Este
texto surge na sequência de conversas e debates que tenho assistido neste
período de quarentena. Se é real que esta pandemia tem sido nefasta, as medidas de confinamento implementadas também têm concedido tempo a
muitas pessoas para refletir sobre as suas práticas profissionais e pessoais, e
para se instruírem.
Em
particular, no que respeita ao processo de treino, ou de ensino-aprendizagem,
no futebol, tenho constatado que ainda subsistem muitos fundamentalismos em
relação à conceção do exercício de treino: “não faço situações analíticas!”, “o
uso de escadas de agilidade é proibido, só queremos futebol” ou “nunca imponho
limite de toques no futebol de formação”. Se há coisa que tenho aprendido ao
longo dos anos é a não adotar perspetivas extremistas, porque o futebol, como
qualquer outra modalidade desportiva, não se pauta por metodologias pretas ou
brancas, há que considerar toda a escala de tons cinzentos. A “prudência” é uma
palavra-chave que não se coaduna com a palavra “nunca”.
Há uns
anos, José Mourinho foi taxativo a afirmar que nunca promovia os designados
“treinos-conjunto” (i.e., situações de jogo Gr+10v10+Gr em campo inteiro) nos
seus microciclos. Ele justificou serem treinos generalistas e que não permitiam
exacerbar determinados princípios de jogo que pretendia otimizar (Oliveira,
Amieiro, Resende, & Barreto, 2006). Por um lado, é um ponto de vista válido,
que produziu os resultados que todos conhecemos e que suporta a criação de atividades
jogadas que impliquem a execução de comportamentos/ações, individuais ou
coletivas, desejados pelo treinador. Por outro lado, será que as situações de
jogo Gr+10v10+Gr devem ser totalmente descartadas do processo de treino? Não me
parece sensato, quanto mais não seja por ser o meio que melhor representa, em
termos de dificuldade e complexidade da tarefa, as condições de prática
encontradas em competição. Por exemplo, pode ser utilizado para aferir o grau
de cumprimento de ações e princípios previamente potenciados em exercícios que
funcionem como “atractores do comportamento” (para mais detalhes, recomendo que
leiam este excelente artigo de Rui Freitas).
Colocando
o enfoque na limitação do número de toques (figura 1), urge compreender que uma
condicionante do exercício ou um constrangimento da tarefa, para aqueles mais
identificados com a Abordagem Baseada nos Constrangimentos, é tão-só impor restrições
aos comportamentos específicos permitidos pelas Leis do Jogo, em conformidade
com a lógica interna da modalidade. Decorre que, ao limitarmos a manifestação
de umas ações, estaremos a facilitar ou a enfatizar a execução de outras. Esta
é uma ferramenta fulcral para o desempenho da função de treinador, devendo ser uma das
suas principais preocupações adequar a tarefa proposta às necessidades e às
capacidades (nível de prática) dos praticantes.
Figura 1. Exemplo
de um jogo reduzido Gr+4v4+Gr (30x20m; 60 m2/jogador), com a adição
da limitação do número de toques por intervenção sobre a bola.
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Não fará
de todo sentido impor um limite de toques a crianças Traquinas (Sub-8), cuja
relação individual com a bola seja deficitária, pois o estímulo que precisam é
exatamente o inverso. Segundo esta lógica, um Juvenil (Sub-16), com uma boa relação
com a bola, poderá necessitar da limitação do número de toques se, aquando do
momento de recuperação da posse, não dissocia o olhar do solo e progride,
sistematicamente, para contextos de insucesso por desvantagem numérica. Admito
que faço uso da limitação do número de toques, uma vez que defendo que a aplicação
ponderada desta condicionante proporciona oportunidades de ação aos praticantes
– as designadas “affordances” –, que, contrariamente, não seriam tão exploradas.
A literatura
científica tem demonstrado que condicionar a intervenção de jogadores
profissionais e semiprofissionais a um toque sobre a bola, comparativamente a
contextos de jogo livre, tende a reduzir a eficácia da ação de passe e o número
de duelos 1v1, no entanto, aumenta as exigências de movimento (distâncias
percorridas em atividade de alta intensidade e sprint) e a capacidade de
antecipar e ocupar espaços vazios antes dos defensores (Lemoine, Jullien, &
Ahmaidi, 2005; Dellal, Chamari, Owen, Wong, Lago-Peñas, & Hill-Haas, 2011).
