Após largas semanas em
cima da mesa-de-cabeceira, terminei a leitura da obra “A insustentável leveza
do ser”. Trata-se de um clássico da literatura europeia de Milan Kundera, um checoslovaco exilado político na sequência da
invasão comunista dos russos ao seu país, em 1968. Um suposto romance sobre
esses tempos de censura e opressão, que mais parece um ensaio filosófico sobre
as dicotomias do universo, como especifica Joana Varela no Posfácio, “necessidade
e contingência, fidelidade e traição, realidade e sonho, corpo e alma, peso e
leveza, uno e múltiplo, força e fraqueza” (p. 362).
Para vossa reflexão,
deixo um breve trecho do livro que comprova a inteligência do autor no emprego
das palavras, com sentido crítico, ironia e boa dose de humorismo, acerca de
uma temática tão controversa e, por vezes, confusa, como é a relação entre as
condições humana e divina, entre o Homem e o seu Deus criador:
Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o
homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes, e o gado. É claro que
o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta
que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas.
O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder
sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade,
o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no
seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
É um direito que só nos parece natural porque quem está
no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no
jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito
«Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas», para que toda a
evidência do Génesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um
marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto
de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela
que costuma comer e apresentasse (tarde demais) as suas desculpas à vaca.
Kundera (2005, p. 326)
Referência
Kundera, M. (2005). A insustentável leveza do ser (27ª ed.). Lisboa: Publicações Dom Quixote.