23/05/2020

Crónica de uma morte anunciada (1981), de Gabriel García Márquez

Esta foi a primeira obra que li de Gabriel García Márquez, prémio Nobel da Literatura em 1982. Na contracapa do livro, ou pelo menos naquela da 18.ª edição publicada pela D. Quixote (figura 1), a citação do autor colombiano é extremamente interessante: classifica o romance como o melhor, não por ser o último, mas aquele em que conseguiu fazer exatamente o que queria. Sinceramente, não me recordo de ter lido outro livro em que, à partida, sabemos qual é o final da história, só não sabemos o que levou ao fatídico desenlace. Esse aspeto, longe de tornar o livro desinteressante, ainda reforçou mais a minha curiosidade e a leitura acabou por ser muito agradável e fluente.

Figura 1. Capa do livro “Crónica de uma morte anunciada”, publicado pela D. Quixote.

Na minha perspetiva, há duas palavras em torno das quais gira o enredo: honra e moral. A honra é o aspeto nuclear do romance, na medida em que é a desonra de Angela Vicario, manifestada na sua noite de núpcias, que determina que os irmãos (gémeos) Pedro e Pablo Vicario assassinem Santiago Nasar. Matam-no por uma questão de honra da família.

Ela demorou tão-só o tempo necessário para dizer o nome. Procurou-o nas trevas, encontrou-o à primeira vista entre tantos e tantos nomes confundíveis deste mundo e do outro, e deixou-o espetado na parede com o seu dardo certeiro, como a uma borboleta sem vontade própria cuja sentença estava escrita desde sempre.
(p. 46)

Daqui resulta a importância da moralidade ou falta dela. Angela Vicario personifica a desonra e a imoralidade, pois condenou Santiago à morte, quando tudo indica que não foi ele que lhe retirou a virgindade e, para além disso, ela nunca se predispôs a levantar o véu em relação ao mistério. Angela narrava a história da sua noite de núpcias a quem quisesse ouvi-la até ao pormenor, menos aquele que nunca haveria de ser declarado: quem foi, como e quando, o verdadeiro causador da sua desonra – as amigas contavam “disse-nos o milagre mas não o santo.” (p. 90) –, pois ninguém acreditou que tivesse sido realmente Santiago. Segundo o narrador e amigo do protagonista, “Nunca ninguém os viu juntos, e muito menos sozinhos. Santiago Nasar era orgulhoso de mais para reparar nela.” (p. 81)

Os gémeos encarnam a imoralidade do homicídio premeditado e a todos anunciado. Passado pouco tempo, ao morrer o pai Poncio Vicario, o narrador explica que “levou-o a dor moral.”, quiçá provocada pelas malfeitorias dos descendentes. O resto da imoralidade é partilhado pelas gentes da vila:

Mas a maioria das pessoas que teriam podido fazer alguma coisa para impedir o crime e no entanto não fizeram, consolaram-se com o pretexto de que os assuntos de honra são arquivos sagrados a que só têm acesso os donos do drama.
(p. 87-88)

Muitos sabiam que iria haver crime, poucos o tentaram evitar, mas, quando o juiz de instrução foi apurar os factos, havia uma multidão para fazer declarações sem ser convocada. A hipocrisia e o preconceito emergem como qualidades daquilo que não é moral. Reparem que, por exemplo, o presidente da câmara – o coronel Lázaro Aponte –, preocupou-se muito com os boatos acerca dos árabes, a propósito de uma presumível retaliação pela morte de Santiago, “mas nenhum alimentava propósitos de vingança.” (p. 75) Aliás, para o jovem juiz, tal como para os amigos, o comportamento de Santiago Nasar nas últimas horas de vida era a prova cabal da sua inocência. Numa nota relevante do processo de instrução, o juiz faz uma alusão tácita à questão do preconceito: “Dai-me um preconceito e moverei o mundo.” (p. 90)

A imoralidade comunitária, se assim pode ser mencionada, aparece bem destacada pelo narrador na página 105, ao expor que os criminosos Pedro e Pablo Vicacio “não ouviram os gritos da vila inteira espantada com o seu próprio crime.” Portanto, o delito não se circunscreveu àqueles que explicitamente o executaram.

Vale bem a pena a leitura!

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