28/08/2023

Artigo do mês #44 – agosto 2023 | Tempo útil de jogo influencia os parâmetros técnico-táticos e físicos no futebol

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Tojo, Ó., Spyrou, K., Teixeira, J., Pereira, P., & Ribeiro, J.

País: Portugal

Data de publicação: 8-agosto-2023

Título: Effective playing time affects technical-tactical and physical parameters in football

Referência: Tojo, Ó., Spyrou, K., Teixeira, J., Pereira, P., & Ribeiro, J. (2023). Effective playing time affects technical-tactical and physical parameters in football. Frontiers in Sports and Active Living, 5, 1229595. https://doi.org/ 10.3389/fspor.2023.1229595

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 44 – agosto de 2023.

 

Apresentação do problema

O jogo de futebol tem sido descrito como um sistema altamente dinâmico, complexo, auto-organizado, instável e imprevisível, no qual os treinadores e os jogadores tentam manter a estabilidade das suas organizações ofensiva e defensiva, enquanto procuram desorganizar a estrutura adversária (Davids et al., 2013; Garganta, 2009). Contudo, há uma série de fatores contextuais, como a localização do jogo, o ranking das equipas, o nível de prática, o resultado corrente do jogo e os estilos de jogo, que pode influenciar os comportamentos individuais e coletivos (Eccles et al., 2009; Gómez et al., 2013; Sarmento et al., 2014), exigindo uma adaptação constante dos jogadores a essas mudanças e que se reflete nas ações técnico-táticas executadas e nos padrões que emergem em competição (Vilar et al., 2012). 

As interrupções no futebol são uma característica do jogo e contribuem para que a sua natureza prime pela intermitência (Siegle & Lames, 2012; Zhao & Liu, 2022). Recentemente, o tempo efetivo (ou útil) de jogo tem sido discutido com preocupação pelos diversos agentes envolvidos no futebol (Altmann et al., 2023; Rey et al., 2022), já que, embora os jogos oficiais durem mais de 90 minutos, as várias interrupções (i.e., substituições, faltas, lesões, golos e bolas fora de jogo), podem afetar negativamente o tempo útil de jogo (Linke et al., 2018). Por exemplo, foi evidenciado que o tempo efetivo de jogo na liga portuguesa foi em média ~49 minutos do tempo total de jogo (i.e., 90 minutos), o que é consistentemente mais baixo comparativamente a outras ligas europeias (i.e., Alemanha, Espanha, França, Inglaterra e Itália) e à UEFA Champions League (Portugal Football Observatory, 2022; ver figura 2). O tempo útil de jogo também foi equacionado numa outra investigação (Castellano et al., 2022). Ao distinguir as duas principais fases do jogo (ou seja, com e sem a posse de bola), e normalizando a distância total para metros por minuto (m/min), estes investigadores constataram que as equipas correm mais sem posse de bola, e o tempo efetivo de jogo e a quantidade de posse de bola influenciaram o desempenho de corrida dos jogadores.

 

Figura 2. Tempo útil de jogo no contexto europeu – Portugal e a Europa (fonte: https://portugalfootballobservatory.fpf.pt; imagem não publicada pelos autores).

 

No que diz respeito às exigências físicas, jogadores profissionais a atuar na Bundesliga alemã percorreram em média 10% mais de distância total, realizaram 13% mais acelerações e sprintaram 7% a 10% menos em partidas oficiais com um tempo útil de jogo longo (>65 minutos), em comparação com um tempo útil mais curto (<50 minutos) (Altmann et al., 2023). Além disso, jogadores profissionais do Championship, em Inglaterra, apresentaram menores exigências físicas, comparando o jogo completo e o período apenas com a bola em jogo (Mernagh et al., 2021). O tempo útil de jogo foi ainda ponderado em função de várias variáveis contextuais, como o nível da equipa, o resultado corrente e a localização do jogo. A distância total aumentou em jogos caseiros, quando a equipa estava em desvantagem no marcador e quando defrontou adversários mais fortes (Castellano et al., 2011). No entanto, é necessária mais investigação sobre os efeitos do tempo efetivo de jogo em parâmetros físicos e técnico-táticos no jogo de futebol. 

