30/09/2024

Artigo do mês #57 – setembro 2024 | Autogolos no futebol: será que ocorrem aleatoriamente ou exibem padrões sistemáticos?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Mehta, S., Schlenger, J., Memmert, D., & Wunderlich, F.

País: Alemanha

Data de publicação: 16-setembro-2024

Título: Own goals in football: do they occur randomly or exhibit systematic patterns?

Referência: Mehta, S., Schlenger, J., Memmert, D., & Wunderlich, F. (2024). Own goals in football: do they occur randomly or exhibit systematic patterns? International Journal of Performance Analysis in Sport, 1–21. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24748668.2024.2402621

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 57 – setembro de 2024.

 

Apresentação do problema

A marcação de golos no futebol pode ser considerada uma tarefa altamente complexa. Tendo em conta a média de menos de 3 golos por jogo no futebol de alto rendimento (Li & Zhao, 2021; Michailidis et al., 2013; Zhao & Zhang, 2019), o empenho necessário para marcar um único golo é notável, e a falha em conseguir fazê-lo parece ser uma parte intrínseca do próprio jogo. 

Os investigadores têm analisado a marcação de golos para identificar estratégias mais ou menos promissoras, incluindo aspetos como a área de onde o golo foi marcado (Michailidis et al., 2013), a duração das sequências de passes antes do golo (Wright et al., 2011), o estilo de ataque (González-Rodenas et al., 2019), o papel das bolas paradas (Yiannakos & Armatas, 2006) ou o posicionamento dos defesas durante a finalização (Schulze et al., 2018). No entanto, nem todos os golos são marcados através de estratégias sistemáticas, como defendido por Lames (2018) e Wunderlich et al. (2021), que encontraram influências aleatórias (i.e. caóticas ou não planeadas) no processo de marcação de quase metade dos golos no futebol de elite. 

O presente artigo foca-se num tipo de golo que parece contrastar com a ideia de estratégias sistemáticas: os autogolos (figura 2). Um autogolo resulta de uma ação incorreta, acidental ou malsucedida de um defensor que termina em golo. Este tipo de golo difere de um desvio, pois se o defesa tocar a bola após um remate já direcionado à baliza, o golo será atribuído ao atacante. Casos típicos de autogolos incluem passes, cruzamentos ou remates que, sem a intervenção do defesa, não iriam na direção da baliza, mas acabam por entrar devido a uma tentativa de alívio/corte. Nos principais campeonatos de futebol, os autores de autogolos são oficialmente anunciados, permitindo-nos confiar na informação publicada.

 

Figura 2. Autogolo do guarda-redes Emiliano Martínez no Aston Villa 3 x 3 Liverpool, da FA Premier League 2023/2024 (imagem não publicada pelos autores).

 

Este tema ganhou relevância pública durante o Campeonato Europeu de 2021, onde foram registados 11 autogolos. Apesar de os autogolos terem sido considerados parte de padrões gerais de concretização (Li & Zhao, 2021) ou como um fator de motivação individual no desempenho do jogo (Hüffmeier et al., 2020), a análise específica e aprofundada de autogolos tem sido negligenciada. Os autogolos têm até sido excluídos de análises devido à sua “natureza muitas vezes aleatória” (Anzer et al., 2021, p. 2526). Embora alguns resultados sobre autogolos tenham sido reportados, como a sua maior frequência na Premier League em comparação com as ligas italiana e espanhola (Li & Zhao, 2021), é necessário obter mais informação sobre outros fatores associados a estes golos para melhor entender a sua ocorrência. 

No futebol, como em outros desportos, são usados indicadores de desempenho para compreender quais as decisões ou as ações que são mais promissoras, através de modelos sistemáticos e estruturados do jogo (Lepschy et al., 2018, 2020; Rein et al., 2017). Contudo, abordagens estruturadas não constituem as únicas determinantes dos resultados, já que estes estão muitas vezes caracterizados pela incerteza e imprevisibilidade (Gibbons, 1997; Kahneman & Tversky, 2012; Tversky & Kahneman, 1992). O estudo destas influências aleatórias tem recebido menos atenção na investigação em ciências do desporto. Portanto, esta investigação centrou-se nos autogolos como um aspeto do jogo que parece aleatório e apenas parcialmente influenciável. O propósito do trabalho foi averiguar se os autogolos seguem padrões semelhantes aos golos normais, sugerindo sistematicidade, ou se contrastam, indicando padrões completamente aleatórios ou erráticos.

 

Métodos

Amostra: baseou-se num levantamento completo de golos de uma das principais ligas de futebol da Europa – Premier League inglesa –, abrangendo 7 épocas consecutivas, de 2012/2013 a 2018/2019. Durante este período, foram registados mais de 7000 golos, dos quais 253 foram identificados como autogolos, garantindo uma amostra suficientemente grande. Um autogolo do jogo entre o Crystal Palace e o Newcastle United, realizado a 21 de dezembro de 2013, foi excluído devido à falta de dados. 

Dados: para cada jogo, foram recolhidos metadados (e.g., data, equipas, probabilidades de apostas) e informações detalhadas sobre o autogolo (e.g., minuto, resultado corrente, equipa beneficiada) e o processo de marcação do autogolo (e.g., organização defensiva, zonas do campo das ações anteriores e do golo, número de jogadores nas zonas perigosas). Os dados sobre a existência de autogolos, bem como os metadados dos jogos, foram obtidos de várias fontes online, como football-data.co.uk ou www.whoscored.com. As variáveis relacionadas com o processo exato de marcação dos autogolos foram anotadas manualmente por observadores especializados, utilizando vídeos dos respetivos golos. 

Observação sistemática: as filmagens incluíam diferentes ângulos de câmara, repetições em câmara lenta e uma sequência suficientemente longa antes do golo, o que assegurou uma melhor observação dos dados. A fiabilidade interobservador foi apurada após a anotação de 50 autogolos da amostra por 2 observadores experientes e treinados para o efeito, obtendo bons resultados. As variáveis observadas a partir das filmagens foram: número de adversários (i.e., atacantes) na área de penálti; número de adversários na proximidade direta (definida como um raio de 3 metros em torno do defesa que marcou o autogolo); organização defensiva (organizada ou desorganizada); parte do corpo (cabeça, braço, tronco, membros inferiores); parte específica dos membros inferiores (pé, perna, coxa); tipo de ação precedente (cruzamento, passe, duelo, drible, remate, cabeceamento); zona da ação precedente e zona do autogolo, distinguindo entre 8 zonas do campo, conforme definido por Rathke (2017). As variáveis contextuais (e.g., probabilidades de apostas, situação de jogo, minuto do golo, resultado corrente) foram obtidas de fontes online ou de um estudo anterior (Wunderlich et al., 2021). 

Análise estatística: na ausência de dados comparáveis para todos os golos, foram apresentadas estatísticas descritivas sobre como os autogolos aconteceram. Quando disponíveis, testaram-se diferenças entre autogolos e todos os golos através de testes de Qui-quadrado, considerando significativas as diferenças abaixo de 5%. Para resultados significativos, indicou-se também a dimensão de efeito (Cohen’s w). O mesmo procedimento foi aplicado para comparações dentro do mesmo tipo de golo, como verificar se as equipas da casa marcaram mais autogolos que as visitantes. Para evitar confusão, as equipas foram descritas como beneficiadas por autogolos, em vez de marcadoras. Assim, comparam-se as equipas que marcaram golos com as que beneficiaram de autogolos. Todos os golos foram incluídos nos resultados para garantir comparabilidade com outros estudos; no entanto, nos testes estatísticos, os autogolos foram comparados com golos normais (excluindo autogolos) para evitar duplicações.

 

Principais resultados

 

·     Localização do jogo

As evidências mostram que as equipas da casa foram significativamente mais bem-sucedidas tanto em golos normais como em autogolos, mas não foram encontradas associações estatisticamente significativas entre o tipo de golo (normal ou autogolo) e se a equipa joga em casa ou fora.

 

·     Situação de jogo

Não foi revelada uma associação significativa entre a situação de jogo (jogadas corridas vs. bolas paradas) e a ocorrência de autogolos em relação aos golos normais, mas, quando os dados foram divididos por diferentes tipos de bolas paradas, observou-se que os autogolos quase nunca resultaram de penáltis, sendo bem mais comuns após pontapés de canto.

 

·     Resultado no marcador e ordem do golo

Os resultados indicam que a maioria dos autogolos ocorreu em situações de empate, em comparação com quando uma equipa estava a ganhar ou a perder. Embora não tenha sido encontrada uma associação estatisticamente significativa entre autogolos e o resultado corrente do jogo (ganhar, perder ou empatar), os autogolos tendem a ser mais frequentes como o primeiro golo do jogo e quando o resultado está empatado. Importa destacar que foi identificada uma diferença significativa quanto à ordem do golo, sendo os autogolos mais comuns como o primeiro tento do jogo.

 

·     Qualidade da equipa

As equipas favoritas, com base nas probabilidades de apostas, beneficiaram significativamente mais de autogolos do que as outsiders. No entanto, não foram encontradas diferenças significativas nos padrões de autogolos entre equipas favoritas e outsiders. Analisando a força absoluta, as equipas do topo da tabela beneficiaram mais frequentemente de autogolos do que as do fundo, mas a ocorrência de autogolos foi semelhante quando equipas do topo enfrentaram outras de topo ou quando equipas do fundo jogaram entre si. Tal sugere que a força relativa entre equipas influencia mais a ocorrência de autogolos do que a força absoluta ou a qualidade geral do jogo.

 

·     Efeitos relativos ao tempo

Não foram encontradas diferenças significativas entre autogolos e golos normais relativamente ao tempo de jogo, quando este foi dividido em intervalos de 15 minutos. Também não houve diferenças significativas em relação à jornada dentro da época ou à distribuição de autogolos ao longo das diferentes épocas analisadas.

 

·     Zonas do campo

Os dados mostram uma forte tendência para os autogolos serem marcados mais perto da baliza do que os golos normais, com mais de metade dos autogolos ocorrendo na zona 1 (pequena área entre os postes), enquanto essa zona representa apenas 22,3% dos golos normais. A zona 2 (pequena área fora dos postes) foi responsável por 13,4% dos autogolos, mas apenas 1,2% dos golos normais. Quase nenhum autogolo foi marcado fora da área de penálti, contrastando com 15,7% dos golos normais (figura 3). Foi identificada uma associação estatisticamente significativa entre as zonas dentro da área de penálti e a ocorrência de autogolos.

 

Figura 3. Distribuição da origem dos autogolos com base nas zonas marcadas em metade do campo de futebol. Cada zona é indicada com números (Z1 a Z7), juntamente com a contagem de golos, percentagem do total de autogolos e densidade de golos (média de golos por metro quadrado). A cor mais escura representa uma maior densidade de golos. Note-se que as zonas Z2, Z4, Z5 e Z7 têm dois segmentos em cada lado da linha central do campo.

 

Cruzamentos ou passes diagonais, vindos das zonas 4, 5 e 7, foram responsáveis pela maioria das ações que antecederam os autogolos.

 

·     Organização defensiva

Cerca de 63% dos autogolos surgiram apesar de a defesa estar organizada. Do ponto de vista estatístico, a defesa estava significativamente mais organizada do que desorganizada aquando da marcação de autogolos. Não foram encontradas associações estatisticamente significativas entre a organização defensiva e o estatuto da equipa que sofreu o autogolo (visitada ou visitante).

 

·     Ação prévia ao autogolo

Quase um terço de todos os autogolos ocorreu após um remate da equipa adversária (30,2%), enquanto cruzamentos e passes representaram mais de um quarto dos casos cada (27,9 e 26,9%, respetivamente). A “ação anterior” refere-se à última ação do adversário antes da bola chegar ao jogador que marcou o autogolo.

 

·     Parte do corpo

O pé e a cabeça, apesar de serem as partes do corpo mais utilizadas deliberadamente no futebol, representaram apenas cerca de 50% dos autogolos. O segmento da perna, por exemplo, originou 23% dos casos.

 

·     Oponentes em zonas perigosas

Em média, 3,88 adversários estavam na área de penálti no momento do autogolo, sendo mais comum a presença de 4 (27,7%) e 3 atacantes (24,5%) nessa zona. Ao redor do marcador do autogolo, num raio de 3 metros, estiveram em média 0,87 adversários, com 1 atacante nas proximidades em 55,3% das ocasiões, seguido de 0 atacantes em 30,8% das vezes.

 

·     Análise combinada do tipo de ação prévia e zona do autogolo

Em relação ao tipo de ação prévia e zona do autogolo, a combinação remate com autogolo na zona 1 ocorreu em 15,4% das vezes, seguido de passe, cruzamento e cabeceamento com autogolos concedidos também na zona 1 em 13,0%, 11,5% e 10,3% das ocasiões, respetivamente.

