13/10/2013

O que é treinar em especificidade no futebol?


“Aqui só se treina em especificidade. É tudo com bola.”

Nos meandros do treino desportivo, em concreto na modalidade de futebol, ainda subsiste a crença, ou o mito, de que qualquer exercício que contenha a bola é específico. A classificação que é feita dos exercícios baseia-se, fundamental, na premissa: tem bola é específico; não tem bola é geral. Como é evidente, esta é uma visão extremamente redutora e limitada do treino e condiciona, de sobremaneira, o processo de preparação de qualquer equipa para a competição.

Imagem: Treinar com bola não significa treinar em especificidade (fonte: hulmefooty.blogspot.com).

Treinar em especificidade implica trabalhar num contexto que replique, o mais aproximadamente possível, a realidade que se irá encontrar na competição, quer seja a um nível mais macroscópico (e.g., organização defensiva), ou mais microscópico (e.g., pontapés de canto defensivos). A bola é essencial, mas não é determinante para o exercício apresentar um caráter específico. Para isso, terá de se acrescentar companheiros de equipa, adversários, objetivos definidos em função da filosofia da equipa técnica e, também, controlar algumas variáveis do foro contextual que possam ser antecipadas, relativamente ao que é expectável ocorrer no compromisso competitivo seguinte (dimensões do espaço, características do terreno, temperatura, qualidade do árbitro, ruído do público, etc.).

No fundo, treinar em especificidade é jogar com propósitos bem definidos. Para o treinador, significará propor situações de jogo, mais ou menos reduzidas (mais ou menos microscópicas), que pressuponham uma interação permanente entre os jogadores (cooperação e oposição) e o seu envolvimento, equacionando inúmeras variáveis passíveis de afetar momentaneamente a organização das ações dos indivíduos e o plano estratégico-tático da equipa. Por exemplo, uma equipa a jogar com menos um jogador, por motivo de expulsão ou lesão, conduz a um reajustamento das missões e das ações táticas dos outros elementos da equipa. Segundo esta lógica, a noção de oposição avançada por Gréhaigne e colaboradores (1997) constitui um ponto central na forma como o jogo e o treino (em especificidade) devem ser perspetivados (figura 1).

Figura 1. Conceitos relacionados com a noção de oposição (adaptado de Gréhaigne et al., 1997).

Contudo, como referem Mesquita e Marcelino, “(…) a capacidade de aplicação no jogo das estratégias e táticas treinadas é limitada, na medida em que apenas se pode prever, e não predizer, a evolução das configurações ofensivas e defensivas, reiterando esta evidência a necessidade de recurso a abordagens heurísticas, capazes de considerar a complexidade da natureza do fenómeno (…).” (2013: 137).

Cada jogo engloba um acrescento de novidade (algo original e único) que, consequentemente, reduz a eficiência dos comportamentos técnico-táticos dos jogadores e das soluções estratégicas da equipa (Gréhaigne et al., 1997). Deste modo, a capacidade de gestão da desordem assume um papel determinante e isso somente se trabalha, melhora, aperfeiçoa e consolida no treino em especificidade, ou seja, através do próprio jogo.

Referências
Gréhaigne, J. F., Bouthier, D., & David, B. (1997). Dynamic-system analysis of opponent relationship in collective actions in soccer. Journal of Sports Sciences, 15, 137-149.
Mesquita, I., & Marcelino, R. (2013). O efeito da qualidade da oposição e do match status no rendimento das equipas. In A. Volossovitch e A. P. Ferreira (Eds.), Fundamentos e aplicações em análise de jogo (pp. 133-152). Cruz Quebrada: Edições FMH.

Sem comentários: