnica (e.g., posição em campo, resultado do jogo, local da
partida, qualidade da equipa e dispositivo tático) (Jiménez et al., 2022; Kádár
et al., 2023; Modric, et al., 2024). Outros elementos, como a capacidade de
recuperar a posse após duelos – frequentemente designada como “ganhar segundas
bolas” – também podem influenciar essa performance. As situações de “segundas
bolas” são geralmente definidas como os cenários que surgem após duelos (no
solo ou pelo ar), nas quais 2 jogadores disputam a posse da bola, com o
objetivo de progredir com a bola ou alterar a sua trajetória (figura 2).
Teoricamente, conquistar mais segundas bolas permite maior posse de bola, o
que, por sua vez, tende a proporcionar mais ações ofensivas e,
consequentemente, melhor performance técnica, como mais passes e remates (Brito
Souza et al., 2020; Modric et al., 2022).
.png)
Figura 2. A importância das segundas bolas no futebol
contemporâneo (imagem não publicada pelos autores) (fonte: https://www.nytimes.com/athletic/4276724/2023/03/05/manchester-city-newcastle-second-balls/).
Entre os profissionais de elite, é reconhecida a
importância de ganhar segundas bolas, como mencionado por Pep Guardiola (Grado,
2016; Buldú et al., 2019). A sua recuperação no meio-campo é vista como
essencial para controlar o jogo, prevenir contra-ataques e lançar os seus
próprios contra-ataques oportunamente (Barreira & Petroski, 2014; Scanlan
et al., 2020), o que pode potenciar variáveis técnicas associadas ao sucesso
(Andrzejewski et al., 2022; Yang et al., 2018). Contudo, não há estudos que
confirmem esses efeitos ou comprovem a utilidade específica da sua conquista no
segundo terço do campo.
Dada a lacuna evidente na literatura, justifica-se a
realização de novos estudos que analisem a associação entre o número de
segundas bolas conquistadas e o desempenho técnico em zonas específicas do
campo. Os resultados poderão ajudar a determinar a importância de ganhar
segundas bolas no futebol, aumentando potencialmente as probabilidades de
sucesso das equipas. Além disso, poderão ser identificadas as zonas do campo em
que recuperar segundas bolas é mais determinante. Esta informação pode levar os
treinadores a ajustar a estratégia de ocupação das zonas após os duelos, de
acordo com as exigências táticas de cada setor do terreno. Assim, o presente
estudo teve como propósito determinar a influência da conquista de segundas
bolas na performance técnica, de forma diferenciada para cada um dos 3 terços
do campo.
Métodos
O estudo procurou perceber
se ganhar as chamadas “segundas bolas” – aquelas que surgem após um duelo entre
2 jogadores – influencia o desempenho técnico de equipas de futebol. Foram
analisados dados de jogos, com enfoque nos terços do campo onde as bolas foram
recuperadas (defensivo, intermédio e ofensivo) e o seu efeito em ações como
passes ou remates. Também se compararam estas ações com a estatística de “golos
esperados” (xG), que estima a probabilidade de uma equipa marcar (Anzer &
Bauer, 2021; Mead et al., 2023). Para garantir resultados mais justos, o estudo
teve ainda em conta a qualidade das equipas e o resultado dos jogos.
Analisaram-se dados
técnicos de 40 equipas que participaram nos Mundiais da FIFA de 2018 e 2022.
Foram considerados os 128 jogos dessas duas edições, resultando em 256
observações (duas por jogo, uma por equipa).
Os dados de evento dos
jogos foram obtidos da base de dados da StatsBomb (www.statsbomb.com), uma das
principais fornecedoras de dados estatísticos no futebol profissional, com
fiabilidade comprovada (Stone et al., 2021). Cada evento incluía informação como
o tipo de ação, tempo, localização no campo, equipa em posse, nome e posição do
jogador, fase do jogo, e, nos casos aplicáveis, tipo de duelo. As segundas
bolas foram definidas como situações que ocorrem imediatamente após duelos
(terrestres ou aéreos), sendo consideradas ganhas quando a equipa recupera
rapidamente a posse. Estas foram identificadas em todas as fases de jogo, sem
considerar o contexto tático.
As variáveis dependentes
(indicadores de performance técnica) abarcaram remates (totais e dentro da
área), receções no último terço e na área, passes (totais e verticais), dribles
e cantos (ver definições operacionais na Tabela 1). Estas variáveis foram
selecionadas por apresentarem maior correlação com os “golos esperados” (xG). O
xG foi fornecido pela StatsBomb.
