«O Drible» é um romance
do crítico literário e jornalista brasileiro Sérgio Rodrigues. Vencedor do
Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura, o livro faz do futebol
personagem, poesia, numa metáfora para a vida.
Figura 1. Capa do romance «O Drible» de Sérgio Rodrigues. |
A analogia do livro é a
que mais se assemelha ao propósito deste blogue: o desporto não é somente
desporto, é uma forma de viver, de reviver e de educar para a vida. Tanto assim
é que Neto, o filho do personagem principal Murilo, foi forçosamente colocado
no América para aprender a jogar futebol na sua infância. Porém, o garoto pouco
ou nenhum jeito tinha para a bola:
Seu dente de leite
era uma prova de que essas coisas levam tempo, e no meio daqueles meninos
fortes, habilidosos, decididos, Neto fazia um papel ridículo de matadas na
canela e tombos ao menor tranco. Como sempre ocorre em casos assim, por razões
pouco esclarecidas, foi parar na lateral esquerda. Lugar de pereba é na lateral
esquerda.
(p. 32-33)
O autor mete o dedo na
ferida e escarafuncha um dos maiores problemas do futebol de formação na
atualidade. Quase sempre, os miúdos não são aquilo que os pais pensam ou querem
que eles sejam:
Mesmo assim, mais
forte do que a mágoa com Murilo e do que o rancor com os companheiros que o
desprezavam, o que Neto guardou do episódio foi a vergonha de ter sido um
menino que não só se submetia à humilhação de fingir ser o que não era,
abafando o choro no travesseiro toda noite, como no fim ainda queria mais. Você
consegue, Neto! Vai fundo que você consegue!
(p. 34)
Os traumas de infância
condicionam o resto da vida. A repressão, a frustração e a tristeza levam o ser
humano a comportamentos deploráveis e a erros incapazes de serem emendados.
Neto foi uma vítima da infância.
Mastigando sem
apetite a galinha ao molho pardo de Conceição, ponderou que acabava de receber
a sua primeira lição de vida adulta. Lição dura o bastante para tingir de
ironia o domingo de sol hipócrita que jorrava para dentro da cozinha, fingindo
que nada tinha mudado: alma não se lava no chuveiro.
(p. 55)
No meio da trama, o futebol
brasileiro é personagem. Não apenas no início do livro, quando se conta que Pelé
desafiou Deus ao tentar fazer um golo impossível, mas perdeu o confronto ao
falhar o golo. Interessa perceber que há, pelo menos, um sujeito brasileiro que
tem uma ideia cristalina do futebol do seu país:
Foi assim que o
futebol brasileiro virou o que é: em grande parte por causa do esforço
sobre-humano que os jogadores tiveram que fazer para ficar à altura das mentiras
que os radialistas contavam.
(p. 72)
Depois Murilo, o famoso cronista
de futebol, explica de forma sublime porque o futebol é o desporto que todos os
outros gostariam de ser:
O futebol é cheio
de planícies imensas, horas mortas como a que nós acabámos de ver. Um bololô de
ruído, intenções que não se concretizam, acidentes, lances de sorte e azar. Nas
horas mortas pode acontecer tudo. Tudo mesmo, não é força de expressão. E
quando acontece é de repente, um raio que cai e muda a paisagem por completo. (…)
Porque sem a interrogação do futuro o futebol e a vida são uma pobreza de
bocha.
(p. 94)
A história do menino
Peralvo Rolinha, que poderia ter sido melhor que Pelé, permite-nos chegar ao
clímax do enredo. Um final surpreendente que vos aconselho a descobrir, sem
contudo deixar de terminar com as palavras sábias do autor Sérgio Rodrigues:
Acontece que o
futebol pode espelhar a vida, mas a recíproca, por razões que ignoramos, não é
verdadeira. Há entre os dois uma assimetria, um descompasso no qual não me
surpreenderia que coubesse toda a tragédia da existência.
(p. 229)