 

·     Análise combinada da qualidade da equipa com a zona do autogolo e o tipo de ação prévia

As equipas favoritas dominaram significativamente os autogolos derivados das zonas 3 (71,9%) e 6 (78,1%), enquanto os outsiders beneficiaram mais de ações dentro da área (zonas 3 e 1) ou assistências diagonais das laterais (zona 7). Em termos de ações precedentes, os favoritos foram superiores em cruzamentos, remates e passes, representando cerca de ~67% dos golos nessas categorias. Os cabeceamentos foram a única ação onde os outsiders conseguiram nivelar os favoritos. As evidências sugerem que a superioridade dos favoritos está mais associada a vantagens técnicas do que físicas.

 

·     Análise combinada da situação de jogo

Quase três quartos (73,9%) dos autogolos resultantes de cantos foram marcados na zona 1. Da mesma forma, mais de metade (54,5%) dos autogolos provenientes de livres também ocorreram nessa zona. Além disso, quase metade (43,7%) dos autogolos em lances de bola corrida foram registados na zona 1. Assim, a zona 1 revelou-se uma área crucial para a ocorrência de autogolos, independentemente de se tratar de bolas paradas ou de jogadas corridas, sendo especialmente proeminente em situações de canto.

 

Aplicações práticas

Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 5 aplicações práticas que podem ser aproveitadas pelos treinadores para melhorar a performance das suas equipas, quer no sentido de provocar, quer no de prevenir autogolos. Estas aplicações focam-se em otimizar as estratégias ofensivas e defensivas para reduzir a probabilidade de autogolos e aproveitar momentos de desorganização adversária, permitindo uma abordagem mais sistemática e informada em campo. 

1. Treinar para aproveitar ou evitar situações caóticas: algumas situações de jogo mais caóticas e inesperadas podem levar a autogolos. Os treinadores devem preparar exercícios específicos que simulem estas situações, tanto ofensivas quanto defensivas, para treinar os jogadores a provocarem erros nos adversários ou a evitá-los na própria equipa. A análise de desempenho deve focar-se nos momentos de jogo caóticos que podem influenciar o resultado de forma imprevisível, explorando a relação entre ordem e caos nas decisões. 

2. Considerar o contexto do jogo na preparação estratégica para a competição: a vantagem de jogar em casa também influenciou a ocorrência de autogolos, o que indica que este processo não é completamente aleatório. Os treinadores devem ter em mente que equipas favoritas, especialmente quando jogam em casa, tendem a beneficiar mais de autogolos, possivelmente devido à menor qualidade defensiva e dos guarda-redes das equipas menos cotadas. Assim, a equipa deve estar preparada para explorar o contexto de jogar em casa, tirando partido da vantagem psicológica e tática, treinando ainda ações que coloquem pressão adicional sobre adversários menos qualificados. 

3. Trabalhar a organização defensiva em situações de bola parada: os autogolos são mais frequentes em pontapés de cantos, possivelmente devido à elevada presença de jogadores na área em comparação com outras situações de jogo. As equipas técnicas devem propor exercícios que aprimorem a organização defensiva durante os cantos, simulando cenários com vários atacantes dentro da área (4 ou mais). O objetivo passa por desenvolver comportamentos coletivos e individuais que minimizem os riscos de desorganização e reduzir a probabilidade de autogolos, nomeadamente através de uma melhor comunicação entre os jogadores e um posicionamento defensivo mais eficaz. 

4. Prevenir autogolos em zonas próximas da linha de baliza: a maioria dos autogolos ocorre na pequena área entre os postes da baliza (zona 1), enquanto zonas mais afastadas raramente resultam em autogolos. Os profissionais do treino devem estimular os defensores a adotar comportamentos específicos em situações de passes e cruzamentos laterais adjacentes à zona 1. É essencial uma organização defensiva adequada para evitar situações de infortúnio ou erro, uma vez que ações indiretas, como cruzamentos e passes, são mais propensas a gerar autogolos do que remates diretos. 

5. Minimizar autogolos por contactos acidentais: mais de metade dos autogolos foram marcados com partes do corpo que não o pé ou a cabeça, indicando que os mesmos resultam mais de contactos acidentais do que de falhas técnicas ao tentar intercetar ou aliviar a bola. Para minimizar este tipo de ocorrências, recomenda-se que, no treino, sejam recriados momentos de pressão dentro da área, onde é comum a presença de vários atacantes. A ênfase deve estar na organização defensiva e na consciência posicional dos jogadores, mesmo em situações de pressão intensa.

 

Conclusão

Este estudo revelou que os autogolos, embora frequentemente considerados aleatórios, seguem padrões específicos que podem ser explorados tanto ofensiva quanto defensivamente. Equipas favoritas, especialmente em casa, tendem a beneficiar mais de autogolos, enquanto situações caóticas ou com múltiplos atacantes na área aumentam o risco destes eventos raros do jogo. A maioria dos autogolos ocorre na pequena área entre os postes, sobretudo após cruzamentos ou passes laterais, mesmo com uma defesa organizada. Assim, uma preparação tática cuidadosa e o treino de situações imprevisíveis podem não só minimizar o risco de autogolos, como também criar oportunidades para explorar fragilidades adversárias em momentos críticos do jogo.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Performance Analysis in Sport.

28/08/2024

Artigo do mês #56 – agosto 2024 | Evolução da rede de passes nos Campeonatos do Mundo de Futebol de 2010 a 2022

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.


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Autores: Pan, P., Lago-Peñas, C., Wang, Q., & Liu, T.

País: China

Data de publicação: 6-agosto-2024

Título: Evolution of passing network in the Soccer World Cups 2010–2022

Referência: Pan, P., Lago-Peñas, C., Wang, Q., & Liu, T. (2024). Evolution of passing network in the Soccer World Cups 2010–2022. Science and Medicine in Football, 1–12. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2386359

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 56 – agosto de 2024.

 

Apresentação do problema

O passe é uma ação crucial para a organização ofensiva de uma equipa (Bradley et al., 2013; Liu et al., 2021, 2022). Indicadores como o número e a eficácia dos passes e a posse de bola são comuns na avaliação desta ação fundamental (Caicedo-Parada et al., 2020; Lago-Penas et al. 2023; Liu et al. 2021), mas não captam integralmente a dinâmica contextual envolvida (Buldu et al., 2018). Para melhor entender o processo de passe, é essencial analisar as conexões entre os jogadores (Braham & Small, 2018; Clemente et al., 2020). 

