No passado dia 20 de maio de 2020 tive a oportunidade de rever (virtualmente) o professor Duarte Araújo, convidado para uma conversa online na página do Facebook da Sapienta Sports. De entre as inúmeras formações e conversas à distância que segui, foi, sem margem para dúvida, uma das mais proveitosas dos tempos de confinamento. A temática da conversa esteve associada à principal área de investigação do professor – a tomada de decisão –, com especial incidência na modalidade futebol.
Conforme foi cabalmente esclarecido, a expressão “tomada de decisão” remete-nos para um conceito estático, decorrente do paradigma cognitivista ou mecanicista, que concebe o movimento humano em três etapas sucessivas: 1) captação dos estímulos informacionais pelos sentidos, 2) processamento da informação e decisão da resposta e 3) execução da resposta pelos órgãos efetores (no caso, os músculos). Porém, a teoria do processamento informacional tem sido descartada na área do desporto em prol de uma perspetiva mais ecológica, que equaciona o contexto como um parceiro contínuo e indispensável na seleção das ações que realizamos ou não. Os acoplamentos perceção-ação ajudam a entender o cariz imediato do comportamento humano em contextos de elevada variabilidade e imprevisibilidade, nos quais emergem inúmeras oportunidades de ação, as designadas affordances. Cada affordance é, por isso, circunstancial e reúne condições espaciotemporais muito particulares, que resultam das forças (equipas) em confronto.
Neste sentido, se o objetivo do treino é afinar ou calibrar a perceção de oportunidades de ação acoplada à execução de ações motoras apropriadas, tendo em consideração as capacidades individuais do jogador, não será algo paradoxal continuarmos a falar em “tomada de decisão”? De acordo com o professor Duarte, temos falta de vocabulário na Língua Portuguesa. Os britânicos usam o termo agency, uma espécie de inteligência, ou influência, que dirige a busca por determinadas affordances. A expressão “tomada de decisão”, ainda que mecanicista e estática, não deixa de fazer algum nexo, pois se há affordances sobre as quais o jogador atua, há outras que declina. Estas affordances são meras solicitações, circunstanciais como já referimos, que o indivíduo pode aceder ou não. O propósito do treino é desenvolver a modulação de affordances e dos ciclos contínuos de perceção-ação.
Depois temos de considerar
a intenção, um aspeto fulcral em tudo aquilo que fazemos. A
intencionalidade no futebol, ou em qualquer outro jogo desportivo, direciona os
acoplamentos perceção-ação num determinado sentido. A intenção, per se,
não determina o comportamento, porque deve ser convergente com o objetivo da
tarefa. Por exemplo, ultrapassar um adversário numa situação um contra um (1v1)
não é um fim em si mesmo; o portador da bola dribla o defensor para se aproximar
da baliza, criar uma situação de finalização e, eventualmente, marcar golo. Neste
contexto é fundamental reportarmo-nos à Abordagem Baseada nos Constrangimentos,
inicialmente proposta por Karl Newell (1986), entretanto já aprimorada por
outros autores, incluindo o professor Duarte Araújo (Figura 1).
Figura 1. O papel do acoplamento informação-movimento como base
para o desempenho competente e para a aquisição de perícia no desporto (Chow, Shuttleworth,
Davids, & Araújo, 2019).
As ações específicas do jogo resultam da interação permanente entre três tipos de constrangimentos: do indivíduo (características do jogador), da tarefa (i.e., exercício analítico, forma jogada ou jogo) e do ambiente (envolvimento). Desta interação gera-se um continuum de fontes de informação e comportamentos associados que desencadeiam os ciclos de affordances. À medida que o jogador se torna mais proficiente, desenvolve um acoplamento mais forte e estreito entre a informação existente num dado contexto e as ações que é capaz de executar. Quando treinadores questionam tão frequentemente a relevância destas estruturas teóricas para a prática, não posso deixar de me insurgir. Construtos teóricos de qualidade estarão sempre na base de uma prática lógica, válida e direcionada para o êxito. Permitam-me uma pergunta estapafúrdia: em contexto de ensino do futebol, será razoável colocar crianças Sub-7 a praticar 11v11? A maioria dirá logo que não. É evidente, uma vez que as fontes de informação determinadas pela complexidade da tarefa não estão adequadas às características dos praticantes no envolvimento em causa. O caos ocasionado pela tarefa não será devidamente resolvido pelos miúdos, ou seja, não serão bem-sucedidos. Conciliar estruturas teóricas de qualidade com estratégias e metodologias efetivas na prática aproxima-nos da concretização dos objetivos estabelecidos, sejam eles de caráter vincadamente pedagógico ou estritamente competitivo.
Achei especialmente feliz o exemplo que o professor concedeu a propósito do ex-treinador de basquetebol (e também professor) Jorge Araújo, que afirmava que não podia preparar a sua equipa para as competições europeias de igual forma ao que fazia para as competições nacionais. Tinha de promover o aumento do ritmo de jogo, proporcionando maiores restrições espaciotemporais e, com esse intento em mente, colocava a equipa a treinar situações de jogo 5v7 ou 5v8. Por inerência, entramos no conceito de “representatividade da tarefa”, que não tem apenas que ver com as características genéricas do exercício ou com o imitar o jogo em termos de componentes estruturais (tempo, espaço, número, regras, etc.). Na prática, o que importa é que os treinadores sejam capazes de refinar as funções dos jogadores, mantendo fontes de informações que estes podem usar em competição e com o seu próprio modo de ação.
Finalmente, as relações
interpessoais subjacentes à configuração de uma equipa devem alicerçar-se em
três pilares fundamentais que, além de coexistirem, sustentam todo o processo
de performance no futebol, em particular, e nos jogos desportivos coletivos, em
geral: estrutura, função e dinâmica (figura 2).
Figura 2. Componentes fundamentais para o desempenho da equipa.
Em suma, foram 60 minutos
com muito "sumo" gratuito, contudo, como tudo nesta vida, cada um bebe o que
quiser.
Referências
Chow, J. Y., Shuttleworth, R., Davids, K.,
& Araújo, D. (2019). Ecological dynamics and transfer from practice to
performance in sports. In N. J. Hodges & A. M. Williams (Eds.), Skill acquisition
in sport: Research, theory and practice (3rd Edition). Abingdon,
Oxon: Routledge, Taylor & Francis Group.
Newell K. M. (1986). Constraints on the development of coordination. In M. G. Wade & H. T. A. Whiting (Eds.), Motor development in children: Aspects of coordination and control (pp. 341–360). Dordrecht: Martinus Nijhoff.
Sem comentários:
Enviar um comentário