O futsal e o basquetebol são desportos coletivos que são uma referência relativamente ao tempo útil de jogo, uma vez que o tempo é parado quando a bola está fora. Esta pode ser uma alteração interessante para o futebol que, como foi referido, é particularmente sensível a diversas variáveis contextuais. Portanto, este estudo teve como objetivo explorar as diferenças causadas por duas condições de jogo – (1) 45 minutos de jogo sem interrupção do cronómetro quando a bola estava fora (T45) e (2) 30 minutos de jogo com paragem do cronómetro sempre que a bola estava fora (T30) – em variáveis relacionadas com o tempo de jogo (i.e., tempo total, efetivo e interrompido), parâmetros técnico-táticos (posse de bola e remates à baliza), métricas de carga externa e outros eventos do jogo (i.e., assistência médica, pontapés de baliza, cantos, lançamentos laterais, pontapés de saída e faltas). Os autores colocaram a hipótese de que o protocolo T30 apresentaria valores mais altos nas variáveis relacionadas ao tempo, nos parâmetros técnico-táticos e nas métricas de carga externa, em comparação com o T45.

 

Métodos

Desenho experimental: foram recolhidos dados de 6 jogos particulares (“amigáveis”). Os jogos foram aleatoriamente divididos em uma parte de 45 minutos (T45: 45 minutos de jogo sem paragem do cronómetro com a bola fora), ou uma parte de 30 minutos efetivos (T30: o cronómetro foi parado sempre que a bola não estava em jogo). Neste estudo foi analisado um total de 6 partes em cada condição experimentar (T45 e T30). Os jogos foram geridos por árbitros oficiais (i.e., 1 árbitro e 2 assistentes), porém, com um responsável externo para cronometrar o tempo de jogo. Entre cada parte houve um intervalo de 15 minutos. Os jogos foram realizados no final da época 2021/2022. 

Participantes: participaram na experiência 179 jogadores de futebol amadores do género masculino, altamente treinados (idade: 27.9 9 ± 5.1 anos), provenientes de 12 equipas a competir nas 4.ª e 5.ª divisões de Portugal. Todos os jogadores tinham mais de 18 anos e treinavam 3–4 vezes por semana, com um jogo oficial. Os guarda-redes foram excluídos do estudo devido às diferentes exigências físicas e técnico-táticas inerentes à respetiva posição. Os participantes assinaram o consentimento informado e o estudo foi aprovado pelo Comité de Ética da Portugal Football School. 

Procedimentos: os jogos foram gravados com uma câmara digital de 35-megapixeis (Canon XA15Hd, Japão), colocada acima do terreno de jogo para filmá-lo integralmente ao longo dos períodos considerados. Os jogos foram analisados e codificados através do software LongoMatch (Barcelona, Espanha), utilizando 3 categorias de variáveis: (1) a relacionada com o tempo, (2) os eventos relacionados com as paragens do jogo e (3) variáveis técnico-táticas ofensivas (Tabela 1).

  

Tabela 1. Variáveis do estudo, em função de cada categoria: tempo, eventos de jogo associados às paragens e variáveis técnico-táticas ofensivas (Tojo et al., 2023).


Os jogadores usaram unidades de GPS (APEX, STATSports, Irlanda do Norte), com uma frequência amostral de 10 Hz. Contudo, só foram incluídos os dados dos jogadores que disputaram as partidas por completo. As métricas de carga externa incluíram as distâncias total, em corrida de velocidade moderada (14.4–19.8 km/h), em corrida de alta velocidade (19.8–25.2 km/h), em sprint (>25.2 km/h), as atividades em alta velocidade (distância percorrida em velocidade alta e sprint), o número de sprints, o número de acelerações (>3 m/s2) e o número de desacelerações (<−3 m/s2) (Gualtieri et al., 2023; Rago et al., 2019). 

