27/12/2019

"O teu umbigo é menor do que o meu"

Estamos a fechar a década de 2010. Uma década marcada pelo egocentrismo escarpado, crescendo numa proporcionalidade inversa ao esgotar do período temporal em questão. Julgo poder afirmar, com maior ou menor direito a generalização, que “o teu umbigo é menor do que o meu” (figura 1).

Figura 1. Umbigos (fonte: DeviantArt.com).

Olho primeiro para o teu, porque para o meu já olhei diversas vezes, ou talvez até nem me lembre de qual foi a última vez. Aliás, será que já perdi algum tempo a olhá-lo como deve de ser? Nem sei… mesmo assim, “o teu umbigo é menor do que o meu”.

Vivemos na era da superioridade moral, intelectual, racial e, porque não, ideológica. A diferença na perspetiva de quem ajuíza é sinónimo de inferioridade, de menosprezo. As teorias, os factos, as evidências ou as meras suposições alheias são, à partida, refutadas pelo grau (subjetivo) de aversão à diferença ou, se preferirem, pelo estatuto inato de superioridade, seja ela de que tipo for. Há uns de primeira e outros de terceira categoria/classe, como os lugares nos aviões. “O teu umbigo até pode ter o seu quê de interessante, mas é menor do que o meu”.

E isto é tão, mas tão notório que, para a próxima década, peço apenas que disseminem a cura para a cegueira, a pior doença do século XXI. Não é aquela que nos apaga a luz do mundo para sempre, essa também é horrenda e não se deseja a ninguém. É aquela que, ainda que tenhamos toda a perceção sensorial, nos tolda intrinsecamente a razão e, por inerência, as virtudes da natureza humana. Uma praga com um poder de contágio sem paralelo.

Que 2020 nos traga a lucidez para uma mudança comportamental pois, como escreveu o meu amigo Eduardo Jorge Duarte, em Uma Coruja nas Ruínas (2018), “a cegueira maior é não saber olhar para dentro”.

Afinal, parece que o meu umbigo é um pouco disforme.

Boas saídas e melhores entradas!

01/12/2019

Ausência de identidade na era da estratégia: o Tottenham de José Mourinho


O alto rendimento, no meu entendimento, é ausência de identidade. (…) A estratégia é que é típica do alto rendimento. Se não tenho cão, caço com gato. Se a outra equipa é mais forte, a minha identidade é adaptar-me. Todos nós temos um plano até levarmos um murro.

Francisco Silveira Ramos (entrevista à SPORT TV, fev-2019)


Um dos conceitos mais em voga no futebol, independentemente do nível competitivo ou escalão etário, é o modelo de jogo. É o modelo que consubstancia as ideias do treinador ou da equipa técnica em princípios gerais e subprincípios para as diferentes fases e momentos do jogo. Em particular no futebol de alto rendimento, quando os resultados ou os desempenhos não são os pretendidos, manter-se fiel ao modelo de jogo (ou às ideias que lhe estão subjacentes) parece ser uma vitória moral: “morri com as minhas ideias” ou “caí de pé”. É, contudo, uma verdade de La Palice.

A este propósito, o professor Francisco Silveira Ramos, no seu jeito tão sagaz quanto contundente, alega que no alto rendimento impera a estratégia e, portanto, a ausência de identidade, de ideias fixas ou de modelos estanques. A adoção de princípios e subprincípios demasiado rígidos condiciona a capacidade de adaptação às características dos adversários e/ou às circunstâncias contextuais de cada jogo. Por um lado, é fundamental conceder organização à equipa, através de princípios táticos que norteiem os comportamentos individuais para uma dinâmica coletiva coerente. Por outro lado, esses mesmos princípios devem ser dotados de plasticidade, para fazer face à necessidade de adaptação dos indivíduos e da equipa aos inúmeros e variados problemas com que se irão deparar ao longo da época desportiva.

De há uma década a esta parte, subsiste a noção que jogar de forma apoiada, fazendo a bola percorrer os três corredores e os três setores, é o único desígnio para o sucesso. O estilo de jogo adotado por treinadores de elite como, por exemplo, Pep Guardiola, fizeram escola e entranharam-se na mente dos amantes do futebol, fossem eles profissionais, amadores ou meros adeptos. “Jogar à Barcelona é que é!” Por isso, hoje em dia, a grande maioria dos treinadores, quando elaboram um modelo de jogo, preconizam o ataque posicional como método ofensivo preferencial, desconsiderando por completo os métodos ataque rápido e contra-ataque e, por inerência, a dinâmica situacional do jogo. Se há superioridade numérica evidente e a equipa oponente está desequilibrada, explora-se o contra-ataque. Se a equipa adversária controla mal a profundidade, embora os setores médio e ofensivo sejam profícuos a aplicar zonas de pressão no seu meio-campo ofensivo, talvez o ataque rápido não seja de todo descabido. As melhores equipas são aquelas que jogam em função do contexto, das oportunidades de ação (affordances). Para além de serem menos previsíveis, são também muito mais eficazes.

Figura 1. José Mourinho, agora no Tottenham Hotspur FC (fonte: desporto.sapo.pt).

Estratega é aquele que operacionaliza os recursos disponíveis para alcançar um fim. Neste âmbito, José Mourinho (figura 1) foi, é e será sempre um dos melhores treinadores de futebol do mundo, até quando as suas equipas não deslumbram em campo. Há uma dúzia de dias no seu novo clube – Tottenham Hotspur FC –, porque não pegar já em exemplos práticos? Para categorizar as sequências ofensivas segui os critérios definidos por Sarmento e colegas (2018).


Bom trabalho, mister Mourinho!


Referência
Sarmento, H., Figueiredo, A., Lago-Peñas, C., Milanovic Z., Barbosa, A., Tadeu, P., & Bradley, P. S. (2018). Influence of tactical and situational variables on offensive sequences during elite football matches. Journal of Strength and Conditioning Research, 32(8), 2331-2339.