Uma rede de passes é uma ferramenta visual complexa que analisa interações de passes entre jogadores, baseada na teoria dos grafos, na física estatística, nas dinâmicas não lineares e na ciência de dados (Caicedo-Parada et al. 2020). As métricas da rede de passes revelam onde e entre quem os passes ocorrem, destacando jogadores-chave na criação de jogadas e a própria coordenação da equipa. Por exemplo, alta centralidade indica jogadores fulcrais na estrutura de passes, enquanto alta densidade reflete uma equipa bem coordenada. Estas métricas permitem compreender o desempenho de equipas e jogadores, tal como a sua evolução (Caicedo-Parada et al., 2020). As equipas vencedoras mostram maior centralidade e grau de prestígio entre médios e defesas, sublinhando a sua relevância no sucesso do jogo da equipa (Aquino et al., 2019; Clemente et al., 2020). 

A análise das redes de passes tem sido utilizada para identificar jogadores-chave e elos essenciais na equipa, oferecendo informações valiosas aos treinadores sobre o desempenho coletivo (Buldu et al., 2018; Clemente et al., 2017, 2020; Pina et al., 2017). As equipas bem-sucedidas tendem a exibir maior densidade de rede e coeficientes de clustering superiores (Aquino et al., 2019; Caicedo-Parada et al., 2020). Na Bundesliga, os médios-centro defensivos tendem a dominar nas equipas vencedoras, enquanto os defesas centrais se destacam mais nos conjuntos derrotados (Korte et al. 2019). A análise de formações 1-4-4-2 e 1-4-2-3-1 revelou maior envolvimento dos avançados na dinâmica de passe no 1-4-4-2, sublinhando a importância das variáveis táticas na análise das redes de passes (McLean et al. 2018). 

Os desportos, incluindo o futebol, passam por um processo evolutivo ao longo do tempo, acompanhado por melhorias de cariz fisiológico, morfológico e habilidades motoras dos jogadores. Este processo evolutivo também resulta de alterações das regras e de aspetos estratégico-táticos, do aumento de profissionalismo, da adoção de novas tecnologias e da exposição global e transformações ao nível do treino (Norton & Olds, 2001; Wallace & Norton, 2014). Estas tendências evolutivas tanto no desempenho físico, quanto na performance tático-técnica, têm sido demonstradas em diversos estudos em ligas de futebol na Europa (Barnes et al., 2014; Bush et al., 2015; Konefał et al., 2019; Lago-Penas et al., 2023). 

Em particular, o Campeonato do Mundo da FIFA proporciona uma plataforma onde os melhores jogadores competem ao mais alto nível a cada 4 anos, tornando-se uma amostra ideal para a análise de desempenho no futebol (Wallace & Norton 2014). Wallace e Norton (2014) investigaram as finais dos Campeonatos do Mundo de 1966 a 2010 e revelaram uma tendência crescente na densidade de jogadores, na velocidade do jogo e na taxa de passes por minuto. Posto isto, compreender as tendências de passes a partir da análise de redes permite inferir como se tem processado o progresso estratégico-tático na modalidade e explorar as razões por detrás da(s) mudança(s). Tendo em conta as considerações anteriores, este estudo visou investigar a evolução das redes de passes nos Campeonatos do Mundo da FIFA de 2010 a 2022, tanto ao nível das equipas quanto dos jogadores.

 

Métodos

Amostra: composta por 256 jogos (7328 observações individuais de todos os jogadores envolvidos nos jogos) dos Campeonatos do Mundo da FIFA entre 2010 e 2022. Para cada jogo, as distribuições de passe entre os companheiros de equipa foram convertidas em matrizes de adjacência para a posterior construção das redes. Os dados dos passes foram obtidos no site oficial da FIFA (fifa.com). 

Procedimentos: as relações de passe entre os companheiros de equipa formam uma rede na qual os jogadores são considerados nós e as relações diretas como arestas. Após determinadas as redes de passes para cada jogo, foram calculadas diversas métricas da rede, tanto ao nível da equipa, como em termos individuais. Por fim, também foram consideradas variáveis contextuais para construir modelos lineares mistos, de modo a investigar a evolução das redes de passes das equipas e das respetivas métricas associadas aos jogadores. O desenho do estudo encontra-se ilustrado na Figura 2.

  

Figura 2. Desenho detalhado do estudo (Pan et al., 2024).

 

Métricas da rede de passes: as relações de passe entre os jogadores (incluindo os substitutos) formam a rede de passes. A distribuição de passes de cada equipa foi configurada como uma matriz de adjacência ponderada, resultando em duas matrizes de adjacência para cada jogo no Mundial. O peso das matrizes de adjacência foi determinado com base no número de passes realizados entre cada par de jogadores na mesma direção. Para avaliar as conexões de passe de toda a equipa e refletir como a rede de passes muda ao longo do tempo (Braham & Small, 2018; Clemente et al., 2017), foram calculadas 14 métricas distintas (ver Tabela 1), utilizando o software de análise de redes Gephi (versão 0.10) (Bastian et al., 2009). 

 

Tabela 1. Métricas da rede de passes utilizadas no estudo e respetivas definições (Pan et al., 2024).


Posições de jogo e ranking das equipas: a posição de jogo é um dos principais fatores nos estudos sobre redes de passes (Clemente et al., 2020; Yu et al., 2020); com base num estudo anterior (Clemente et al., 2020), os jogadores foram classificados em 6 categorias: guarda-redes (n = 521), defesa central (n = 1192), lateral (n = 1223), médio (n = 2039), extremo (n = 1320) e avançado centro (n = 1033). A qualidade da equipa e do oponente são fatores contextuais primárias na análise de desempenho em jogos de futebol (Almeida et al., 2014; Lago-Peñas, 2009). Com base em estudos anteriores sobre a qualidade das equipas no Mundial (Wunderlich & Memmert 2016; Lee & Mills 2021), este estudo utilizou a última atualização do Ranking Mundial da FIFA (FIFA, 2023) antes do torneio para classificar as equipas em duas categorias: ranking elevado (1º–16º) e ranking baixo (17º–32º). 