No futebol de formação, há evidências de que jogar a dois toques por intervenção
sobre a bola induz os jovens (no caso, Sub-13) a ler o jogo, tomar decisões e
executar ações motoras de forma mais célere, sendo o envolvimento coletivo significativamente
superior em relação ao mesmo formato de jogo disputado sem limite de toques (Almeida,
Ferreira, & Volossovitch, 2012).
Acima de
tudo, a introdução de quaisquer condicionantes/constrangimentos na prática deve
estar associada à formulação das seguintes questões: "para quê?"
(objetivo), "quando"? (parte da sessão ou microciclo) e "durante
quanto tempo?" (dose/duração). É óbvio que não é profícuo passar uma sessão de treino ou
um microciclo inteiro a trabalhar sobre as mesmas condições, pois produzem
situações artificiais que, se subreutilizadas, criam maus hábitos (Paul, 2005;
figura 2). Jogar só a dois toques/intervenção pode desenvolver um fantástico
jogo de passe, porém, os jogadores não aperfeiçoam habilidades para resolver
duelos 1v1. Na mesma linha de raciocínio, propor apenas jogos de dimensões
reduzidas fomenta a adoção de um estilo de jogo apoiado, mas os jogadores não
ficam afinados para procurar e utilizar espaços livres em profundidade, ou
aptos para evidenciar uma linha defensiva coordenada no controlo do espaço em
profundidade, sobretudo no futebol de 11. Tem de haver uma lógica subjacente aos
objetivos definidos e à progressividade dos conteúdos, seja em qualquer nível
do futebol sénior (amador, semiprofissional e profissional), como no futebol de
formação.
Figura 2. Citação de Larry Paul (2005), presente no seu livro sobre o modelo de treino baseado nos jogos reduzidos. |
Em suma, o
processo de treino visa o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de comportamentos
individuais ou coletivos, mais ou menos relevantes em função do contexto no
qual estamos inseridos. Preparar um jogador para competir é dotá-lo de competências
para lidar com as mais diversas circunstâncias com que se poderá deparar. Neste
sentido, uma condição imposta num exercício, embora impossibilite temporariamente
a execução de uma ação que o jogo pede, pode abrir graus de liberdade no futuro,
contribuindo para a formação integral e/ou para o aumento do rendimento do praticante.
O que importa é que o treinador encare o fenómeno de maneira a que haja
adequabilidade (tarefa-praticante), representatividade (em relação ao jogo
formal), coerência (objetivos, condicionantes e exercícios) e progressividade (lógica
evolutiva dos conteúdos), mas não sejamos radicais: nem tanto à terra, nem tanto
ao mar.
Referências
Almeida, C. H.,
Ferreira, A. P., & Volossovitch, A. (2012). Manipulating task constraints in small-sided soccer
games: Performance analysis and practical implications. The Open
Journal of Sports Sciences, 5, 174–180. doi: 10.2174/1875399X01205010193
Dellal,
A., Chamari, K., Owen, A. L., Wong, D. P., Lago-Peñas, C., & Hill-Haas, S.
(2011). Influence of technical instructions on the physiological and physical
demands of small-sided soccer games. European Journal of Sport Science, 11(5),
341–346. doi: 10.1080/17461391.2010.521584
Lemoine,
A., Jullien, H., & Ahmaidi, S. (2005). Technical and tactical analysis of
one-touch playing in soccer – study of the production of information. International
Journal of Performance Analysis in Sport, 5(1), 83–103. doi: 10.1080/24748668.2005.11868318
Paul,
L. (2005). Playing better soccer is more fun: a complete guide to the
small-sided games coaching model. Springfield,
VA: Accotink Press.
Oliveira, B.,
Amieiro, N., Resende, N., & Barreto, R. (2006). Mourinho – Porquê tantas
vitórias? Lisboa: Gradiva.
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