Tabela 1. Variáveis dependentes do estudo e respetivas definições
operacionais (adaptado de Sunjic et al., 2025).
As variáveis independentes
foram: número de segundas bolas ganhas (variável contínua), resultado do jogo
(vitória vs. não vitória) e qualidade da equipa (ranking FIFA antes do
Mundial), esta última incluída como covariável (Branquinho et al., 2024;
Wunderlich & Memmert, 2016).
Numa primeira fase, foi
usada regressão múltipla “stepwise” para analisar a relação entre variáveis
técnicas e os golos esperados (xG), com metade das observações (n = 128). O
modelo foi validado com a outra metade (n = 128) e verificado com um gráfico de
Bland-Altman (Sisic et al., 2015). Na segunda fase, recorreu-se a modelos
lineares mistos para avaliar o impacto de ganhar segundas bolas no desempenho
técnico, controlando fatores como o resultado do jogo e a qualidade da equipa
(Modric et al., 2024). Foram considerados efeitos fixos e aleatórios (equipa e edição
do Mundial). Os modelos foram construídos progressivamente (“step-up”), com
base no AIC e testes de verosimilhança. A adequação foi verificada com gráficos
de resíduos e Q-Q plots (Henderson et al., 2019; Lovell et al., 2018).
Os efeitos estatísticos
foram convertidos em tamanhos do efeito (d de Cohen), interpretados como
trivial (<0.2), pequeno (0.2–0.5), moderado (0.5–0.8) e grande (>0.8)
(Cohen, 2013). A análise foi realizada no SPSS v. 25.0 (p < 0.05).
Principais resultados
O trabalho testou a
influência das segundas bolas no desempenho técnico das equipas, considerando
diferentes zonas do campo (todo o campo, primeiro, segundo e terceiro terço) e
controlando o efeito da “qualidade da equipa” e do “resultado do jogo”. Os
modelos estatísticos revelaram que os efeitos fixos explicaram entre 0,1% e 16%
da variabilidade dos dados, mas este valor aumentou para 12% a 51% quando se
incluíram os efeitos aleatórios, o que destaca a importância de fatores
contextuais e estruturais na interpretação dos resultados.
Por cada segunda bola
adicional recuperada em qualquer zona do campo, as equipas realizaram, em
média, mais 0,87 receções de bola no terço final (efeito pequeno), 0,24
receções na área de penálti (efeito pequeno), 1,96 passes (efeito pequeno),
0,86 passes progressivos (efeito pequeno), 0,16 dribles (efeito pequeno) e 0,07
cantos (efeito moderado). Os resultados sugerem um impacto tático e técnico
significativo associado à recuperação de segundas bolas em todo o campo (figura
2).
Figura 2. Associação entre o número
de segundas bolas recuperadas e o desempenho técnico em diferentes zonas do
campo (dados apresentados como d de Cohen). NS: associação não
significativa; a) total de remates; b) remates dentro da área de penálti; c)
receções de bola no terço final; d) receções de bola na área de penálti; e)
total de passes; f) passes progressivos; g) dribles; h) pontapés de canto (Sunjic
et al., 2025).
- Ganhar segundas bolas no primeiro terço do campo (setor
defensivo)
Por cada segunda bola
adicional recuperada no primeiro terço do campo, as equipas realizaram, em
média, mais 0,41 remates (efeito pequeno), 0,17 remates dentro da área de
penálti (efeito pequeno), 1,84 receções de bola no terço final (efeito pequeno),
0,42 receções na área de penálti (efeito pequeno), 4,39 passes (efeito pequeno),
1,95 passes progressivos (efeito pequeno), 0,32 dribles (efeito pequeno) e 0,21
cantos (efeito moderado).
- Ganhar segundas bolas no segundo terço do campo (setor
intermédio)
Não foram observadas
associações significativas entre o número de segundas bolas recuperadas no
segundo terço do campo e qualquer uma das variáveis de performance técnica.
- Ganhar segundas bolas no terceiro terço do campo (setor
ofensivo)
Por cada segunda bola
adicional recuperada no terço ofensivo do campo, as equipas registaram aumentos
de 3,06 receções de bola no terço final (efeito pequeno), 0,92 receções na área
de penálti (efeito moderado), 6,82 passes (efeito pequeno), 2,61 passes
progressivos (efeito moderado) e 0,11 cantos (efeito pequeno).
- Influência das
variáveis contextuais no desempenho técnico
Equipas mais bem
posicionadas no ranking FIFA apresentam indicadores superiores de desempenho
técnico. Por cada incremento de uma posição no ranking da FIFA, as equipas
exibiram mais receções no último terço (0,8 a 0,86), mais receções na área de
penálti (0,14 a 0,16), mais passes (2,39 a 2,47) e mais passes progressivos (0,62
a 0,67). Obter a vitória esteve associado a mais remates dentro da
área de penálti, com mais 1,56 a 1,61 remates do que nos jogos que terminaram
empatados ou com derrota.
Aplicações práticas
Este estudo demonstrou que
recuperar segundas bolas no primeiro e no terceiro terço do campo pode
potenciar o desempenho técnico ofensivo das equipas. Com base nos resultados
destacados, propõem-se 4 aplicações práticas dirigidas a treinadores de futebol:
1. Estimular a recuperação de segundas bolas no primeiro
terço do campo com finalização em contexto ofensivo: a recuperação de
segundas bolas nesta zona do campo foi a única associada a um aumento
significativo de remates dentro da área de penálti, uma métrica fortemente
correlacionada com os golos esperados (xG). Para explorar esta vantagem, os
treinadores devem planear exercícios específicos para defesas centrais,
laterais e médios defensivos que reproduzam situações reais de duelo, tanto
aéreo como pelo solo, no primeiro terço do campo, privilegiando a recuperação
imediata da segunda bola. Após a recuperação de bola, o exercício deve
prosseguir com uma transição ofensiva vertical, envolvendo outros jogadores e
culminando numa finalização dentro da área adversária, de modo a espelhar
padrões táticos típicos de contextos reais de competição.
2. Desenvolver a antecipação e capacidade de recuperação
de segundas bolas no terceiro terço do campo: neste setor, a recuperação de
segundas bolas demonstrou ser ainda mais eficaz para aumentar as receções de
bola dentro da área de penálti contrária, com valores superiores ao dobro dos
observados no primeiro terço. Os treinadores devem conceber tarefas específicas
para médios ofensivos, extremos e avançados que recriem duelos no último terço
do campo, incentivem a recuperação ativa da segunda bola e encorajem o
reposicionamento estratégico dos jogadores para gerar espaços e permitir
receções em zonas de finalização. Idealmente, estas tarefas devem terminar com
passes curtos ou cruzamentos que facilitem a chegada da bola a zonas propícias
para finalização.
3. Treinar a recuperação de segundas bolas em cenários
de elevada densidade de jogadores: a ausência de associação entre a
recuperação de segundas bolas e o desempenho técnico no terço intermédio do
campo pode dever-se à elevada densidade de jogadores neste setor. Neste
sentido, os treinadores devem conceber tarefas específicas que exponham os
jogadores a situações de maior congestionamento, com foco na recuperação da
posse e na tomada de decisão sob pressão. Estas tarefas devem reproduzir
cenários realistas de disputa no meio-campo, exigindo ações rápidas e
eficientes em espaços reduzidos, de maneira a melhorar a perceção, o
posicionamento e a eficácia na recuperação em zonas de elevada pressão
defensiva adversária.
4. Criar rotinas de treino posicionadas nos setores do
campo-alvo: os exercícios devem decorrer preferencialmente nas zonas do campo
onde se pretende que ocorra a recuperação da segunda bola, por forma a reforçar
a representatividade da tarefa. Esta abordagem favorece a leitura de jogo e a
adaptação tática dos jogadores face às exigências espaciais específicas de cada
setor, ao mesmo tempo que melhora a sua capacidade de perceção situacional e
potencia a transferência dos comportamentos adquiridos para os contextos competitivos.
Conclusão
Este estudo evidenciou que a recuperação de segundas
bolas nos primeiros e últimos terços do campo melhora significativamente o
desempenho técnico ofensivo das equipas. No primeiro terço, a recuperação está
associada a um aumento de remates dentro da área de penálti, receções de bola
no terço final e na área, bem como a mais dribles. No terço final, a
recuperação de segundas bolas influencia positivamente as receções de bola no
terço final e na área de penálti, o número total de passes e de passes
progressivos. A ausência de associação significativa no terço intermédio pode
dever-se à maior densidade de jogadores neste setor, o que compromete a ligação
entre a recuperação da posse e o desempenho técnico subsequente. Estes
resultados destacam a importância estratégica de recuperar segundas bolas em
zonas específicas do campo para otimizar a performance ofensiva.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram originalmente
escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos
autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão
original publicada na revista International Journal of Performance Analysis
in Sport.