Esta foi a primeira obra que
li de Gabriel García Márquez, prémio Nobel da Literatura em 1982. Na contracapa
do livro, ou pelo menos naquela da 18.ª edição publicada pela D. Quixote
(figura 1), a citação do autor colombiano é extremamente interessante:
classifica o romance como o melhor, não por ser o último, mas aquele em que
conseguiu fazer exatamente o que queria. Sinceramente, não me recordo de ter
lido outro livro em que, à partida, sabemos qual é o final da história, só não
sabemos o que levou ao fatídico desenlace. Esse aspeto, longe de tornar o livro
desinteressante, ainda reforçou mais a minha curiosidade e a leitura acabou por
ser muito agradável e fluente.
Figura 1. Capa do livro “Crónica de uma morte anunciada”, publicado pela D. Quixote. |
Na minha perspetiva, há
duas palavras em torno das quais gira o enredo: honra e moral. A honra é o
aspeto nuclear do romance, na medida em que é a desonra de Angela Vicario, manifestada
na sua noite de núpcias, que determina que os irmãos (gémeos) Pedro e Pablo
Vicario assassinem Santiago Nasar. Matam-no por uma questão de honra da família.
Ela demorou tão-só o tempo necessário para dizer o nome.
Procurou-o nas trevas, encontrou-o à primeira vista entre tantos e tantos nomes
confundíveis deste mundo e do outro, e deixou-o espetado na parede com o seu
dardo certeiro, como a uma borboleta sem vontade própria cuja sentença estava
escrita desde sempre.
(p. 46)
Daqui resulta a
importância da moralidade ou falta dela. Angela Vicario personifica a desonra e
a imoralidade, pois condenou Santiago à morte, quando tudo indica que não foi
ele que lhe retirou a virgindade e, para além disso, ela nunca se predispôs a levantar
o véu em relação ao mistério. Angela narrava a história da sua noite de núpcias
a quem quisesse ouvi-la até ao pormenor, menos aquele que nunca haveria de ser
declarado: quem foi, como e quando, o verdadeiro causador da sua desonra – as
amigas contavam “disse-nos
o milagre mas não o santo.” (p. 90) –, pois ninguém acreditou que
tivesse sido realmente Santiago. Segundo o narrador e amigo do protagonista, “Nunca
ninguém os viu juntos, e muito menos sozinhos. Santiago Nasar era orgulhoso de
mais para reparar nela.” (p. 81)
Os gémeos encarnam a
imoralidade do homicídio premeditado e a todos anunciado. Passado pouco tempo,
ao morrer o pai Poncio Vicario, o narrador explica que “levou-o a dor moral.”,
quiçá provocada pelas malfeitorias dos descendentes. O resto da imoralidade é
partilhado pelas gentes da vila:
Mas a maioria das pessoas que teriam
podido fazer alguma coisa para impedir o crime e no entanto não fizeram,
consolaram-se com o pretexto de que os assuntos de honra são arquivos sagrados
a que só têm acesso os donos do drama.
(p.
87-88)
Muitos sabiam que iria
haver crime, poucos o tentaram evitar, mas, quando o juiz de instrução foi
apurar os factos, havia uma multidão para fazer declarações sem ser convocada. A
hipocrisia e o preconceito emergem como qualidades daquilo que não é moral. Reparem
que, por exemplo, o presidente da câmara – o coronel Lázaro Aponte –,
preocupou-se muito com os boatos acerca dos árabes, a propósito de uma
presumível retaliação pela morte de Santiago, “mas nenhum alimentava propósitos
de vingança.” (p. 75) Aliás, para o jovem juiz, tal como para os amigos, o
comportamento de Santiago Nasar nas últimas horas de vida era a prova cabal da
sua inocência. Numa nota relevante do processo de instrução, o juiz faz uma
alusão tácita à questão do preconceito: “Dai-me um preconceito e moverei o
mundo.” (p. 90)
A imoralidade comunitária,
se assim pode ser mencionada, aparece bem destacada pelo narrador na página
105, ao expor que os criminosos Pedro e Pablo Vicacio “não ouviram os gritos da
vila inteira espantada com o seu próprio crime.” Portanto, o delito não se circunscreveu
àqueles que explicitamente o executaram.
Vale bem a pena a leitura!
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