Análise estatística: toda a informação foi organizada no Excel e processada no R Studio. A estatística descritiva foi apresentada em médias ± desvios-padrão. As partidas do Mundial foram divididas em 4 grupos de acordo com o ano (2010, 2014, 2018 e 2022). As métricas da rede de passes foram definidas como variáveis dependentes e foram elaborados modelos de efeitos mistos lineares, através do pacote R lmerTest (Kuznetsova et al., 2015), para analisar a evolução das redes de passes no Mundial. Primeiramente, investigou-se a evolução da rede de passes de toda a equipa, com o ano do Mundial, o ranking da equipa e o ranking da oposição como efeitos fixos, com a equipa como efeito aleatório. Posteriormente, analisou-se a evolução das métricas da rede de passes dos jogadores. As métricas da rede de passes dos jogadores foram divididas em 6 grupos por posição de jogo (guarda-redes, defesa central, lateral, médio-centro, médio-ala e avançado), sendo o modelo construído na base do anterior. As assunções de homogeneidade e normalidade de cada modelo foram confirmadas sem quaisquer problemas. O valor de significância foi estabelecido em α < 0.05 para todas as análises.

 

Principais resultados

 

·     Métricas das redes de passes a nível macro (equipa)

Entre os jogos do Mundial de 2010 e os de 2018, houve uma diminuição das conexões de passe, sugerindo uma evolução significativa na atividade de passe e nos estilos de jogo. As interações entre companheiros de equipa diminuíram, e o número de transmissões entre 2 jogadores também decresceu, o que implica que as conexões de passe se tornaram mais diretas. Em 2018, tanto as equipas de topo como as de menor ranking apresentaram uma cooperação de equipa mais fraca em comparação com 2010, devido à diminuição dos índices de centralização. Assim, parece que o estilo de jogo no Mundial de 2018 diferiu do de 2010, sinalizando a proeminência de um estilo de jogo mais direto. 

No entanto, é interessante notar que, no Mundial de 2022, as melhores equipas demonstraram uma preferência clara por um estilo de jogo focado na manutenção da posse de bola. As métricas das redes de passe evidenciaram que essas equipas apresentaram uma cooperação e coordenação mais fortes entre os jogadores do que em 2010. Sabe-se que uma circulação mais frequente da bola nos jogos contribui para a criação de mais oportunidades de golo. Os resultados sugerem que, após o domínio temporário de estilos de jogo mais direto ou misto em 2018, o estilo baseado na posse de bola voltou a predominar entre as equipas de alto nível no Mundial de 2022.

 

·     Métricas das redes de passes a nível micro (jogador)

O estudo mostrou que as métricas das redes de passes dos médios diminuíram ligeiramente. Em 2010, lideravam estas métricas, dominando a circulação de passes e a organização ofensiva. Contudo, no Mundial de 2022, o seu papel nas métricas de passe reduziu-se, sugerindo que, embora continuem fundamentais na construção ofensiva, o seu domínio na circulação de jogo atenuou. Esta mudança pode estar ligada à maior diferenciação dos papéis táticos dos médios, como os médios ofensivos e defensivos. 

Nos avançados-centro, também se observou uma diminuição geral nas receções de passe. Em organização ofensiva, a alta frequência de passes visa criar boas oportunidades de golo, enquanto os avançados precisam de se deslocar para gerar espaços. Além disso, os avançados de equipas com maior posse de bola tendem a exibir um melhor desempenho de corrida em comparação com aqueles de equipas com menor posse. 

Em contraste com a perda de destaque dos médios-centro e dos avançados-centro, os defesas centrais ganharam maior importância nas interações de passe da equipa. Alguns até lideraram em métricas das redes de passe, refletindo uma centralidade crescente na coordenação e cooperação da equipa. Esta mudança pode ser explicada pela evolução tática, onde as equipas de posse de bola movem os avançados para o meio-campo adversário, atribuindo aos defesas centrais mais responsabilidades organizativas, quer através de passes curtos, quer mediante passes longos. A nova regra do pontapé de baliza de 2019, que permite iniciar a jogada dentro da área de penálti, também reforçou o papel dos defesas centrais e dos guarda-redes na etapa de construção de jogo. 

Este estudo também revelou uma tendência crescente nos indicadores das redes de passes dos guarda-redes, tanto em equipas de topo como de menor ranking. Desta maneira, pode-se inferir que iniciar a construção de jogo a partir de trás, com maiores exigências técnicas e táticas para os defesas centrais e guarda-redes, é uma das tendências evolutivas no futebol.

 

·     Métricas das redes de passes em função da qualidade das equipas

No global, as equipas de topo apresentaram uma tendência crescente em várias métricas das redes de passes ao longo dos 12 anos. As equipas mais fortes tendem a aumentar a frequência das conexões entre companheiros para criar melhores oportunidades de golo. Por sua vez, as equipas de menor ranking registaram uma diminuição na coordenação coletiva. Como as equipas de topo geralmente avançam os seus elementos para o meio-campo adversário e adotam um “jogo de posse total”, as equipas de menor ranking têm poucas oportunidades de manter a posse de bola. Nestas circunstâncias, estas equipas recorrem mais a passes longos e rápidos, atravessando grande parte do campo para encontrar jogadores mais bem posicionados, produzindo assim jogadas de contra-ataque.

 

Aplicações práticas

Com base nos resultados destacados, foram identificadas 5 aplicações práticas para os profissionais de treino. É importante sublinhar que estas representam tendências atuais ao mais alto nível do futebol. Portanto, a interpretação e implementação destas práticas devem sempre levar em consideração o contexto específico em que ocorrem o treino e a competição.

 

1. Estimular um estilo de jogo baseado na posse de bola: os resultados mostraram que as equipas de topo em 2022 voltaram a adotar um estilo de jogo mais focado na posse de bola. Os treinadores devem propor sessões de treino que aprimorem a capacidade dos jogadores de manter a posse e controlar o ritmo do jogo, sobretudo, através de atividades jogadas que promovam a leitura tática do jogo, a precisão do passe sem descurar a intencionalidade de concretizar golo. 

2. Diferenciar as missões táticas dos médios-centro: uma vez que os médios-centro exibiram uma diminuição na sua influência nas métricas de passe em 2022, comparativamente com os Mundiais anteriores, os treinadores devem trabalhar para desenvolver competências específicas em função das características dos médios e do modelo de jogo. Por exemplo, as sessões de treino devem estimular (1) mais comportamentos de antecipação, cobertura e ligação intersetorial para os médios defensivos e (2) ações criativas e de chegada à área (finalização) para os médios-centro com características mais ofensivas. 

3. Aumentar a participação dos defesas centrais e guarda-redes na etapa de construção de jogo: os defesas centrais e os guarda-redes ganharam maior importância nas interações de passe no meio-campo defensivo. Os treinadores devem, portanto, conceber exercícios que aperfeiçoem a desenvoltura tático-técnica destes jogadores em iniciar ataques a partir do setor mais recuado do campo, recorrendo a passes curtos e longos e, essencialmente, tornando a tomada de decisão mais robusta quando sob pressão dos oponentes. 

4. Fomentar a adaptabilidade a métodos ofensivos rápidos dos adversários: em resposta ao método de contra-ataque das equipas menos bem classificadas, as equipas técnicas devem configurar exercícios que simulem situações de desorganização momentânea e inferioridade numérica. Estas situações práticas devem orientar os jogadores a reagir rapidamente nos momentos de transição defensiva, desenvolvendo a capacidade de pressionar imediatamente o portador da bola adversário e recuperar eficazmente a posição defensiva dentro da estrutura tática de base da equipa. 

5. Explorar o espaço e o tempo permitidos nas situações de pontapé de baliza para incrementar a eficácia da etapa de construção: com a alteração da regra do pontapé de baliza em 2019, a dinâmica coletiva de construção de jogo a partir de trás mudou significativamente. Os treinadores devem utilizar o tempo e o espaço disponíveis para aumentar a segurança e a precisão dos passes em construção baixa, mas também para atrair os oponentes para determinadas zonas, criando assim espaços de progressão que perturbem a organização defensiva adversária.

 

Conclusão

O estudo demonstrou mudanças significativas nos parâmetros das redes de passes, tanto ao nível das equipas como dos jogadores, entre os Campeonatos do Mundo da FIFA disputados de 2010 a 2022. A análise revelou uma mudança no estilo de jogo, passando de um jogo baseado na posse de bola nos Mundiais de 2010 e 2014 para uma abordagem mais direta em 2018, com um ressurgimento do jogo de posse em 2022. As equipas mais bem cotadas tendem consistentemente para o jogo de posse, enquanto as equipas menos cotadas adotaram estratégias mais associadas ao jogo direto ao longo deste período. Ao nível dos jogadores, a proeminência posicional dos defesas centrais e dos guarda-redes aumentou consideravelmente, refletindo a crescente importância tática e a exigência colocada nestas posições nas interações coletivas no Mundial de 2022. Os resultados destacam como a evolução das filosofias estratégico-táticas influenciam os papéis e as contribuições das diferentes posições no jogo de futebol.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science & Medicine in Football.

30/07/2024

Artigo do mês #55 – julho 2024 | Impacto da direcionalidade da posse de bola no desempenho de jovens futebolistas em jogos reduzidos

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Coutinho, D., Gonçalves, B., Kelly, A. L., Santos, S., Figueiredo, P., Soares, C., & Travassos, B.

País: Portugal

Data de publicação: 26-maio-2024

Título: Exploring the impact of ball possession directionality on youth footballers’ positioning, technical skills and physical abilities in small-sided games

Referência: Coutinho, D., Gonçalves, B., Kelly, A. L., Santos, S., Figueiredo, P., Soares, C., & Travassos, B. (2024). Exploring the impact of ball possession directionality on youth footballers’ positioning, technical skills and physical abilities in small-sided games. International Journal of Sports Science & Coaching, 1–11. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541241257016

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 55 – julho de 2024.

 

Apresentação do problema

No futebol, as equipas tendem a adotar uma estrutura defensiva compacta quando não têm posse de bola, aplicando pressão coletiva para limitar as oportunidades de golo do adversário (Low et al., 2018). Em contraste, quando têm a posse, a intenção é criar espaço e avançar no campo para gerar oportunidades de golo. O contra-ataque e o ataque rápido têm sido utilizados por muitas equipas há décadas. Estes métodos ofensivos aproveitam o desequilíbrio defensivo da equipa adversária para criar uma progressão rápida no campo, envolvendo poucos jogadores e passes antes da finalização (González-Rodenas et al., 2020; Pollard & Reep, 2002). O sucesso recente de estilos baseados na posse de bola, como os do Barcelona e da seleção espanhola, mudou o paradigma ofensivo do jogo, levando a um aumento da investigação sobre estratégias de posse de bola (Collet, 2013; Lago & Martín, 2007; Lago-Peñas & Dellal, 2010). Por exemplo, as equipas mais bem classificadas conseguem manter a posse por mais tempo na metade ofensiva do adversário, sendo a posse progressiva associada ao sucesso da equipa (Casal et al., 2017; Kempe et al., 2014). Portanto, é essencial investigar tarefas de treino que melhorem a capacidade de manter a posse de bola em competição. 

Do ponto de vista prático, os treinadores devem conceber tarefas de treino que desenvolvam o comportamento tático da equipa com base em princípios coletivos, enquanto fomentam a capacidade dos jogadores de ajustar o seu posicionamento em função de informações locais. Esta perspetiva é essencial para os treinadores, não só de jogadores de elite, mas também de jovens jogadores, de modo a assegurar um desenvolvimento adequado (Newell & Rovegno, 2021; Silva et al., 2020) e aumentar as suas hipóteses de alcançar uma carreira de sucesso. 

A utilização de jogos reduzidos tem sido proposta como uma abordagem eficaz para melhorar o desempenho e a afinação percetiva de jovens futebolistas (Davids et al., 2013). Recentemente, Coutinho et al. (2023) revelaram que uma tarefa de posse de bola (vs. tarefa de passe analítica e tarefa de posse de bola sem oposição) resultou num maior “transfer” para o jogo subsequente, especialmente na capacidade dos jogadores de identificar companheiros em posições mais avançadas. Além disso, os jogos reduzidos permitem que os treinadores desenvolvam simultaneamente múltiplos fatores de treino, com uma ênfase que pode variar dependendo das condições da tarefa (Coutinho et al., 2021, 2022). Como a tomada de decisão dos jogadores é frequentemente guiada por informações locais, diferentes regras podem exacerbar informações distintas e direcionar os jogadores para padrões de movimento adaptativos (Gonçalves et al., 2017; Nunes et al., 2020). Assim, é essencial que os treinadores compreendam a forma como diferentes regras influenciam o desempenho dos jovens jogadores durante tarefas destinadas a melhorar a sua capacidade de conservar a posse de bola. 

Por norma, os treinadores usam exercícios de posse de bola para melhorar o controlo da bola dos jogadores, em vez de se focarem apenas na marcação de golos. A literatura mostra que o tamanho do campo e o número de jogadores são cruciais (Nunes et al., 2020), mas a direcionalidade do jogo não deve ser negligenciada. Os jogos de posse de bola aumentam o estímulo físico e promovem mais ações técnicas (Halouani et al., 2014; Rebelo et al., 2011), mas a falta de direcionalidade pode limitar o desenvolvimento tático (figura 2). Sánchez et al. (2019) estudaram o impacto da direcionalidade em jogadores Sub-13, comparando diferentes formatos de jogo (sem direção, unidirecional, multidirecional com guarda-redes e unidirecional para cada equipa com guarda-redes – bidirecional). Os autores concluíram que a ausência de direção aumenta o estímulo fisiológico, mas é essencial entender como a direcionalidade afeta as ações técnicas e o posicionamento dos jogadores.

 

Figura 2. Representação esquemática de uma tarefa de posse de bola sem direccionalidade definida (imagem não publicada pelos autores).

 

Em suma, durante tarefas de posse de bola sem direção ou multidirecionais, perder a bola pode ter apenas o efeito de mudança da fase do jogo (i.e., de ataque para defesa), sem qualquer outro impacto. Este aspeto pode não ajudar os jogadores a entender o risco e a recompensa de cada passe de acordo com a localização no campo (e.g., decidir se devem manter a posse em zonas mais afastadas da baliza, nas quais, ao perder a bola, têm espaço e tempo para ajustar; ou tentar manter a posse em zonas defensivas para atrair a equipa adversária e depois avançar, o que pode aumentar as chances de progressão, mas também o risco de perder a bola). Como resultado, este estudo teve como objetivo investigar os efeitos da manipulação da direcionalidade da posse de bola (sem direção, multidirecional ou unidirecional) no desempenho físico, tático e técnico de jovens futebolistas durante a prática de jogos reduzidos.

 

Métodos

Participantes: 18 jovens futebolistas (idade: 13,6 ± 0,4 anos; estatura: 168,1 ± 9,6 cm; peso corporal: 52,3 ± 8,3 kg; experiência federada: 6,7 ± 1,8 anos) de uma seleção regional Sub-14, provenientes de 7 clubes distintos da região. Todos treinavam 3 vezes por semana nos seus clubes (90 min/sessão) e jogavam um jogo oficial 11v11 ao fim de semana. Seis jogadores adicionais participaram como neutros numa das condições experimentais, mas os seus dados foram excluídos da análise por não participarem em todas as condições de jogo. 

Desenho do estudo: em cada sessão experimental, o treinador principal formou duas equipas equilibradas de 4 jogadores atendendo às respetivas competências táticas, técnicas, físicas e percetivas (Casamichana & Castellano, 2010). Para explorar os efeitos da variação da direcionalidade nos jogos de posse de bola, os jogadores foram expostos a 3 condições (figura 3): (i) Sem direção (NO) – jogo de posse 4v4, com um ponto ao completar 10 passes (Berdejo-del-Fresno et al., 2015; Daryanoosh et al., 2013); (ii) Multidirecional (MULTI) – 2 jogadores neutros fora do campo na direção longitudinal, permitindo jogar com o mesmo neutro apenas após a bola ser passada para o outro neutro, com a mesma regra dos 10 passes; (iii) Unidirecional (ONE) – jogo 4v4 visando marcar em duas mini balizas em linhas longitudinalmente opostas, ganhando um ponto por 10 passes ou por golo.

  

Figura 3. Representação esquemática das 3 condições experimentais propostas por Coutinho et al. (2014).

 

Procedimentos: foram realizadas 4 sessões de teste em semanas não consecutivas durante o período competitivo (janeiro-março da época 2022/23), sem necessidade de familiarização prévia. Em cada dia de teste, as equipas (modificadas entre sessões) foram expostas às 3 condições (NO, MULTI, ONE) numa ordem aleatória. Cada sessão começou com um aquecimento padronizado de 15 minutos, seguido dos jogos de posse (4v4) durante 5 minutos, em campo de relva sintética (25x20m), intercalados por 3 minutos de pausa. Foram dispostas várias bolas ao redor do campo para reduzir o tempo com a bola fora, e não foi permitido feedback dos treinadores. Os jogos foram disputados com algumas regras adaptadas (e.g., recomeço de jogo com passe a partir nas linhas de fundo). 

Dados da performance física e tática: os dados de posicionamento e desempenho físico dos jogadores foram recolhidos com unidades GPS de 10 Hz (FieldWiz, Paudex, Suíça). As distâncias entre cada jogador e o colega mais próximo e o adversário mais próximo foram calculadas em valores absolutos (m), considerando-se ainda a respetiva variabilidade (CV – coeficiente de variação) e regularidade (ApEn – entropia aproximada) (Coutinho et al., 2022; Gonçalves et al., 2016). O índice de exploração espacial (SEI – spatial exploration index) foi medido para avaliar o espaço explorado por cada jogador (Gonçalves et al., 2017). A distância total percorrida e a distância percorrida em diferentes zonas de velocidade foram analisadas: caminhar (0.0–3.5 km/h), a trote (3.6–14.3 km/h), correr (14.4–19.8 km/h) e sprintar (>19.9 km/h) (Coutinho et al., 2021; Pettersen & Brenn, 2019). A velocidade média dos jogadores também foi considerada para entender o ritmo do jogo. 

Dados da tomada de decisão e execução do controlo da bola e passe: as situações de jogo foram gravadas com uma câmara de vídeo digital (Panasonic NV-GS230) posicionada a 2m de altura. O software Play (Metrica Sports, versão 2.20.2) foi usado para codificar as ações de controlo de bola e passe dos jogadores. A ferramenta GPET avaliou as habilidades de execução e tomada de decisão dos jogadores (García-López et al., 2013). As ações foram codificadas como 0 (decisão/execução inadequada) ou 1 (decisão/execução adequada). Critérios técnicos adicionais para controlo de bola incluíram: bola no espaço motor, orientação do corpo e adequação; para passe: livre de oposição, ritmo e tempo. As variáveis do GPET foram expressas como percentagem de decisões bem-sucedidas (Mitchell et al., 2013). Foram registadas 1334 ações (476 de controlo de bola e 858 de passe) e a análise foi feita por um analista com mais de 10 anos de experiência. 

Análise estatística: a estatística descritiva foi apresentada em médias e desvios padrão para distribuições normais, e medianas e intervalos interquartis para distribuições não normais. O teste de Shapiro-Wilk serviu para testar a normalidade e, conforme a distribuição dos dados, foram adotados testes paramétricos (ANOVA de medidas repetidas) e não paramétricos (ANOVA de Friedman). As diferenças entre condições experimentais (NO vs. MULTI; NO vs. ONE; MULTI vs. ONE) foram avaliadas com os testes post hoc de Bonferroni para dados normais e Durbin-Conover para dados não normais. A significância foi definida em p < 0,05, e todos cálculos executados no software Jamovi Project (versão 1.2, 2020). Para as comparações de pares, foram utilizadas as diferenças entre médias com intervalos de confiança de 95%, e o d de Cohen como tamanho do efeito, tendo por base os seguintes intervalos: 0,0–0,19 (trivial); 0,20–0,49 (pequeno); 0,6–1,19 (moderado); 1,2–1,9 (grande); ≥2,0 (muito grande) (Hopkins et al., 2009).

 

Principais resultados

 

·     Variação da performance física e tática em função das condições práticas

Para as variáveis posicionais, os valores do índice de exploração espacial foram significativamente e moderadamente superiores na condição NO (sem direção) em comparação com as condições MULTI (multidirecional) e ONE (uma direção por equipa). Na distância para o companheiro de equipa mais próximo, também houve diferenças significativas. A condição NO apresentou valores absolutos ligeira a moderadamente inferiores em comparação com as condições MULTI e ONE, enquanto a variabilidade dessa distância foi moderadamente inferior na condição NO em comparação com a ONE. A condição NO também revelou valores ligeira a moderadamente inferiores na distância para o adversário mais próximo em comparação com as condições MULTI e ONE. Além disso, a condição MULTI apresentou valores ligeiramente inferiores em comparação com a condição ONE, enquanto a condição NO revelou valores ligeiramente inferiores em comparação com a condição MULTI. 

Em termos de variáveis físicas, foram identificados efeitos estatisticamente significativos em todas as variáveis, exceto nas distâncias de corrida e de sprint. Na condição MULTI, os jogadores apresentaram uma velocidade média ligeira a moderadamente superior relativamente às condições NO e ONE. Por outro lado, a condição ONE apresentou valores moderadamente superiores na variabilidade da velocidade média, em comparação com a condição MULTI. Tanto a condição NO, como a condição MULTI, exibiram valores moderadamente superiores na distância total percorrida e na distância percorrida a trote em relação à condição ONE. A condição MULTI proporcionou valores moderadamente inferiores na distância percorrida a andar comparando com as condições NO e ONE.

 

·     Diferenças na tomada de decisão e na execução do controlo de bola e do passe entre as condições práticas

A tomada de decisão na ação de passe foi significativamente melhor na condição ONE em comparação com as condições NO e MULTI. Não havendo significância estatística, foram ainda detetadas algumas tendências com significado prático: (i) a condição ONE teve valores ligeira a moderadamente superiores no passe para posições livres e na adequação do controlo de bola, em comparação com as condições NO e MULTI; (ii) a condição NO apresentou valores ligeiramente superiores no passe para posições livres, em relação à condição MULTI; (iii) a condição MULTI mostrou valores ligeiramente superiores de adequação e receção da bola no espaço motor, comparativamente à condição NO.

 

Aplicações práticas

Neste estudo sobre a direcionalidade ofensiva e a sua influência em jogos de posse de bola, emergiram duas grandes aplicações práticas que poderão ser relevantes para os treinadores e profissionais do futebol: 

1. Não subestimar a importância da direcionalidade nas tarefas práticas em forma de jogo: é fundamental equacionar a direcionalidade ofensiva, que se refere à orientação específica das ações dos jogadores. Esta variável, tantas vezes negligenciada, pode afetar profundamente o desempenho técnico, tático, físico e psicossocial dos jogadores. 

2. Diferentes direcionalidades geram impactos distintos em diversas variáveis do foro físico e técnico-tático:

 

2.1. Condição sem direcionalidade (NO)

Destaca-se por enfatizar a exploração individual do espaço, resultando em maior variabilidade nas distâncias entre jogadores e os seus companheiros ou adversários mais próximos. Este tipo de tarefa incentiva os jogadores a movimentarem-se livremente para criar oportunidades de pontuar, sem a preocupação de perder a posse da bola. Os jogadores focam-se em seguir a bola em vez de proteger áreas específicas, o que pode ser útil em sessões que visem a exploração do espaço com cargas externas moderadas.

 

2.2. Condição com múltiplas direções (MULTI)

Prioriza o ritmo de jogo e aumenta a carga externa dos jogadores. Esta condição reduz a distância entre companheiros de equipa, mantendo-os mais próximos e aumentando a carga física em termos de velocidade média, distância total percorrida e distância percorrida a trote. Este tipo de tarefa pode ser utilizado para desenvolver a capacidade dos jogadores de mudar o ponto de ataque enquanto estimulam a resistência específica.

 

2.3. Condição com uma direção (ONE)

Promove, em primeira instância, o controlo da bola, a tomada de decisão nos passes e a execução técnica. Os jogadores demonstram maior proficiência em receber a bola, tomar decisões de passe e encontrar companheiros desmarcados. A inclusão de balizas no jogo facilita a organização das equipas. Ao atribuir direcionalidade, os jogadores assumem posições e missões táticas específicas, reduzindo a exploração espacial e a carga externa. Este tipo de exercício é particularmente útil para refinar as habilidades técnicas dos jogadores num contexto de maior organização tática, e a compreensão da ocupação espacial nas fases ofensiva e defensiva do jogo.

 

Conclusão

Este estudo forneceu informações práticas valiosas sobre os efeitos da direcionalidade em jogos de posse de bola. Jogar sem direção promoveu menor rigor posicional e maior variabilidade no uso do espaço. Jogar com múltiplas direções enfatizou a posse de bola, aumentando as ações de corrida, enquanto a inclusão de jogadores neutros encorajou a proximidade entre companheiros de equipa. A condição com uma direção possibilitou a definição de papéis posicionais, reduziu a carga externa e aumentou a frequência de ações técnicas básicas. Os resultados sugerem que, ao conceber tarefas de treino, os treinadores devem considerar cuidadosamente o tipo de direcionalidade conforme os objetivos específicos estipulados para a sessão de treino.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.