Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes
critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com
revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3)
associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do
Desporto.
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Autores: Pan, P., Lago-Peñas, C., Wang, Q., & Liu, T.
País: China
Data de publicação: 6-agosto-2024
Título: Evolution of passing network
in the Soccer World Cups 2010–2022
Referência: Pan, P., Lago-Peñas, C., Wang, Q., & Liu, T.
(2024). Evolution of passing network in the Soccer World Cups 2010–2022. Science
and Medicine in Football, 1–12. Advance online
publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2386359
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 56 – agosto de
2024.
Apresentação do problema
O passe é uma ação crucial para a organização ofensiva de uma equipa (Bradley et al., 2013; Liu et al., 2021, 2022). Indicadores como o número e a eficácia dos passes e a posse de bola são comuns na avaliação desta ação fundamental (Caicedo-Parada et al., 2020; Lago-Penas et al. 2023; Liu et al. 2021), mas não captam integralmente a dinâmica contextual envolvida (Buldu et al., 2018). Para melhor entender o processo de passe, é essencial analisar as conexões entre os jogadores (Braham & Small, 2018; Clemente et al., 2020).
Uma rede de passes é uma ferramenta visual complexa que analisa interações de passes entre jogadores, baseada na teoria dos grafos, na física estatística, nas dinâmicas não lineares e na ciência de dados (Caicedo-Parada et al. 2020). As métricas da rede de passes revelam onde e entre quem os passes ocorrem, destacando jogadores-chave na criação de jogadas e a própria coordenação da equipa. Por exemplo, alta centralidade indica jogadores fulcrais na estrutura de passes, enquanto alta densidade reflete uma equipa bem coordenada. Estas métricas permitem compreender o desempenho de equipas e jogadores, tal como a sua evolução (Caicedo-Parada et al., 2020). As equipas vencedoras mostram maior centralidade e grau de prestígio entre médios e defesas, sublinhando a sua relevância no sucesso do jogo da equipa (Aquino et al., 2019; Clemente et al., 2020).
A análise das redes de passes tem sido utilizada para identificar jogadores-chave e elos essenciais na equipa, oferecendo informações valiosas aos treinadores sobre o desempenho coletivo (Buldu et al., 2018; Clemente et al., 2017, 2020; Pina et al., 2017). As equipas bem-sucedidas tendem a exibir maior densidade de rede e coeficientes de clustering superiores (Aquino et al., 2019; Caicedo-Parada et al., 2020). Na Bundesliga, os médios-centro defensivos tendem a dominar nas equipas vencedoras, enquanto os defesas centrais se destacam mais nos conjuntos derrotados (Korte et al. 2019). A análise de formações 1-4-4-2 e 1-4-2-3-1 revelou maior envolvimento dos avançados na dinâmica de passe no 1-4-4-2, sublinhando a importância das variáveis táticas na análise das redes de passes (McLean et al. 2018).
Os desportos, incluindo o futebol, passam por um processo evolutivo ao longo do tempo, acompanhado por melhorias de cariz fisiológico, morfológico e habilidades motoras dos jogadores. Este processo evolutivo também resulta de alterações das regras e de aspetos estratégico-táticos, do aumento de profissionalismo, da adoção de novas tecnologias e da exposição global e transformações ao nível do treino (Norton & Olds, 2001; Wallace & Norton, 2014). Estas tendências evolutivas tanto no desempenho físico, quanto na performance tático-técnica, têm sido demonstradas em diversos estudos em ligas de futebol na Europa (Barnes et al., 2014; Bush et al., 2015; Konefał et al., 2019; Lago-Penas et al., 2023).
Em particular, o Campeonato do Mundo da FIFA proporciona
uma plataforma onde os melhores jogadores competem ao mais alto nível a cada 4
anos, tornando-se uma amostra ideal para a análise de desempenho no futebol
(Wallace & Norton 2014). Wallace e Norton (2014) investigaram as finais dos
Campeonatos do Mundo de 1966 a 2010 e revelaram uma tendência crescente na
densidade de jogadores, na velocidade do jogo e na taxa de passes por minuto. Posto
isto, compreender as tendências de passes a partir da análise de redes permite inferir
como se tem processado o progresso estratégico-tático na modalidade e explorar
as razões por detrás da(s) mudança(s). Tendo em conta as considerações anteriores,
este estudo visou investigar a evolução das redes de passes nos Campeonatos do
Mundo da FIFA de 2010 a 2022, tanto ao nível das equipas quanto dos jogadores.
