Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado
em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica
internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3)
associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do
Desporto.
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Autores: Van Hooren, B., & De Ste Croix, M.
País: Holanda
Título:
Sensitive periods to train general motor abilities in
children and adolescents: do they exist? A critical appraisal
Revista: Strength and Conditioning Journal
Referência:
Van Hooren, B., & De Ste Croix, M. (2020).
Sensitive periods to train general motor abilities in children and
adolescents: do they exist? A critical appraisal. Strength and Conditioning
Journal. doi: 10.1519/SSC.0000000000000545
(link)
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 5 - maio 2020.
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Apresentação do problema
As crianças e os
adolescentes experienciam inúmeras alterações morfológicas e orgânicas, como
consequência de processos de crescimento e maturação, até alcançarem a idade
adulta. Os tempos e os ritmos de ocorrência destes processos são, porém,
individualizados. Alguns modelos de desenvolvimento de atletas a longo prazo
(ver post antigo aqui) têm proposto que, durante a infância e a adolescência, há
períodos sensíveis ou “janelas de oportunidades” que são ótimos para treinar e
melhorar capacidades motoras gerais, como são, por exemplo, a força ou a
velocidade (figura 2).
Por exemplo, entre os 7 e
os 9 anos e entre os 13 e os 16 anos são considerados períodos sensíveis para
estimular a velocidade em rapazes, enquanto o treino da capacidade aeróbia é
particularmente indicado antes do Pico de Velocidade em Altura (i.e., fase na
qual se verifica um ganho máximo em estatura). Acresce a assunção de que
treinar capacidades motoras fora destes períodos sensíveis resulta em menores
magnitudes de adaptação e, por isso, o efeito na performance é mais reduzido.
No primeiro modelo de
desenvolvimento do atleta a longo prazo, proposto em 2005, não foram fornecidas
evidências científicas que suportassem a existência de períodos sensíveis. Nos
modelos subsequentes, já atualizados, as evidências apresentadas basearam-se,
primariamente, na ideia de que o crescimento acelerado e o desenvolvimento
maturacional de um dado atributo físico ou capacidade motora geral também
conduziriam a uma maior sensibilidade ao processo de treino. Revisões prévias
acerca dos períodos sensíveis e da treinabilidade têm sugerido que, no
presente, há evidências insuficientes que sustentem a crença que um indivíduo
nunca alcançará a sua capacidade atlética máxima geneticamente predeterminada,
ou um nível específico de proficiência, durante a idade adulta, se uma capacidade
motora geral não for especificamente treinada num hipotético período sensível (Bailey, et al., 2010; Ford et al., 2012; Ford et al., 2011).
Além disso, os períodos sensíveis projetados no modelo LTAD (Long-term
Athlete Development) resultaram de estudos transversais (cross-sectional)
e de intervenções experimentais de baixa qualidade. Em consequência da adoção
abrangente dos períodos sensíveis genéricos e da falta de evidência robusta a
favor ou contra esta conceção em revisões anteriores, é necessária uma
reavaliação dos ditos períodos sensíveis. Assim, este artigo de revisão teve
como propósito produzir uma avaliação crítica do racional e das evidências por
detrás dos períodos sensíveis genéricos, recorrendo a estudos recentemente
publicados.
Método
Foi utilizada uma síntese
narrativa em vez de revisão sistemática, pois poucos estudos têm investigado os
efeitos de uma intervenção de treino em grupos de idades (biológicas)
diferentes, recorrendo a um grupo de controlo passível de separar os efeitos do
treino e da maturação. Portanto, uma revisão sistemática neste tópico seria prematura.
De qualquer modo, o processo de pesquisa foi o mais sistemático possível,
através de motores de busca da internet, como o Google Scholar e o PubMed,
utilizando combinações de palavras-chave para identificar a literatura
relevante.
Avaliação crítica dos
períodos sensíveis genéricos
Capacidades motoras gerais
Os modelos LTAD
frequentemente simplificam/dividem os aspetos físicos do desporto em 5
capacidades motoras gerais: flexibilidade, velocidade, coordenação, resistência
e força. Embora esta abordagem reducionista possa ser útil para simplificar a
gestão dos cinco construtos físicos supramencionados, implica (incorretamente)
que haja capacidades motoras distintas que são treinadas de forma independente,
cada qual com os seus períodos sensíveis. Tal simplificação conduz à ideia, por
exemplo, de que a velocidade máxima de corrida possa ser melhorada
independentemente da coordenação ou da força. Também pressupõe que a maturação
de subsistemas envolvidos na coordenação difira (largamente) da maturação dos
subsistemas associados à velocidade ou à força, resultando na separação de
períodos sensíveis para estas capacidades motoras.
Contudo, evidências
científicas recentes (e.g., Buckner et al., 2019; Ellison, Kearney, Sparks, Murphy, & Marchant, 2018; Yeung
et al., 2018) têm colocado em causa a conceção de capacidades motoras gerais, uma
vez que cada habilidade motora é determinada por uma integração complexa de
capacidades que são parcialmente específicas da tarefa. Segundo esta linha de
raciocínio, pode-se questionar se os períodos sensíveis para as capacidades
motoras gerais existem, de facto, ou se devem ser específicos para cada tarefa
motora, ou, pelo menos, para grupos de ações motoras com características muito
similares (Figura 3).
Figura 3. Abordagem reducionista com as variáveis latentes (em
cima) e abordagem holística baseada na análise de rede (em baixo) para períodos
sensíveis (fonte: Van Hooren & De Ste Croix, 2020).
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Métodos de treino para
melhorar as capacidades motoras gerais
O segundo problema
prende-se com a falta de informação sobre os métodos de treino que devem ser
utilizados durante os períodos sensíveis propostos. Nos artigos que suportam a
utilização de modelos LTAD não é claro se, por exemplo, a velocidade (sprint)
deve ser estimulada, durante os períodos sensíveis, mediante treino específico
de sprint, treino pliométrico ou de força. Um estudo de Moran e colaboradores (2018) demonstrou que o treino de sprint em jovens
praticantes de futebol, proposto na fase pré Pico de Velocidade em Altura
(PVA), foi ligeiramente mais efetivo para melhorar a velocidade máxima de
corrida e a capacidade de mudança de direção, que durante o PVA (i.e., fase
coincidente ao primeiro e ao segundo períodos sensíveis para trabalhar a
velocidade no modelo LTAD). Adicionalmente, Armstrong e Baker (2011)
verificaram, numa revisão que somente incluiu estudos que aplicaram estímulos
de treino que resultaram em incrementos no VO2máx., resultados aproximadamente iguais em
crianças com menos de 11 anos e outras com mais de 11 anos (7,7 vs. 8,6%,
respetivamente). Estes e outros estudos sugerem que certas ações motoras ou
capacidades motoras derivadas são apenas extrassensíveis a determinados métodos
de treinos e não a todos os que potencialmente possam ser empregues para
trabalhar a ação motora ou a capacidade motora genérica visada.
Características do método
de treino durante os períodos sensíveis
Os modelos de
desenvolvimento do atleta fornecem poucas linhas orientadoras sobre as
características dos métodos de treino, embora este seja um fator que também
influencia a eficácia do treino (Lesinski, Prieske, & Granacher, 2016; Otero-Esquina,
de Hoyo Lora,
Gonzalo-Skok,
Dominguez-Cobo, & Sanchez, 2017). Não é claro se, por exemplo, uma sessão
de treino extra por semana é suficiente nos ditos períodos sensíveis, ou se o
treino específico deve ser incluído durante ou após o aquecimento em todas as
sessões de treino.
Uma meta-análise com
jovens atletas femininas evidenciou que variáveis do programa de treino, como o
número de sessões semanais e a duração da sessão, afetaram a eficácia do treino
pliométrico na altura do salto (Moran, Clark, Ramirez-Campillo, Davies, & Drury,
2018). Uma outra investigação de Rodriguez-Rosell, Franco-Marquez,
Mora-Custodio e Gonzalez-Badillo (2017) demonstrou que o treino combinado de
pliometria e força foi mais efetivo em jovens praticantes de futebol Sub-13 (≈
pré PVA), do género masculino, perdendo eficácia com o incremento da idade
cronológica (figura 4). Como último exemplo, uma combinação de treino de jogos
reduzidos/condicionados e HIIT (high-intensity interval training)
mostrou ser mais efetivo para melhorar parâmetros da performance física, como o
VO2pico, em praticantes de desportos de equipa com 13 anos,
comparativamente à utilização exclusiva de jogos reduzidos (Harrison, Kinugasa,
Gill, & Kilding, 2015).
Figura 4. Treino de pliometria com jovens praticantes de futebol
(fonte: chriswinstone.wordpress.com).
