27/11/2020

Considerações sobre o treino nos desportos coletivos, a partir do livro “A tomada de decisão no futsal” (Bruno Travassos)

Dentro das minhas possibilidades, procuro ser um leitor assíduo acerca do treino nos desportos coletivos. Apesar de a minha preferência recair no futebol, não me coíbo de saber mais sobre outras modalidades desportivas e sobre o processo de treino em geral. Leio diversos tipos de publicações, mas, regra geral, não encontro muitas peças em português que validem categoricamente as minhas ideias e convicções sobre a prática no terreno. O livro “A tomada de decisão no futsal” do professor e treinador de futsal Bruno Travassos, cuja primeira edição remonta a 2014, foi uma lufada de ar fresco (figura 1). 

 

Figura 1. Capa do livro “A tomada de decisão no futsal” de Bruno Travassos (3.ª edição, 2019, Prime Books).

 

Escrito com base na tese de doutoramento e na experiência prática do autor, esta obra oferece-nos uma perspetiva sólida e cientificamente suportada de como o processo de treino no futsal deve ser encarado, com especial enfoque para o desenvolvimento da tomada de decisão. Desengane-se quem pensa que o conteúdo não é transversal a outras modalidades desportivas. Bem pelo contrário.

 

“Learn the rules like a pro, so you can break them like an artist”

(Pablo Picasso in Travassos, 2019, p. 24)

 

Citando Pablo Picasso, o autor aproveita para destacar o quão importante é a aprendizagem de determinadas regras de ação ou fundamentos nos desportos coletivos para que, no futuro, se possa alcançar um desempenho superior. Este nível superior (ou de elite) implica que um jogador ou equipa seja capaz de se auto-organizar face a acontecimentos situacionais inesperados, de modo a ser efetivo na execução da solução encontrada, mesmo que esta transcenda a norma. Numa simples palavra, referimo-nos à criatividade: para podermos ser criativos, temos, em primeira instância, de dominar as regras de ação, os princípios. 

De facto, os comportamentos nos jogos desportivos ocorrem de forma variável (mas não aleatória!), não apenas em função dos contextos que os proporcionam, mas também das regras, princípios e estratégias proporcionados pelos treinadores (figura 2).


Figura 2. Fatores que regulam os comportamentos específicos dos jogadores e das equipas nos desportos coletivos (adaptado de Travassos, 2019).

 

De acordo com a figura 2, é possível discernir três fatores essenciais para o processo de treino e para o rendimento em competição:

 

1) Princípios gerais e específicos do jogo: regulam o equilíbrio/desequilíbrio espaciotemporal (vantagem espacial e/ou numérica) de uma equipa em relação ao posicionamento da equipa oponente;

2) Modelo de jogo: representa as opções preferenciais de organização estrutural e funcional de uma equipa em função das condições de jogo;

3)  Informações contextuais do jogo: informações espaciotemporais que caracterizam as relações entre jogadores da mesma equipa e entre jogadores de equipas adversárias.

 

Por um lado, estes fatores interrelacionam-se com o processo de preparação para um evento competitivo, na medida em que há uma influência recíproca entre o que é alinhavado e treinado, e as bases estruturais e funcionais da equipa, em conjunção com as condições de jogo que são, de alguma forma, expectáveis. Por outro lado, o resultado prático – ações tático-técnicas individuais e coletivas –, nunca surge desligado daquela que é a matriz de atuação e organização dos jogadores e da interação que estabelecem com o envolvimento. No decurso do jogo há uma série de ajustes estratégico-táticos que desponta desta interdependência. 

O processo de treino não deve, por isso, pressupor a padronização comportamental, mecanicista, mas antes promover competências individuais e coletivas para lidar com a variabilidade que o jogo providencia.

 

Em termos práticos, para otimizar o comportamento coletivo de uma equipa não basta reproduzir um padrão coletivo de forma exemplar em contexto fechado (i.e., sem oposição) e onde todos os jogadores conheçam as movimentações da equipa, na totalidade. Para que se verifique um bom transfer para o contexto de competição é fundamental que os jogadores percebam e construam diferentes formas de resolver problemas em contextos de grande exigência tendo por base princípios de ação para o jogo (…). Estes planos e estratégias deverão permitir a definição de princípios de funcionamento coletivo da equipa, dando liberdade para o surgimento de comportamentos individuais mais flexíveis e adaptativos.

(p. 30) 

É nesta linha de raciocínio que Travassos (2019) destaca a Abordagem Baseada nos Constrangimentos, assente na dinâmica ecológica, na qual o exercício de treino deve: (i) estimular a afinação percetiva dos jogadores às informações de suporte às ações do modelo de jogo; e, (ii) fomentar a capacidade dos jogadores em calibrar o uso de informação às suas capacidades de ação. De maneira a corresponder a este duplo intento de afinação percetiva e calibração percetiva-motora, os exercícios propostos deverão “assumir as mais variadas formas desde que sejam representativos dos contextos de jogo, isto é, mantenham a informação de suporte às ações do modelo de jogo” (p. 58). 

Os princípios metodológicos representatividade da tarefa e acoplamento perceção-ação devem estar implícitos nesta intervenção, para que comportamentos adaptativos semelhantes aos solicitados em situação de jogo possam emergir.

 

Assim, podemos concluir que enquanto o princípio da representatividade permite a afinação percetiva do jogador, é a manutenção do acoplamento informação-ação que permite o processo de calibração ao jogador.

(p. 61) 

No domínio da prática, para que o desenvolvimento da ação tática e da tomada de decisão do jogador sucedam harmoniosa e efetivamente, os objetivos da tarefa devem estar adaptados às capacidades dos jogadores e da equipa. A evolução nos fatores de rendimento supracitados deve ser acompanhada por acréscimos na dificuldade e na complexidade dos exercícios. De acordo com Travassos (2019), estes parâmetros podem ser calculados através das seguintes fórmulas:

 

(rácio entre o número de defensores e o número de possibilidades de ação do portador da bola, i. e., opções de passe, de remate e de condução/manutenção da posse de bola)

 

(quantidade de informação que os jogadores necessitam de atender no exercício em relação à situação de jogo formal)

 

Tomemos como exemplo dois exercícios para o treino de Futebol 11: 

1) Situação de jogo reduzido/condicionado 4v4+NT interior (34x65m; figura 3). Jogadores apenas podem atuar e finalizar no seu corredor, sendo que o neutro interior (joker) pode criar superioridade numérica em cada um dos corredores. Marcar golo nas balizas laterais ou controlar a bola nas zonas finais centrais vale um ponto.


Figura 3. Situação de jogo reduzido/condicionado 4v4+NT interior (34x65m).

 


2) Situação de jogo reduzido/condicionado Gr+6v6+Gr+6NT exteriores (40x40m; figura 4). Três equipas de 6 jogadores de campo em regime “bota-fora”. Duas equipas defrontam-se no espaço definido, tendo como suporte nas linhas laterais os elementos da equipa que se encontra de fora (neutros ou jokers exteriores). Equipa que sofre golo sai para atuar como “neutra”, permanecendo em campo a equipa vencedora. Jogadores neutros jogam a 1 toque por intervenção sobre a bola.


 

Figura 4. Situação de jogo reduzido/condicionado Gr+6v6+Gr+6NT exteriores (40x40m).

 

 

Reparem que duas situações de jogo distintas determinam relações opostas nos graus de dificuldade e complexidade. Na preparação de estruturas de planeamento (exercício, sessão, microciclo, etc.), o treinador deve ter presente que são dois conceitos distintos, ainda que complementares no que à didática da modalidade diz respeito. Neste sentido, Travassos definiu três etapas de aprendizagem/desenvolvimento da ação tático-técnica e da tomada de decisão, de acordo com critérios inerentes a (i) rigidez vs. fluidez dos comportamentos, (ii) capacidade de utilização da informação do contexto, (iii) capacidade de antecipação e adaptação a variações no contexto, e (iv) funcionalidade dos comportamentos. As etapas são as seguintes: 


Etapa 1Exploração de possibilidades de ação, que corresponde ao nível de principiante na modalidade;

Etapa 2Descoberta e estabilização de soluções, para um nível de prática intermédio;

Etapa 3Variabilidade nas possibilidades de ação, para indivíduos de nível avançado.


Entre outros aspetos que caracterizam cada nível evolutivo, o autor propôs uma integração dos parâmetros dificuldade e complexidade dos exercícios em cada uma das etapas, definindo valores de referência tanto para a aprendizagem e aperfeiçoamento de ações individuais, como para a aquisição e consolidação de comportamentos coletivos (tabela 1). 

 

Tabela 1. Valores de referência para a dificuldade e complexidade dos exercícios em cada uma das etapas de desenvolvimento da ação tática e da tomada de decisão (adaptado de Travassos, 2019). 


Segundo esta classificação é possível perceber, de forma mais criteriosa, se uma determinada tarefa de treino está ou não ajustada às capacidades dos jogadores e equipas com os quais trabalhamos, isto se partirmos do pressuposto de que enquadramos o indivíduo ou o grupo na etapa correta. Colocar miúdos com 6 ou 7 anos de idade a disputar jogos reduzidos 1v1 com balizas, por exemplo, pode não ser a tarefa mais indicada para principiantes na modalidade, uma vez que a situação acarreta um nível de dificuldade de 50%. Porém, se adicionarmos um neutro para formar equipa com o portador da bola (1v1+NT), aumentamos o número de possibilidades de ação, medida mais condizente com o nome da primeira etapa, e, concomitantemente, reduzimos o grau de dificuldade do exercício para 33,3%. 

Equacionar estes fatores com os demais relacionados com os objetivos, a estrutura ou os recursos espaciais e temporais, é uma atividade fulcral para qualquer treinador, em qualquer modalidade e em diferentes níveis de desempenho. A quantidade de informação que podemos retirar deste livro de futsal e transpor para outros contextos desportivos é enorme. Além disso, a fusão do conhecimento científico com o conhecimento que resulta da prática no terreno faz com que a obra seja um autêntico “must-read”. Aconselho! 

 

Referência

Travassos, B. (2019). A tomada de decisão no futsal (3.ª Edição). Prime Books.

25/11/2020

O ícone Maradona (30/10/1960 – 25/11/2020)

Maradona é sinónimo de genialidade (figura 1). O talento personificado num homem com propensão para escolher os caminhos mais difíceis para singrar. Ainda assim, criou um legado. Para a história.  

Figura 1. Diego Armando Maradona ao serviço da seleção Argentina (fonte: veja.abril.com.br).

 

Que a sua alma descanse em paz.

19/11/2020

Artigo do mês #11 – novembro 2020 | “Scanning”, fatores contextuais e performance em jogadores da Premier League

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 11 -

Autores: Jordet, G., Aksum, K. M., Pedersen, D. N., Walvekar, A., Trivedi, A., McCall, A., Ivarsson, A., & Priestley, D.

País: Noruega

Data de publicação: 6-outubro-2020

Título: Scanning, contextual factors, and association with performance in English Premier League footballers: An investigation across a season

Revista: Frontiers in Psychology

Referência: Jordet, G., Aksum, K. M., Pedersen, D. N., Walvekar, A., Trivedi, A., McCall, A., Ivarsson, A., & Priestley, D. (2020). Scanning, contextual factors, and association with performance in English Premier League footballers: An investigation across a season. Frontiers in Psychology, 11, 553813. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.553813

  


Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 11 – novembro de 2020.

Apresentação do problema

O futebol é um desporto altamente dinâmico, fluído e complexo, pelo que a capacidade dos jogadores em recolher informação visual dos companheiros de equipa e adversários pode, logicamente, ser um aspeto chave no desempenho competitivo. As evidências indicam que mecanismos percetivos e cognitivos diferenciam jogadores mais ou menos competentes, e performances superiores de outras de menor qualidade (Mann et al., 2019; Williams & Jackson, 2019). Por exemplo, num estudo com 44 jogadores profissionais e semiprofissionais em Inglaterra (Roca et al., 2018), os indivíduos mais criativos revelaram um foco atencional mais abrangente, demonstrando fixações visuais de curta duração mais frequentes do que indivíduos menos criativos. Estas mudanças da localização de fixação visual fazem sentido, pois, nos desportivos coletivos com bola, os jogadores têm de alternar constantemente a atenção entre diferentes objetos/corpos (i.e., bola, baliza, companheiros e adversários). 

Até à data, a maioria dos estudos produzidos neste âmbito tem sido conduzida em contextos laboratoriais, portanto, com um baixo grau de representatividade em relação ao que sucede na vida real. Adicionalmente, escassas são as investigações que têm documentado os processos percetivos em jogadores profissionais de elite, possivelmente porque é uma população difícil de recrutar para este tipo de pesquisa. Este trabalho dá sequência a uma linha de investigação que se tem centrado na observação e análise sistemática do comportamento de jogadores de futebol de elite em contextos reais de prática. 

A perceção é um processo ativo de obtenção de informação do mundo, um ato psicossomático que implica uma ação motora (Gibson, 1966, 1979). No futebol, em concreto, o “scanning” (i.e., varrer com o olhar; perscrutar) consiste num movimento ativo da cabeça, em que a face do jogador é temporariamente direcionada para locais afastados da bola, no intuito de reunir informação do envolvimento na preparação de ações subsequentes com bola. Nesta matéria, um estudo prévio de Jordet e colaboradores (2013) mostrou que, de entre 118 jogadores de futebol (médios e avançados) da Premier League, aqueles que haviam recebido um prémio individual de prestígio (e.g., FIFA World Player of the Year) perscrutavam mais vezes o envolvimento antes de receber a bola, e que havia uma relação positiva entre a frequência de “scanning” e passes completos. McGuckian et al. (2020) também verificou que jovens jogadores de elite adotam comportamentos de “scanning” mais extensivamente quando em posse de bola, comparativamente a quando não a têm, fazem-no mais no terço defensivo do campo e menos no intermédio, e jogadores de posições centrais, quando em posse de bola, “varrem” mais o jogo com o olhar do que jogadores em posições periféricas.

 


Contudo, nenhum dos estudos realizados no terreno controlou estatisticamente a influência que fatores contextuais e individuais podem exercer nos resultados obtidos. Parece ser fundamental avaliar o impacto específico destes fatores, de forma a melhor compreender os comportamentos percetivo-cognitivos dos jogadores de elite em situação real de competição. Assim, o objetivo do estudo foi examinar o modo como 27 jogadores profissionais de futebol, de um clube da Premier League inglesa, utilizam o “scanning” em jogos competitivos, as condições nas quais exibem este comportamento e as relações entre estes comportamentos e a performance.


Materiais e Métodos

Participantes e dados: 27 jogadores profissionais do género masculino, com idades compreendidas entre os 17 e os 32 anos (M = 25.66 ± 4.26). Todos os jogadores representaram a mesma equipa na Premier League inglesa, na época 2017/2018. Foram recolhidos dados referentes a 9574 posses de bola individuais, obtidos em 21 jogos em “casa” (13 jogos na Premier League, 6 na UEFA Europa League e 2 na Taça da Liga). 

Procedimentos: os jogos foram gravados por três câmaras digitais colocadas numa posição elevada nas bancadas, ao nível da linha do meio-campo. Após um processo de sincronização de imagens e de focalização dos jogadores, em função de coordenadas posicionais, um programa a disponibilizar na web foi criado para que os observadores pudessem codificar as ações específicas dos jogadores na unidade de tempo. Todos os observadores cumpriram protocolos de treino e de fiabilidade rigorosos para que pudessem recolher dados para o estudo. A fiabilidade interobservador foi calculada através do Cohen’s K para variáveis nominais e do Coeficiente de Correlação Intraclasse (ICC) para variáveis ordinais e contínuas. Para a principal variável do estudo – "scanning" –, a fiabilidade interobservador obteve um valor médio de 0.960 (excelente). 

Variáveis: foram definidos três tipos de variáveis para o estudo, as relacionadas (1) com o comportamento de “scanning”, (2) com o contexto e (3) com a performance com bola.

 

“Scanning”

· Scan: movimento ativo da cabeça do jogador, no qual a face (e os olhos) estão temporariamente direcionados além da localização da bola, no sentido de recolher informação sobre companheiros e/ou oponentes para preparar a ação subsequente com bola (Jordet et al., 2005b).

· Frequência de scan: número de comportamentos de exploração visual por segundo, contabilizados nos últimos 10 segundos em que a equipa do jogador alvo esteve em posse, antes de o mesmo receber a bola.

 

Contexto

· Posição de jogo: posição do jogador em função da formação inicial da equipa (central, lateral, médio centro, ala/extremo ou avançado).

· Localização no campo: posição do jogador no campo quando recebe a bola num passe, apurada através de coordenadas posicionais (x, y).

· Pressão adversária: distância (em metros) entre o jogador alvo e o oponente mais próximo, no momento em que o jogador alvo recebe a bola, sendo avaliada visualmente pelo observador em cada posse de bola.

· Estado do jogo: averiguado através de duas variáveis: resultado corrente do jogo no momento de uma dada posse de bola (a vencer, empatado ou a perder) e tempo de jogo acumulado pelo jogador alvo, contabilizado em intervalos de 5 minutos (dos 0 aos 90 minutos, com uma categoria extra para tempos adicionais).

 

Performance com bola

· Direção da ação: direção da ação do jogador alvo em cada situação, sendo a direção estimada a partir da posição final da bola após o término da ação (para a frente, para trás ou para o lado).

· Tipo de ação: as ações registadas foram passe, remate, drible e receção. Assim, foram diferenciadas as seguintes categorias: (1) passe longo penetrante (ultrapassa duas ou mais linhas adversárias), (2) passe curto penetrante (ultrapassa uma linha adversária), (3) passe para a frente não penetrante, (4) passe lateral, (5) passe à retaguarda e (6) sem passe (quando a última ação foi um remate, drible ou receção da bola).

· Sucesso da ação: se a equipa do jogador alvo mantém a posse de bola após a sua última ação, a mesma foi considerada como bem-sucedida; o caso inverso, foi categorizado como malsucedido. 

Análise estatística: a verificação da assunção de normalidade e a análise de diferenças nos comportamentos de “scanning”, sob diferentes condições contextuais (e.g., posição de jogo, pressão adversária, localização do campo, estado do jogo e sucesso das ações), foram concretizadas mediante testes não-paramétricos no SPSS v. 24.0. Foram utilizados modelos hierárquicos de Bayesian para uma e para múltiplas variáveis explicativas, através do software “pymc3” Python (Salvatier et al., 2016), para estimar coeficientes de “scanning” de cada jogador.


Principais resultados

Os jogadores realizaram, em média, 3.0 “scans” (± 2.1) nos últimos 10 s antes de receberem a bola. A frequência de exploração visual variou significativamente entre diferentes posições de jogo, sendo mais elevada nos médios centro (dimensão de efeito média). Quanto maior é a pressão defensiva adversária (0–1 m do oponente mais próximo), menor tende a ser a frequência de movimentos da cabeça do jogador alvo, aumentando o valor progressivamente até aos 4 m de distância do defensor mais próximo (dimensão de efeito pequena). Para eventos de passe, os jogadores executaram comportamentos de “scan”, em média, acima do percentil 75 (0.6 scans/s) em torno da sua área de penálti, e entre esta e o grande círculo, no corredor central. A frequência de varrimentos decresceu abaixo da média nas áreas limítrofes do campo (<0.3 scans/s), em especial no terço ofensivo, havendo ainda uma diminuição abrupta do terço intermédio para o ofensivo (figura 2). 

 

Figura 2. Local do campo e frequência de “scan”: quanto mais claro, maior a frequência de exploração visual. Direção de ataque: da esquerda para a direita (Jordet et al., 2020).

 

O resultado corrente do jogo também afetou a frequência de “scan”. Os jogadores perscrutaram o envolvimento mais vezes em situação de desvantagem no marcador, comparativamente à circunstância de empate. No que respeita ao tempo acumulado de jogo, a frequência de exploração visual foi relativamente estável ao longo da primeira parte, o que não sucedeu na segunda parte, com uma tendência para a significância decrescente entre os 76–80 min e 81–85 min, e entre os 76–80 min e os 90 minutos mais tempo adicional. 

Os jogadores efetuaram mais varrimentos com a cabeça antes de ações para a frente, comparativamente com outras direcionadas para o lado ou para trás. Os jogadores tiveram a maior frequência de “scanning” quando a sua última ação foi um passe (Média = 0.45 scans/s), em comparação com drible (M = 0.39 scans/s), receção (M = 0.35 scans/s) e ação de finalização (M = 0.27 scans/s). 

Para compreendermos a importância dos comportamentos de exploração visual, note-se que os jogadores tiveram frequências de “scanning” mais elevadas quando a sua equipa manteve a posse após as suas ações com bola (M = 0.46 scans/s). Quando a equipa perdeu a posse de bola, a frequência prévia de varrimento foi menor (M = 0.37 scans/s), o que foi particularmente evidente para a ação de passe: completos (M = 0.46 scans/s) vs. incompletos (M = 0.40 scans/s). De acordo com os modelos Bayesian, quando a variável afeta à dificuldade do passe é constante, quanto maior for a frequência de “scanning” do jogador, maior será a probabilidade de completar o passe. Apesar disso, também ficou demonstrado que a vantagem conferida por se aumentar a frequência de exploração visual é muito menor relativamente à capacidade técnica intrínseca do jogador e ao contexto no qual o passe é executado.

 

Aplicações práticas

Os resultados suportam que as ações de exploração visual, como o “scanning”, constituem uma componente que os profissionais devem estimular em situação de treino, no sentido de ajudar os jogadores a melhorarem a obtenção de informação contextual e a incrementar a performance competitiva. 

No cômputo geral, a equipa técnica terá todo o interesse em aumentar a capacidade dos atletas no que à atenção visual diz respeito. Com este tipo de metodologia observacional, é possível apurar o diferencial entre aquilo que o jogador perceciona e o que a equipa técnica pretende que ele integre: para onde é que deve olhar? Para que pistas do envolvimento? Quando é que os jogadores devem olhar para determinado ponto/colega de equipa/opositor e quando não o devem fazer? Quais os momentos críticos de interesse para o treinador e até que ponto dos jogadores percecionam (ou não), em escassas frações de segundo, informação crucial que pode decidir o jogo? 

Em suma, os treinadores devem promover a integração destes comportamentos de “scanning” em exercícios de treino e, especialmente, em tarefas de jogo que tenham em consideração as capacidades e as necessidades dos jogadores, o modelo de jogo e o plano estratégico-tático para o compromisso competitivo seguinte.

 

Conclusão

Os jogadores de futebol de elite a competir na Premier League inglesa executam frequentemente comportamentos de exploração visual segundos antes de receberem a bola. Foram verificadas diferenças posicionais e contextuais nas ações de “scanning”, o que pode ser explicado pelos requisitos que diferentes fases e aspetos do jogo suscitam. 

Através de um modelo estatístico sofisticado, os dados indicaram uma relação positiva, embora de pequena dimensão, entre as ações de “scanning” e a eficácia do passe, ou seja, ao aumento da frequência de exploração visual corresponde um aumento da taxa de passes completos. Contudo, dado que as diferenças encontradas foram relativamente pequenas ou modestas, os autores não asseguram que o “scanning” seja uma determinante da performance no futebol, pois são inúmeros e incomensuráveis os fatores que podem afetar a performance das equipas num dado momento do jogo. 

O interesse deste estudo residiu na exploração da variável “scanning” em contexto de jogo. Além de admitir a sua incompletude, os autores destacam o seu potencial futuro para, conjuntamente com outros dados multidisciplinares, levar a diálogos e intervenções fascinantes e inovadores com jogadores e treinadores, designadamente se a relação entre seres humanos e tecnologia continuar a progredir ao ritmo atual.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Frontiers in Psychology.

14/11/2020

A Paixão do Conde de Fróis (1986), de Mário de Carvalho

“A paixão do Conde de Fróis”, livro primeiramente publicado em 1986, constituiu a minha estreia na literatura produzida pelo escritor português Mário de Carvalho (figura 1). Trata-se de um romance histórico ficcionado, no qual o filho do Conde de Fróis é desterrado para a raia transmontana na sequência de uma rixa em Lisboa, em pleno reinado de D. José, no século XVIII. A punição fora branda para as possibilidades que haviam sido propostas pelo ministro que governava à data – o distinto Sebastião José, Marquês de Pombal. 

 

Figura 1. Capa do livro “A Paixão do Conde de Fróis” (1.ª Edição da Porto Editora, 2015).

 

Não fosse o jovem fidalgo “reincidir na estroinice”, quis o pai que fosse acompanhado pelo capelão da família até ao destino do desterro: a praça de S. Gens. Acontece que o jovem conde metamorfoseou assim que recebeu a incumbência d’el-rei; o anterior rebelde virou homem rijo e diligente, colocando, desde logo, o padre-mestre no sítio: quem daria ordens era ele e mais ninguém! 

A caminho de S. Gens faleceu o velho governador da praça, o Marquês de Lobais, pelo que é atribuída ao conde a função de gerir os destinos do espaço, que com ele readquire o tino, o aprumo e o zelo essenciais para efetivar a missão do foro militar. À paixão do jovem conde por tropa, baluartes e guerra, contrapõe-se o desencanto do capelão pelas sucessivas desfeitas do fidalgo e pela sua condição de subalterno desprezado: “Ao menos se o vento levasse aquela amaldiçoada praça…” (p. 32). 

E é precisamente nesta relação conflituante entre o fidalgo, firme de carácter e obstinado pelo cumprimento do dever, e o capelão de família, interesseiro, intrometido e dissimulado, que se desenrola a trama. Recordemos, por exemplo, o castigo do conde a um soldado que, habilmente impelido pelo senhor padre, disparou um tiro a três lobos, na ocasião vultos em movimento no monte, alheios às más intenções humanas:

 

Querendo – respondeu o conde –, prestará Vossa Paternidade as contas que bem entender à sua consciência ou à Divina Misericórdia. Sobre Vossa Paternidade não tenho, nem quereria ter jurisdição. Quanto ao soldado, cometeu uma falta e vai ser castigado por ela. (…) talvez assim aprenda a obedecer a quem deve e a desobedecer a quem não deve…

(p. 44) 

À crescente virtude demostrada pelo fidalgo nas decisões tomadas, no intuito de proteger a praça do exército coligado de espanhóis e franceses, correspondia a desgraça do servo de Deus:

 

À medida que as notícias vinham, de longe em longe, o padre ia-se sobressaltando. Havia um desencontro entre as suas expectativas e os enredos tecidos pela Providência. Não tinha contado com guerras, e uma praça raiana era justamente o sítio mais incómodo para aguardar que as hostilidades passassem. E ele não se sentia merecedor de desgraças. Já lhe ia bastando aquele ermamento, no fim do mundo. Tudo o que mais viesse sobejaria.

(p. 50) 

Chegados os invasores e montado o cerco, a praça de S. Gens ia resistindo conforme podia. Perante a intransigência do senhor conde em se render e escancarar as portas da aldeia aos espanhóis, o ânimo do povo diminuía, não somente pelo sentimento de insegurança vigente, mas também pelos boatos da descrença do conde que se iam disseminando por meio do capelão – na praça não entraria nem o próprio filho de Deus. Se ao jovem Conde de Fróis lhe poderíamos apontar o erro de ignorar a moral dos seus súbditos, a Sua Paternidade poderíamos legar a responsabilidade de conspirar e atraiçoar o seu suserano: “Pela primeira vez nos largos meses de desterro naquele calcanhar do mundo, o padre sentiu que os seus manejos compensavam, que lhe rendia a semeadura” (p. 168). 

Numa derradeira operação para deter os avanços das trincheiras adversárias, a investida foi denunciada pelos soldados que permaneceram na praça. A porta da traição, com designação a preceito, foi fechada a sete chaves e o conde e os restantes militares deixados à mercê do exército invasor. 

Na missa de corpo presente do Conde de Fróis, com a comparência do Marquês de Alagon, velho líder do exército espanhol, o capelão, qual ilustre representante de honradez, “(…) prestou ao jovem fidalgo um alevantado elogio fúnebre, repassado de tropos retóricos, em que a temperança, a virtude e a coragem eram comparadas às figuras egrégias dos livros antigos” (p. 212). O último parágrafo remete-nos para atributos de tempos antigos, que jamais poderemos reconhecer no sacerdote que os proclamou – aquele que, segundo o narrador, “nunca tocou no coração do povo” e que apenas se queria misturar com “gente de gabarito”.