05/04/2017

Futebol a Sério (2016)

Futebol a Sério é o título do livro de Carlos Daniel, jornalista e comentador desportivo. A maioria conhece-o dos telejornais da televisão pública ou dos programas Grande Área e Trio d’Ataque. O motivo que me levou a comprar o livro foi só um: gosto de ouvir o Carlos Daniel a comentar o fenómeno futebolístico. Em primeiro lugar, pela isenção de facciosismos; em segundo lugar, pelo critério com que analisa o jogo. Não sendo um treinador, facto reconhecido pelo mesmo, não deixa de poder ser classificado como um especialista na matéria. Esta obra comprova-o na totalidade.

Figura 1. Capa do livro "Futebol a Sério" de Carlos Daniel.

Neste texto exponho algumas breves passagens do livro que me chamaram a atenção. Salvaguardo, no entanto, que de forma alguma retrata a quantidade e a qualidade da informação que nele consta. Ademais, na sequência de cada excerto retirado da obra, fiz um pequeno comentário para reforçar ou analisar cada ideia do autor.

«É o pensamento sobre o jogo que faz evoluir o futebol, (…) mas são sempre os maiores artistas que perduram na memória e fazem a mais apaixonante história do jogo». (p. 76)
O enfoque no jogador, na individualidade, como expoente máximo do futebol enquanto arte. A evolução do futebol tem seguido, contudo, um rumo conducente à anulação da individualidade pelo processo, pelo coletivo. O antes e o agora, a arte versus a organização.

A propósito da seleção francesa de 1984, o autor enaltece um facto muito interessante: «(…) mais uma prova de como ter um grande meio-campo é meio caminho andado para os títulos». (p. 88)
O estabelecimento de ligações seguras e eficazes, os equilíbrios e os desequilíbrios passam pelo meio, pelo núcleo de uma equipa. Quais os jogadores mais interventivos no jogo? Quais os jogadores com os valores mais elevados de deslocamento no futebol contemporâneo? Pois…

Quando o autor discorre sobre as melhores equipas da história do futebol, é inevitável não mencionar o FC Barcelona de Pep Guardiola. E fá-lo assim: «Podemos traduzi-la por conhecimento do jogo, para abarcar princípios táticos, por criatividade ou intuição, para exponenciar a técnica, até por destreza e rapidez, que permitem fisicamente chegar primeiro. Podemos, como muitos pretenderam fazer em tantos anos, relacioná-la essencialmente com uma cultura de clube e uma geração de jogadores aparentemente irrepetível. O segredo maior estará, no entanto, seguindo a lição de Cruyff, na adequação de um modelo de jogo a um modelo de jogador, e vice-versa». (p. 158)

«Contra os que pensam o jogo com base nos centímetros, nos confrontos físicos, na agora omnipresente intensidade ou não menos referido pragmatismo, o Barcelona devolveu a bola à posição central e ao seu habitat natural, já que é no relvado que ela passa mais tempo. Com a bola no chão, os jogadores são todos do mesmo tamanho. (…) Tiki-taka é a onomatopeia de um jogar, o som do passe, que é o que de melhor um jogo tem. Com o melhor passe, o melhor jogo. Tiki-taka, tiki-taka, tiki-taka. Sem parar». (p. 163)
Os jogadores não precisam necessariamente de ser os mais altos, os mais fortes e os mais rápidos. A inteligência, a técnica, conjugadas com bons princípios e organização potenciam a manifestação do potencial individual à escala coletiva. Quase poética é a tirada de que com a bola no chão, os jogadores são todos do mesmo tamanho. Serão mesmo ou serão uns, contrariando a realidade física observável, de tamanho inversamente proporcional à sua estatura?

No treino, a operacionalização tornou-se uma palavra nuclear. De acordo com Carlos Daniel, «É em função dela, da forma como se concretiza uma ideia no dia-a-dia, que se está mais perto ou mais longe de ser eficaz e, por via disso, atingir bons resultados. (…) Não é fácil fazê-lo se a ideia é de outro, adotada sem convicção ou simplesmente frágil. E não resulta decerto também ter uma boa ideia mas não saber como trabalhá-la. Operacionalizá-la». (p. 203)
Parece simples, mas não é. Ideias novas precisam-se, mas saber traduzi-las para a prática e com efeitos positivos em competição é componente indispensável no sucesso de qualquer equipa técnica.