Análise estatística: foi utilizado o pacote estatístico jamovi (versão 2.3; https://www.jamovi.org) para o efeito. A estatística descritiva consistiu na apresentação da média e do desvio-padrão para todas as variáveis. Para averiguar as diferenças entre as condições T45 e T30 nas variáveis de carga externa foi utilizado o modelo linear misto, tendo em consideração medidas individuais repetidas. De modo a analisar as diferenças entre as ações e o tempo médio de paragem, entre as condições T45 e T30, foi empregue um modelo linear geral. Recorreu-se ao teste de proporção para uma amostra para comparar as variáveis técnico-táticas ofensivas entre as duas condições experimentais. As dimensões de efeito inerentes ao d de Cohen foram interpretadas da seguinte forma: <0.2 = trivial; 0.2 = pequeno; 0.5 = moderado; 0.8 = grande (Cohen, 1988). O nível de significância estabelecido foi de 5% (p ≤ 0.05).

 

Principais resultados

 

·     Variáveis relacionadas com o tempo

A condição T30 apresentou valores significativamente mais elevados no tempo total (49:30 vs. 45:00; efeito grande), tempo efetivo (28:70 vs. 26:80; efeito moderado) e tempo parado (20:60 vs. 18:20; efeito pequeno), comparativamente à condição T45.

 

·     Eventos relacionados com as paragens do jogo

A única variável que registou diferenças significativas entre T30 e T45 foi o pontapé de baliza, com valores mais elevados na condição T30 (00:46 vs. 00:30; efeito grande). Porém, embora para as outras variáveis não tenham sido evidenciadas diferenças estatisticamente significativas, os valores médios das paragens para assistência médica e para substituições foram mais elevados na condição T30: 01:32 vs. 00:59 (efeito moderado) e 01:50 vs. 00:22 (efeito grande).

 

·     Variáveis técnico-táticas ofensivas

Mais uma vez, foi na condição T30 (vs. T45) que foram detetados valores significativamente mais elevados, no caso, na posse de bola total (n = 703, 54.4% vs. n = 590, 45.6%) e na posse de bola no terço ofensivo (n = 276, 55.3% vs. n = 223, 44.7%). No que respeita à posse dentro da área de penálti e aos números de remates à baliza dentro e fora da área de penálti, não houve diferenças significativas entre as duas condições experimentais.

 

·     Variáveis de carga externa

Relativamente à condição T45, na T30 os jogadores percorreram significativamente maiores distâncias totais (4899 vs. 4481m; efeito moderado), em corrida de velocidade moderada (607 vs. 557m; efeito pequeno), em corrida de alta velocidade (202 vs. 170m; efeito pequeno) e em atividades de alta velocidade (284 vs. 245m; efeito pequeno). Os números médios de acelerações (27 vs. 24; efeito pequeno) e de desacelerações (31 vs. 28; efeito pequeno) também foram significativamente mais elevados na condição T30.

 

Aplicações práticas

Acima de tudo, este estudo indica que as entidades que tutelam o futebol internacional devem considerar seriamente a possibilidade de se cronometrar o tempo da bola em jogo no futebol, tal como sucede no futsal. Aumentar o tempo útil de jogo tem consequências nas exigências físicas e nas ações técnico-táticas que são executadas em competição. Em particular, há a destacar o aumento do número de atividades técnico-táticas no terço ofensivo do campo e o aumento da carga externa, sobretudo, da distância total percorrida e do número de ações em alta velocidade (> 19.8 km/h), de acelerações e de desacelerações. 

