Vivemos tempos de austeridade e, portanto, de cortes – muitas vezes indiscriminados – na saúde e na educação. No que apraz à Educação Física (EF), ao exercício físico e ao desporto, os meus principais pilares de intervenção na sociedade, há muito que o descrédito é grande, apesar de as evidências científicas indicarem precisamente o inverso. Menos aulas de EF, possibilidade de terminar com a Atividade de Enriquecimento Curricular no 1º Ciclo e menor investimento público no exercício físico e no desporto constituem uma mescla de rumores e certezas que, de quando em vez, emerge nos órgãos de comunicação social.
O parágrafo anterior traça o cenário vigente em Portugal. A importância da atividade física, nas suas diversas manifestações, é amplamente negligenciada pelos nossos políticos. Porém, se tivessem vontade de realizar uma breve pesquisa, verificariam que existem inúmeros factos científicos cujos benefícios até lhes poderiam convir no médio ou longo prazo. Adiante, e para que a leitura não tome muito do tempo dedicado pelos nossos governantes à economia, às finanças e às “troikas” deste mundo, recomendaria apenas a leitura de um artigo de revisão. Eis a referência e o respetivo link:
Haapala, E. A. (2013). Cardiorespiratory fitness and motor skills in relation to cognition and academic performance – A review. Journal of Human Kinetics, 36, 55-68. (pdf)
Ainda assim, não vá o inglês servir de empecilho para alguns “ditos que não ditos” desejáveis, presto-me a efetuar um breve resumo da informação relevante:
1) Níveis mais elevados de condição cardiorrespiratória e de habilidades motoras estão associados a capacidades cognitivas aumentadas.
Diversos estudos científicos demonstraram que os níveis de fitness cardiorrespiratório estão, essencialmente, associados a melhores performances (i) em tarefas que requerem a alocação da atenção e (ii) em testes de memória que envolvem processos de codificação por parte do hipocampo. Na sua revisão, Haapala (2013) cita autores que sugerem um efeito positivo da atividade física nas funções cognitivas, parcialmente causadas por modificações fisiológicas no organismo. Supostamente, tais modificações implicam o aumento de concentrações de fatores neurotróficos cerebrais que facilitam a aprendizagem e preservam as funções cognitivas, através da melhoria da plasticidade sináptica e da sua atuação enquanto agente neuroprotetor. O incremento da circulação sanguínea no cérebro e a melhoria da funcionalidade neuroelétrica também são processos inerentes ao desenvolvimento cognitivo por meio da atividade física regular. Para além disso, sabe-se, de experiências com animais, que exercícios de resistência promovem a angiogénese (i.e., aumento da densidade capilar), enquanto que exercícios de cariz motor propiciam a sinaptogénese (i.e., aumento do número de ligações sinápticas). A melhoria da condição cardiorrespiratória também foi associada a incrementos ao nível da memória relacional.
Foto: A atividade física nunca é demais durante a infância.
2) Crianças/jovens (até aos 13 anos) com melhores índices de condição física e de habilidade motora obtêm melhor aproveitamento em testes académicos do que crianças que apresentam índices inferiores.
Aparecem documentados resultados relativos a tarefas para avaliar o quociente de inteligência (QI), a atenção, o controlo inibitório, a memória de curto prazo e o desempenho académico. O controlo inibitório é o núcleo das mais altas funções cognitivas, designadas de controlo executivo. Entre as crianças, está demonstrado que o controlo inibitório é um preditor relevante do desempenho académico, embora também esteja relacionado com a saúde física e mental em adultos, sendo, por isso, uma componente vital do desenvolvimento cognitivo durante a infância. Sinteticamente, crianças com melhor condição física têm melhor controlo inibitório comparativamente a outras crianças com níveis mais reduzidos. Através de imagens de ressonância magnética, alguns estudos evidenciaram que crianças com níveis de fitness superiores exibem padrões de ativação neural (córtices pré frontal e parietal) e de adaptação cognitiva mais eficientes que crianças com menor condição física. Em termos percetivo-motores, é evidenciado que crianças com habilidades mais refinadas tendem a ter classificações médias mais elevadas. Estudos de intervenção confirmaram uma conexão positiva, embora fraca, entre o treino de habilidades motoras e o incremento da performance académica e da capacidade de leitura em crianças em idade escolar.
3) A relação negativa entre a adiposidade e as funções cognitivas podem ser parcialmente explicadas pelo fraco desenvolvimento da condição cardiorrespiratória e da habilidade motora, devido à falta de atividades físicas e mentais desafiantes.
Nos dias que hoje correm, o flagelo da obesidade infantil tem-se alastrado um pouco por todo o mundo. As crianças estão progressivamente a tornar-se mais sedentárias e mais obesas, uma vez que não atingem os níveis mínimos de condição físico-motora inerentes ao desenvolvimento cognitivo e à preservação da saúde cerebral. Posto isto, é crível que a atividade física, incluindo exercícios aeróbios moderados a vigorosos e tarefas motoras exigentes, constitua um estímulo de treino efetivo para melhorar o funcionamento cognitivo, a performance académica e a saúde cerebral em crianças com excesso de peso. Assim, para além dos benefícios cardiovasculares e metabólicos sobejamente conhecidos, a prescrição adequada de atividade física pode incrementar a saúde e as funções cerebrais.
Em suma, o caminho a adotar deve privilegiar a promoção da atividade física, do exercício físico e do desporto. Faz todo o sentido aumentar a carga horária de EF e não extinguir a Atividade de Enriquecimento Curricular no 1º Ciclo que, não sendo obrigatória, ainda vai equilibrando a balança no que ao dispêndio energético das nossas crianças diz respeito. No longo prazo, a lógica parece assumir contornos simples. A mais e melhor atividade física, exercício físico e desporto corresponderá uma população mais saudável e cognitivamente mais capaz. A produtividade e a competitividade da nossa indústria e dos nossos serviços aumentarão, o que concorrerá para o tão ambicionado crescimento económico. Talvez tudo se resuma a um pensamento utópico da minha parte. Contudo, ignorarmos todo o corpo de evidências que se vão acumulando, não nos trará quaisquer dividendos no futuro. Antes pelo contrário!
PS – Grande parte das considerações acima referidas têm por base o artigo de revisão do Haapala (2013). Caso queiram aprofundar o vosso conhecimento sobre o tema e estar a par das referências mais importantes, sugiro que leiam atentamente o artigo.