Métodos
Amostra: composta por 256 jogos (7328 observações individuais de todos os jogadores envolvidos nos jogos) dos Campeonatos do Mundo da FIFA entre 2010 e 2022. Para cada jogo, as distribuições de passe entre os companheiros de equipa foram convertidas em matrizes de adjacência para a posterior construção das redes. Os dados dos passes foram obtidos no site oficial da FIFA (fifa.com).
Procedimentos: as relações de passe entre os companheiros de equipa formam
uma rede na qual os jogadores são considerados nós e as relações diretas como
arestas. Após determinadas as redes de passes para cada jogo, foram calculadas diversas
métricas da rede, tanto ao nível da equipa, como em termos individuais. Por
fim, também foram consideradas variáveis contextuais para construir modelos
lineares mistos, de modo a investigar a evolução das redes de passes das
equipas e das respetivas métricas associadas aos jogadores. O desenho do estudo
encontra-se ilustrado na Figura 2.
Figura 2. Desenho detalhado do estudo (Pan et al., 2024).
Métricas da rede de passes: as relações de passe entre os jogadores (incluindo os substitutos) formam a rede de passes. A distribuição de passes de cada equipa foi configurada como uma matriz de adjacência ponderada, resultando em duas matrizes de adjacência para cada jogo no Mundial. O peso das matrizes de adjacência foi determinado com base no número de passes realizados entre cada par de jogadores na mesma direção. Para avaliar as conexões de passe de toda a equipa e refletir como a rede de passes muda ao longo do tempo (Braham & Small, 2018; Clemente et al., 2017), foram calculadas 14 métricas distintas (ver Tabela 1), utilizando o software de análise de redes Gephi (versão 0.10) (Bastian et al., 2009).
Tabela 1. Métricas da rede de passes utilizadas no estudo e
respetivas definições (Pan et al., 2024).
Posições de jogo e
ranking das equipas: a posição de jogo é um
dos principais fatores nos estudos sobre redes de passes (Clemente et al.,
2020; Yu et al., 2020); com base num estudo anterior (Clemente et al., 2020),
os jogadores foram classificados em 6 categorias: guarda-redes (n =
521), defesa central (n = 1192), lateral (n = 1223), médio (n
= 2039), extremo (n = 1320) e avançado centro (n = 1033). A qualidade da equipa
e do oponente são fatores contextuais primárias na análise de desempenho em
jogos de futebol (Almeida et al., 2014; Lago-Peñas, 2009). Com base em estudos
anteriores sobre a qualidade das equipas no Mundial (Wunderlich & Memmert
2016; Lee & Mills 2021), este estudo utilizou a última atualização do
Ranking Mundial da FIFA (FIFA, 2023) antes do torneio para classificar as
equipas em duas categorias: ranking elevado (1º–16º) e ranking baixo (17º–32º).
Análise estatística: toda a informação foi
organizada no Excel e processada no R Studio. A estatística descritiva foi apresentada
em médias ± desvios-padrão. As partidas do Mundial foram divididas em 4 grupos
de acordo com o ano (2010, 2014, 2018 e 2022). As métricas da rede de passes
foram definidas como variáveis dependentes e foram elaborados modelos de
efeitos mistos lineares, através do pacote R lmerTest (Kuznetsova et
al., 2015), para analisar a evolução das redes de passes no Mundial.
Primeiramente, investigou-se a evolução da rede de passes de toda a equipa, com
o ano do Mundial, o ranking da equipa e o ranking da oposição como efeitos
fixos, com a equipa como efeito aleatório. Posteriormente, analisou-se a
evolução das métricas da rede de passes dos jogadores. As métricas da rede de
passes dos jogadores foram divididas em 6 grupos por posição de jogo
(guarda-redes, defesa central, lateral, médio-centro, médio-ala e avançado), sendo
o modelo construído na base do anterior. As assunções de homogeneidade e normalidade
de cada modelo foram confirmadas sem quaisquer problemas. O valor de
significância foi estabelecido em α < 0.05 para todas as análises.
Principais resultados
· Métricas das redes de passes a nível macro (equipa)
Entre os jogos do Mundial de 2010 e os de 2018, houve uma diminuição das conexões de passe, sugerindo uma evolução significativa na atividade de passe e nos estilos de jogo. As interações entre companheiros de equipa diminuíram, e o número de transmissões entre 2 jogadores também decresceu, o que implica que as conexões de passe se tornaram mais diretas. Em 2018, tanto as equipas de topo como as de menor ranking apresentaram uma cooperação de equipa mais fraca em comparação com 2010, devido à diminuição dos índices de centralização. Assim, parece que o estilo de jogo no Mundial de 2018 diferiu do de 2010, sinalizando a proeminência de um estilo de jogo mais direto.
No entanto, é interessante
notar que, no Mundial de 2022, as melhores equipas demonstraram uma preferência
clara por um estilo de jogo focado na manutenção da posse de bola. As métricas
das redes de passe evidenciaram que essas equipas apresentaram uma cooperação e
coordenação mais fortes entre os jogadores do que em 2010. Sabe-se que uma
circulação mais frequente da bola nos jogos contribui para a criação de mais
oportunidades de golo. Os resultados sugerem que, após o domínio temporário de
estilos de jogo mais direto ou misto em 2018, o estilo baseado na posse de bola
voltou a predominar entre as equipas de alto nível no Mundial de 2022.
· Métricas das redes de passes a nível micro (jogador)
O estudo mostrou que as métricas das redes de passes dos médios diminuíram ligeiramente. Em 2010, lideravam estas métricas, dominando a circulação de passes e a organização ofensiva. Contudo, no Mundial de 2022, o seu papel nas métricas de passe reduziu-se, sugerindo que, embora continuem fundamentais na construção ofensiva, o seu domínio na circulação de jogo atenuou. Esta mudança pode estar ligada à maior diferenciação dos papéis táticos dos médios, como os médios ofensivos e defensivos.
Nos avançados-centro, também se observou uma diminuição geral nas receções de passe. Em organização ofensiva, a alta frequência de passes visa criar boas oportunidades de golo, enquanto os avançados precisam de se deslocar para gerar espaços. Além disso, os avançados de equipas com maior posse de bola tendem a exibir um melhor desempenho de corrida em comparação com aqueles de equipas com menor posse.
Em contraste com a perda de destaque dos médios-centro e dos avançados-centro, os defesas centrais ganharam maior importância nas interações de passe da equipa. Alguns até lideraram em métricas das redes de passe, refletindo uma centralidade crescente na coordenação e cooperação da equipa. Esta mudança pode ser explicada pela evolução tática, onde as equipas de posse de bola movem os avançados para o meio-campo adversário, atribuindo aos defesas centrais mais responsabilidades organizativas, quer através de passes curtos, quer mediante passes longos. A nova regra do pontapé de baliza de 2019, que permite iniciar a jogada dentro da área de penálti, também reforçou o papel dos defesas centrais e dos guarda-redes na etapa de construção de jogo.
Este estudo também revelou
uma tendência crescente nos indicadores das redes de passes dos guarda-redes,
tanto em equipas de topo como de menor ranking. Desta maneira, pode-se inferir
que iniciar a construção de jogo a partir de trás, com maiores exigências
técnicas e táticas para os defesas centrais e guarda-redes, é uma das
tendências evolutivas no futebol.
· Métricas das redes de passes em função da qualidade das
equipas
No global, as equipas de
topo apresentaram uma tendência crescente em várias métricas das redes de passes
ao longo dos 12 anos. As equipas mais fortes tendem a aumentar a frequência das
conexões entre companheiros para criar melhores oportunidades de golo. Por sua
vez, as equipas de menor ranking registaram uma diminuição na coordenação coletiva.
Como as equipas de topo geralmente avançam os seus elementos para o meio-campo
adversário e adotam um “jogo de posse total”, as equipas de menor ranking têm
poucas oportunidades de manter a posse de bola. Nestas circunstâncias, estas
equipas recorrem mais a passes longos e rápidos, atravessando grande parte do
campo para encontrar jogadores mais bem posicionados, produzindo assim jogadas
de contra-ataque.
Aplicações práticas
Com base nos resultados
destacados, foram identificadas 5 aplicações práticas para os profissionais de
treino. É importante sublinhar que estas representam tendências atuais ao mais
alto nível do futebol. Portanto, a interpretação e implementação destas
práticas devem sempre levar em consideração o contexto específico em que
ocorrem o treino e a competição.
1. Estimular um estilo de jogo baseado na posse de bola:
os resultados mostraram que as equipas de topo em 2022 voltaram a adotar um
estilo de jogo mais focado na posse de bola. Os treinadores devem propor
sessões de treino que aprimorem a capacidade dos jogadores de manter a posse e
controlar o ritmo do jogo, sobretudo, através de atividades jogadas que
promovam a leitura tática do jogo, a precisão do passe sem descurar a
intencionalidade de concretizar golo.
2. Diferenciar as missões táticas dos médios-centro: uma vez que os médios-centro exibiram uma diminuição na sua influência nas métricas de passe em 2022, comparativamente com os Mundiais anteriores, os treinadores devem trabalhar para desenvolver competências específicas em função das características dos médios e do modelo de jogo. Por exemplo, as sessões de treino devem estimular (1) mais comportamentos de antecipação, cobertura e ligação intersetorial para os médios defensivos e (2) ações criativas e de chegada à área (finalização) para os médios-centro com características mais ofensivas.
3. Aumentar a participação dos defesas centrais e guarda-redes na etapa de construção de jogo: os defesas centrais e os guarda-redes ganharam maior importância nas interações de passe no meio-campo defensivo. Os treinadores devem, portanto, conceber exercícios que aperfeiçoem a desenvoltura tático-técnica destes jogadores em iniciar ataques a partir do setor mais recuado do campo, recorrendo a passes curtos e longos e, essencialmente, tornando a tomada de decisão mais robusta quando sob pressão dos oponentes.
4. Fomentar a adaptabilidade a métodos ofensivos rápidos dos adversários: em resposta ao método de contra-ataque das equipas menos bem classificadas, as equipas técnicas devem configurar exercícios que simulem situações de desorganização momentânea e inferioridade numérica. Estas situações práticas devem orientar os jogadores a reagir rapidamente nos momentos de transição defensiva, desenvolvendo a capacidade de pressionar imediatamente o portador da bola adversário e recuperar eficazmente a posição defensiva dentro da estrutura tática de base da equipa.
5. Explorar o espaço e o tempo permitidos nas situações
de pontapé de baliza para incrementar a eficácia da etapa de construção:
com a alteração da regra do pontapé de baliza em 2019, a dinâmica coletiva de
construção de jogo a partir de trás mudou significativamente. Os treinadores
devem utilizar o tempo e o espaço disponíveis para aumentar a segurança e a
precisão dos passes em construção baixa, mas também para atrair os oponentes para
determinadas zonas, criando assim espaços de progressão que perturbem a
organização defensiva adversária.
Conclusão
O estudo demonstrou mudanças significativas nos
parâmetros das redes de passes, tanto ao nível das equipas como dos jogadores, entre
os Campeonatos do Mundo da FIFA disputados de 2010 a 2022. A análise revelou
uma mudança no estilo de jogo, passando de um jogo baseado na posse de bola nos
Mundiais de 2010 e 2014 para uma abordagem mais direta em 2018, com um
ressurgimento do jogo de posse em 2022. As equipas mais bem cotadas tendem
consistentemente para o jogo de posse, enquanto as equipas menos cotadas
adotaram estratégias mais associadas ao jogo direto ao longo deste período. Ao
nível dos jogadores, a proeminência posicional dos defesas centrais e dos
guarda-redes aumentou consideravelmente, refletindo a crescente importância
tática e a exigência colocada nestas posições nas interações coletivas no
Mundial de 2022. Os resultados destacam como a evolução das filosofias estratégico-táticas
influenciam os papéis e as contribuições das diferentes posições no jogo de
futebol.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram originalmente
escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua
portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science & Medicine in Football.