Na perspetiva dos adeptos e dos fãs de futebol, parar o cronometro quando a bola está fora parece ser uma estratégia que aumenta o interesse do jogo. Além de proporcionar a disputa do jogo pelo jogo durante mais tempo, tende a reduzir substancialmente situações indesejadas (e eticamente condenáveis), como é, por exemplo, a simulação de lesões. Esta medida poderá ser especialmente indicada para ligas com reduzido tempo útil de jogo, como são principais ligas portuguesas (Liga Portugal Betclic e Liga Portugal 2 SABSEG), com valores médios de tempo efetivo a rondar os 50%.

 

Conclusão

Comparando com o protocolo sem parar o cronómetro quando a bola está fora (T45), a condição T30 (com paragens do cronómetro quando a bola está fora) revelou tempos total, útil e parado mais longos. Os jogadores tiveram significativamente mais posse de bola e ações no terço ofensivo do campo, percorrendo maiores distâncias total, a velocidade moderada, a velocidade alta e registando-se mais acelerações e desacelerações. As evidências sugerem que o tempo útil de jogo pode influenciar substancialmente as componentes técnico-tática e física do jogo de futebol. Por isso, as organizações internacionais que tutelam o futebol devem ponderar a implementação do tempo cronometrado nos jogos, pois parece trazer mais benefícios do que desvantagens no que se refere ao interesse da modalidade.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Frontiers in Sports and Active Living.

17/08/2023

German Journal of Exercise and Sport Research (2023) | Desempenho defensivo no futebol de elite: Uma revisão sistemática

O dia de hoje, 17 de agosto de 2023, encerra um trabalho desenvolvido ao longo de vários anos. No âmbito do seu projeto de doutoramento, o Rui Freitas liderou uma abrangente revisão sistemática sobre o desempenho defensivo no futebol de elite (figura 1) – uma temática que muito me apraz –, e que, na prática, resultou na segunda publicação derivada da sua tese, sob a orientação da Professora Anna Volossovitch (CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, SpertLab, Universidade de Lisboa). Além da minha modesta colaboração, contamos também com a contribuição da Professora Veronica Vleck (CIPER, Faculdade de Motricidade Humana, BIOLAD, Universidade de Lisboa).

 

Figura 1. Informações editoriais da revisão sistemática publicada no German Journal of Exercise and Sport Research.

 

Em primeira instância, seria injusto não enaltecer a perseverança, a determinação e a ética de trabalho incansável do Rui – irrepreensível na condução e na gestão de todo um processo que de acessível pouco ou nada teve. Para compreender o esforço subjacente a este artigo, seria necessário vivenciar cada etapa do estudo, cada submissão, cada revisão, cada troca de informação entre os autores. Tamanha dedicação merece, sem dúvida, ser celebrada! 

Em segundo lugar, saliento que não se trata de uma revisão sistemática qualquer. Não estou com isto a procurar ser pretensioso. Apesar de ser um dos coautores, seria injusto assumir que tive a mesma cota parte de responsabilidade no produto final que o Rui ou a Professora Anna. Não há comparação! Contudo, julgo-me apto a reconhecer quando há algo de extraordinário numa peça de cariz científico. Em particular, esta revisão sistemática incluiu 119 estudos, publicados entre 2010 e 2023, envolvendo 20 competições de futebol, tanto nacionais quanto internacionais. Pode-se imaginar quantas revisões sistemáticas incluem 119 estudos ou mais? 

E, para responder à incontornável objeção de que “quantidade não é sinónimo de qualidade”, convido-vos a ler o artigo na íntegra. Como referem os britânicos, there is a lot of food for thought. Que o abstract possa servir como aperitivo (Figura 2).

 

Figura 2. Abstract da revisão sistemática publicada no German Journal of Exercise and Sport Research.

 

No final do dia, um pouco mais de conhecimento não ocupa espaço e pode ajudar a tornar a prática no terreno mais eficaz. Espero que seja útil!

 

Reference

Freitas, R., Volossovitch, A., Almeida, C. H., & Vleck, V. (2023). Elite-level defensive performance in football: a systematic review. German Journal of Exercise and Sport Research, 1–13. Advance online publication. https://doi.org/10.1007/s12662-023-00900-y