«No futebol – acredito – devem procurar-se exercícios que coloquem cada futebolista a multiplicar nos treinos os gestos que preferencialmente tem de executar no jogo, ou seja, fazendo-o ensaiar tantas vezes quantas necessárias para que reduza a probabilidade de errar quando posto à prova em competição». (p. 206)
Neste particular, permitam-se enfatizar o contexto: a competição. Interpretar e executar em conformidade com o contexto, com o jogo. Na sessão de treino, o grosso dos exercícios deve conter, por isso, os ingredientes fundamentais: bola, companheiros de equipa, adversários, espaço, tempo, resultado e direccionalidade (alvo a atacar/alvo a defender).

No capítulo em que Carlos Daniel retrata a estratégia e o plano de jogo: «Mas outro facto indiscutível é que as melhores equipas não vivem de adaptação a cada jogo e adversário. São por norma as que impõem o seu futebol, com iniciativa». (p. 207)
As melhores equipas também têm, por norma, argumentos que as outras equipas não possuem. É um facto, o jogo das equipas mais fortes, com mais posse de bola, com melhor gestão dos ritmos de jogo, com mais criatividade e com organizações mais robustas, ofensiva e defensivamente, prevalece. Por outro lado, em tempos em que a competitividade atingiu níveis altíssimos na elite, a novidade e a adaptabilidade poderão desempenhar um papel relevante no sucesso competitivo. Relembremo-nos do exemplo da seleção portuguesa no recente Euro 2016.

O caso Real Madrid é analisado por Carlos Daniel do seguinte modo: «O Real é bem a prova de que uma equipa tem de ser muito mais que um conjunto de bons jogadores. Perante o insucesso, qualquer jogador parece pior do que é, e assim os adeptos se desiludem à vez com Bale, Benzema, Kroos, James, e até, pasme-se, com o estratosférico CR7». (p. 251)
Uma frase mais do que citada, que chateia de tanto ouvir, mas que deveria ser lei para qualquer treinador de futebol: o todo é mais do que a mera soma das partes.

O que «(…) comprova aquilo que há muito se tem como evidência: onze Pelés ou Maradonas não fariam uma grande equipa». (p. 253)

Figura 2. O génio Maradona (fonte: Getty Images).

Uma equipa estrutura-se com jogadores com características particulares. As características devem adequar-se ao modelo de jogo do treinador, porém, também devem ser condizentes com as missões táticas específicas de cada posição em campo. Se os génios são bem-vindos para criar situações de finalização, também os «carregadores de piano» são cruciais para recuperar bolas e contribuir para a progressão da equipa no terreno de jogo. Nesta linha de pensamento, os mais rápidos e tecnicistas poderão ser úteis para desequilibrar a partir dos corredores laterais e ter um central mais alto pode ser necessário para o jogo aéreo. Onze Maradonas jamais fariam uma equipa campeã, porque o futebol é praticado com nuances distintas de equipa para equipa. E as melhores equipas são as que melhor lidam com a multiplicidade de situações que cada jogo em si encerra.

Eis como Carlos Daniel escreve sobre a chicotada psicológica e a gestão do grupo pelo treinador recém contratado: «Raymond Verheijen, que trabalhou muitas vezes com o experiente Guus Hiddink, conta que este nunca mudava nada quando chegava a um clube a meio da época. Considerava que para perceber o que estava mal tinha de observar primeiro. Se mudasse logo, dificilmente o entenderia». (p. 262)
A suposta lei do bom senso não se aplica apenas aos árbitros. Quando há mudança de treinador, é certo que muita coisa não deve estar bem, mas decerto que nem tudo está mal. Observar e avaliar primeiro para mudar depois e paulatinamente. O bom senso será sempre um auxiliar valoroso de um verdadeiro líder.

«(…) um Europeu ou um Mundial trazem tudo de volta e mesmo na obrigação da análise não se perde o encanto da infância, cada jogo pode ter uma história incrível que não vamos esquecer ou apenas as outras que pouco significaram, (…) alguns dos momentos mais felizes que vivi foram diante de um relvado. Ou de uma televisão avariada de verde». (p. 285-286)
Haveria melhor forma de terminar o livro que não fosse a alusão à paixão que a modalidade desperta?

Aqui fica a minha recomendação. Boas leituras!


Referência
Daniel, C. (2016). Futebol a sério (3.ª edição). Lisboa: A Esfera dos Livros.