Em
palavras ao alcance de toda a gente, do que se tratava era de pôr de quarentena
todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada dos tempos da cólera e
da febre-amarela, quando os barcos contaminados ou só suspeitos de infeção
tinham de permanecer ao largo durante quarenta dias, até ver. Estas mesmas
palavras, Até ver, intencionais pelo tom, mas sibilinas por lhe faltarem
outras, foram pronunciadas pelo ministro, que mais tarde precisou o seu
pensamento, Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta
semanas, ou quarenta meses ou quarenta anos, o que é preciso é que não saiam de
lá.
(p. 47-48)
A obra Ensaio sobre a cegueira, do “nosso”
nobel José Saramago (figura 1), é uma narrativa que vem a propósito dos tempos pandémicos
que vivemos. Não é que a enfermidade seja a mesma, pois 99,9% das pessoas ficar
cega sem explicação aparente é um cenário bem mais gravoso, se a desfaçatez de comparar ficção (“mal-branco”) e realidade (COVID-19) me é permitida.
Figura 1. Capa de “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (24.ª edição, Porto Editora, 2019). |
Após as habituais dedicatórias, Saramago expôs no
início do livro uma citação, tão curta como eloquente, do Livro dos Conselhos: “Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Estava dado o mote para um ensaio verdadeiramente
brilhante sobre um fenómeno bastante improvável, ainda que possível. E se de
repente a cegueira nos apanhasse a todos desprevenidos? Não escrevo sobre a
cegueira que nos remete para a escuridão das trevas, mas para uma brancura
permanente, o designado “mal-branco”. Como seria o mundo dos humanos? Caótico e,
em certa conta, desprezível.
Se não
formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para
não viver inteiramente como animais (…).
(p. 129)
Porém, a personagem principal é imune e vivencia
a catástrofe com uma visão inversa ao ditado “em terra de cegos, quem tem olho
é rei”. Fosse ela outra e, seguramente, teria aproveitado a deixa. Optou pela
conduta menos convencional, mais difícil e digna no auxílio ao seu semelhante.
(…) E
as pessoas, como vão, perguntou a rapariga dos óculos escuros, Vão como
fantasmas, ser fantasma deve ser isto, ter a certeza que a vida existe, porque
quatro sentidos o dizem, e não a poder ver (…).
(p. 257)
Este excerto estabelece uma relação implícita
entre grau de humanidade e perceção, não estritamente sensorial, do
envolvimento. À medida que aumentamos a perceção do nosso ambiente, maior será
a humanização do nosso comportamento. Isto porque a cegueira tem algo (ou tudo)
de irracional. Mesmo aqueles que fazem uso da visão, por vezes, olham, mas não
veem; outros veem, mas não reparam. E passeamo-nos como espectros.
E como
poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, Organizando-se,
organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos (…).
(p. 312)
Certamente um dos melhores livros, se não mesmo
o melhor, que li nos últimos anos. Recomendo fortemente! Obrigado, mestre
Saramago.
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