15/02/2013

A insustentável leveza do ser

Após largas semanas em cima da mesa-de-cabeceira, terminei a leitura da obra “A insustentável leveza do ser”. Trata-se de um clássico da literatura europeia de Milan Kundera, um checoslovaco exilado político na sequência da invasão comunista dos russos ao seu país, em 1968. Um suposto romance sobre esses tempos de censura e opressão, que mais parece um ensaio filosófico sobre as dicotomias do universo, como especifica Joana Varela no Posfácio, “necessidade e contingência, fidelidade e traição, realidade e sonho, corpo e alma, peso e leveza, uno e múltiplo, força e fraqueza” (p. 362).


Para vossa reflexão, deixo um breve trecho do livro que comprova a inteligência do autor no emprego das palavras, com sentido crítico, ironia e boa dose de humorismo, acerca de uma temática tão controversa e, por vezes, confusa, como é a relação entre as condições humana e divina, entre o Homem e o seu Deus criador:
 
Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes, e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.
 
É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito «Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas», para que toda a evidência do Génesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costuma comer e apresentasse (tarde demais) as suas desculpas à vaca.
 
Kundera (2005, p. 326)
 
Referência
Kundera, M. (2005). A insustentável leveza do ser (27ª ed.). Lisboa: Publicações Dom Quixote.

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