24/07/2016

O Drible (2015)

«O Drible» é um romance do crítico literário e jornalista brasileiro Sérgio Rodrigues. Vencedor do Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura, o livro faz do futebol personagem, poesia, numa metáfora para a vida.

Figura 1. Capa do romance «O Drible» de Sérgio Rodrigues.

A analogia do livro é a que mais se assemelha ao propósito deste blogue: o desporto não é somente desporto, é uma forma de viver, de reviver e de educar para a vida. Tanto assim é que Neto, o filho do personagem principal Murilo, foi forçosamente colocado no América para aprender a jogar futebol na sua infância. Porém, o garoto pouco ou nenhum jeito tinha para a bola:

Seu dente de leite era uma prova de que essas coisas levam tempo, e no meio daqueles meninos fortes, habilidosos, decididos, Neto fazia um papel ridículo de matadas na canela e tombos ao menor tranco. Como sempre ocorre em casos assim, por razões pouco esclarecidas, foi parar na lateral esquerda. Lugar de pereba é na lateral esquerda.
(p. 32-33)

O autor mete o dedo na ferida e escarafuncha um dos maiores problemas do futebol de formação na atualidade. Quase sempre, os miúdos não são aquilo que os pais pensam ou querem que eles sejam:

Mesmo assim, mais forte do que a mágoa com Murilo e do que o rancor com os companheiros que o desprezavam, o que Neto guardou do episódio foi a vergonha de ter sido um menino que não só se submetia à humilhação de fingir ser o que não era, abafando o choro no travesseiro toda noite, como no fim ainda queria mais. Você consegue, Neto! Vai fundo que você consegue!
(p. 34)

Os traumas de infância condicionam o resto da vida. A repressão, a frustração e a tristeza levam o ser humano a comportamentos deploráveis e a erros incapazes de serem emendados. Neto foi uma vítima da infância.

Mastigando sem apetite a galinha ao molho pardo de Conceição, ponderou que acabava de receber a sua primeira lição de vida adulta. Lição dura o bastante para tingir de ironia o domingo de sol hipócrita que jorrava para dentro da cozinha, fingindo que nada tinha mudado: alma não se lava no chuveiro.
(p. 55)

No meio da trama, o futebol brasileiro é personagem. Não apenas no início do livro, quando se conta que Pelé desafiou Deus ao tentar fazer um golo impossível, mas perdeu o confronto ao falhar o golo. Interessa perceber que há, pelo menos, um sujeito brasileiro que tem uma ideia cristalina do futebol do seu país:

Foi assim que o futebol brasileiro virou o que é: em grande parte por causa do esforço sobre-humano que os jogadores tiveram que fazer para ficar à altura das mentiras que os radialistas contavam.
(p. 72)

Depois Murilo, o famoso cronista de futebol, explica de forma sublime porque o futebol é o desporto que todos os outros gostariam de ser:

O futebol é cheio de planícies imensas, horas mortas como a que nós acabámos de ver. Um bololô de ruído, intenções que não se concretizam, acidentes, lances de sorte e azar. Nas horas mortas pode acontecer tudo. Tudo mesmo, não é força de expressão. E quando acontece é de repente, um raio que cai e muda a paisagem por completo. (…) Porque sem a interrogação do futuro o futebol e a vida são uma pobreza de bocha.
(p. 94)

A história do menino Peralvo Rolinha, que poderia ter sido melhor que Pelé, permite-nos chegar ao clímax do enredo. Um final surpreendente que vos aconselho a descobrir, sem contudo deixar de terminar com as palavras sábias do autor Sérgio Rodrigues:

Acontece que o futebol pode espelhar a vida, mas a recíproca, por razões que ignoramos, não é verdadeira. Há entre os dois uma assimetria, um descompasso no qual não me surpreenderia que coubesse toda a tragédia da existência.

(p. 229)

Sem comentários: