“Aqui só se treina em especificidade. É tudo com bola.”
Nos meandros do treino
desportivo, em concreto na modalidade de futebol, ainda subsiste a crença, ou o mito, de que
qualquer exercício que contenha a bola é específico. A classificação que é feita
dos exercícios baseia-se, fundamental, na premissa: tem bola é específico; não
tem bola é geral. Como é evidente, esta é uma visão extremamente redutora e
limitada do treino e condiciona, de sobremaneira, o processo de preparação de
qualquer equipa para a competição.
Imagem: Treinar
com bola não significa treinar em especificidade (fonte:
hulmefooty.blogspot.com).
Treinar em
especificidade implica trabalhar num contexto que replique, o mais
aproximadamente possível, a realidade que se irá encontrar na competição, quer
seja a um nível mais macroscópico (e.g., organização defensiva), ou mais microscópico (e.g., pontapés de canto defensivos). A bola é essencial,
mas não é determinante para o exercício apresentar um caráter específico. Para
isso, terá de se acrescentar companheiros de equipa, adversários, objetivos
definidos em função da filosofia da equipa técnica e, também, controlar algumas variáveis
do foro contextual que possam ser antecipadas, relativamente ao que é expectável ocorrer no compromisso competitivo seguinte (dimensões do espaço, características do terreno, temperatura,
qualidade do árbitro, ruído do público, etc.).
No fundo, treinar em
especificidade é jogar com propósitos bem definidos. Para o treinador, significará propor situações de jogo, mais ou
menos reduzidas (mais ou menos microscópicas), que pressuponham uma interação
permanente entre os jogadores (cooperação e oposição) e o seu envolvimento,
equacionando inúmeras variáveis passíveis de afetar momentaneamente a
organização das ações dos indivíduos e o plano estratégico-tático da equipa.
Por exemplo, uma equipa a jogar com menos um jogador, por motivo de expulsão ou
lesão, conduz a um reajustamento das missões e das ações táticas dos outros elementos da equipa.
Segundo esta lógica, a noção de oposição avançada por Gréhaigne e colaboradores
(1997) constitui um ponto central na forma como o jogo e o treino (em
especificidade) devem ser perspetivados (figura
1).
Figura 1. Conceitos relacionados com a noção de oposição (adaptado de Gréhaigne et al., 1997).
Contudo, como
referem Mesquita e Marcelino, “(…) a
capacidade de aplicação no jogo das estratégias e táticas treinadas é limitada,
na medida em que apenas se pode prever, e não predizer, a evolução das
configurações ofensivas e defensivas, reiterando esta evidência a necessidade
de recurso a abordagens heurísticas, capazes de considerar a complexidade da
natureza do fenómeno (…).” (2013: 137).
Cada jogo engloba um acrescento de novidade (algo original e único) que,
consequentemente, reduz a eficiência dos comportamentos técnico-táticos dos
jogadores e das soluções estratégicas da equipa (Gréhaigne et al., 1997). Deste modo, a capacidade de gestão da desordem assume um papel
determinante e isso somente se trabalha, melhora, aperfeiçoa e consolida no
treino em especificidade, ou seja, através do próprio jogo.
Referências
Gréhaigne, J. F.,
Bouthier, D., & David, B. (1997). Dynamic-system analysis of opponent relationship in collective actions
in soccer. Journal of Sports Sciences, 15,
137-149.
Mesquita, I., & Marcelino, R.
(2013). O efeito da qualidade da oposição e do match status no rendimento das equipas. In A. Volossovitch e A. P.
Ferreira (Eds.), Fundamentos e aplicações
em análise de jogo (pp. 133-152). Cruz Quebrada: Edições FMH.
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