(imagem não publicada
pelos autores)
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Os resultados dos estudos
aqui sumarizados sugerem que as características dos métodos e dos exercícios
propostos (e.g., tipo de estímulo, carga de treino, duração, repetições, séries,
tempos de recuperação, etc.) são de enorme importância para induzir adaptações
ao treino, melhorar a performance desportiva e gerir a maior suscetibilidade de
lesões agudas e crónicas, no decurso dos hipotéticos períodos sensíveis.
O efeito da experiência anterior
de treino e as diferenças individuais
Os modelos propostos
também não clarificam se os períodos sensíveis e os respetivos conteúdos
diferem entre indivíduos, com níveis de experiência e background de
treino distintos. Atletas com menos experiência em programas de treino
estruturados e com menos proficiência técnica tendem, na generalidade, a
realizar exercícios menos avançados que outros desportistas mais novos, mas
tecnicamente mais competentes e com mais experiência de treino (Lloyd et al.,
2016). Assim, por exemplo, um atleta de 17 anos sem experiência de treino de
força realizará, numa fase inicial, treino com cargas baixas antes de passar
para o trabalho com cargas mais elevadas, o que potencialmente não lhe
permitiria capitalizar (otimamente) o treino no período sensível para a força.
Os jovens atletas podem
ser mais ou menos responsivos a um método de treino específico, dependendo
também da sua predisposição genética. Esta predisposição genética, em conjunto
com a experiência de treino prévia, limitam de sobremaneira a generalização dos
períodos sensíveis para as diferentes capacidades motoras.
Consequências do treino
não específico durante o período sensível
As consequências de se
aplicar treino não específico de uma dada capacidade motora durante os períodos
sensíveis parece ser ignorado pelos modelos já referidos. No entanto, é
relevante questionar até que ponto é possível treinar capacidades motoras
genéricas, em jovens que participam regularmente no desporto, através de
métodos não específicos. No futebol tem sido reportado que a prática de jogos
reduzidos (figura 5) produz melhorias em parâmetros da resistência (VO2máx),
da velocidade (sprint de 20 metros) e da potência muscular (salto vertical) (Engel,
Ackermann, Chtourou, & Sperlich, 2018; Hammami, Gabbett, Slimani, & Bouhlel,
2017; Ramizer-Campillo et al., 2018). De modo análogo, tem sido demonstrado que
o treino de força promove incrementos em medidas da resistência, como a
economia de corrida (Barnes & Kilding, 2014), da velocidade (Sander,
Keiner, Wirth, & Schmidtbleicher, 2013) e no desempenho de mudanças de
direção (Keiner, Sander, Wirth, & Schmidtbleicher, 2014).
Figura 5. Jogos reduzidos como atividades não específicas para o
treino de capacidades motoras gerais. (imagem não publicada pelos autores)
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Aplicações práticas
No cômputo geral, as
evidências indicam que cada habilidade motora e capacidade motora derivada
podem ser treinadas através de variados métodos, sendo que cada método é
potencialmente mais eficaz em diferentes estádios de desenvolvimento. A
efetividade do método depende das características do treino (e competição) e
difere entre indivíduos de idade biológica similar, mas que apresentam experiências
prévias e predisposições genéticas muito particulares. Por si só, estes factos
colocam em causa a validade dos períodos sensíveis genéricos postulados em
modelos de desenvolvimento a longo prazo.
Assim, os treinadores não
se devem basear nestes períodos sensíveis genéricos, mas sim trabalhar todos os
atributos físicos do atleta, segundo critérios lógicos e equilibrados, ao longo
das fases de desenvolvimento. Tal não implica que alguns métodos de treino não
possam ser priorizados ou mitigados em certos períodos (e.g., dar primazia ao
treino de coordenação motora durante o PVA, precisamente quando esta capacidade
se encontra comprometida e o risco de lesão aumentado).
Conclusão
Este foi o primeiro estudo
que produziu uma avaliação crítica do racional por detrás dos períodos
sensíveis genéricos, amplamente adotados no treino de jovens atletas. Os
problemas teóricos ora identificados fornecem evidências mais fortes do que as
críticas anteriormente realizadas, ao ponto de questionar a validade deste constructo.
Os profissionais do treino desportivo não devem, por isso, sustentar as suas
práticas com crianças/jovens pressupondo a existência de períodos sensíveis
genéricos.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram
originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas
para a Língua Portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias referidas neste texto,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas
pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na
versão original publicada no Strength and Conditioning Journal.