19/11/2020

Artigo do mês #11 – novembro 2020 | “Scanning”, fatores contextuais e performance em jogadores da Premier League

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 11 -

Autores: Jordet, G., Aksum, K. M., Pedersen, D. N., Walvekar, A., Trivedi, A., McCall, A., Ivarsson, A., & Priestley, D.

País: Noruega

Data de publicação: 6-outubro-2020

Título: Scanning, contextual factors, and association with performance in English Premier League footballers: An investigation across a season

Revista: Frontiers in Psychology

Referência: Jordet, G., Aksum, K. M., Pedersen, D. N., Walvekar, A., Trivedi, A., McCall, A., Ivarsson, A., & Priestley, D. (2020). Scanning, contextual factors, and association with performance in English Premier League footballers: An investigation across a season. Frontiers in Psychology, 11, 553813. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.553813

  


Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 11 – novembro de 2020.

Apresentação do problema

O futebol é um desporto altamente dinâmico, fluído e complexo, pelo que a capacidade dos jogadores em recolher informação visual dos companheiros de equipa e adversários pode, logicamente, ser um aspeto chave no desempenho competitivo. As evidências indicam que mecanismos percetivos e cognitivos diferenciam jogadores mais ou menos competentes, e performances superiores de outras de menor qualidade (Mann et al., 2019; Williams & Jackson, 2019). Por exemplo, num estudo com 44 jogadores profissionais e semiprofissionais em Inglaterra (Roca et al., 2018), os indivíduos mais criativos revelaram um foco atencional mais abrangente, demonstrando fixações visuais de curta duração mais frequentes do que indivíduos menos criativos. Estas mudanças da localização de fixação visual fazem sentido, pois, nos desportivos coletivos com bola, os jogadores têm de alternar constantemente a atenção entre diferentes objetos/corpos (i.e., bola, baliza, companheiros e adversários). 

Até à data, a maioria dos estudos produzidos neste âmbito tem sido conduzida em contextos laboratoriais, portanto, com um baixo grau de representatividade em relação ao que sucede na vida real. Adicionalmente, escassas são as investigações que têm documentado os processos percetivos em jogadores profissionais de elite, possivelmente porque é uma população difícil de recrutar para este tipo de pesquisa. Este trabalho dá sequência a uma linha de investigação que se tem centrado na observação e análise sistemática do comportamento de jogadores de futebol de elite em contextos reais de prática. 

A perceção é um processo ativo de obtenção de informação do mundo, um ato psicossomático que implica uma ação motora (Gibson, 1966, 1979). No futebol, em concreto, o “scanning” (i.e., varrer com o olhar; perscrutar) consiste num movimento ativo da cabeça, em que a face do jogador é temporariamente direcionada para locais afastados da bola, no intuito de reunir informação do envolvimento na preparação de ações subsequentes com bola. Nesta matéria, um estudo prévio de Jordet e colaboradores (2013) mostrou que, de entre 118 jogadores de futebol (médios e avançados) da Premier League, aqueles que haviam recebido um prémio individual de prestígio (e.g., FIFA World Player of the Year) perscrutavam mais vezes o envolvimento antes de receber a bola, e que havia uma relação positiva entre a frequência de “scanning” e passes completos. McGuckian et al. (2020) também verificou que jovens jogadores de elite adotam comportamentos de “scanning” mais extensivamente quando em posse de bola, comparativamente a quando não a têm, fazem-no mais no terço defensivo do campo e menos no intermédio, e jogadores de posições centrais, quando em posse de bola, “varrem” mais o jogo com o olhar do que jogadores em posições periféricas.

 


Contudo, nenhum dos estudos realizados no terreno controlou estatisticamente a influência que fatores contextuais e individuais podem exercer nos resultados obtidos. Parece ser fundamental avaliar o impacto específico destes fatores, de forma a melhor compreender os comportamentos percetivo-cognitivos dos jogadores de elite em situação real de competição. Assim, o objetivo do estudo foi examinar o modo como 27 jogadores profissionais de futebol, de um clube da Premier League inglesa, utilizam o “scanning” em jogos competitivos, as condições nas quais exibem este comportamento e as relações entre estes comportamentos e a performance.


Materiais e Métodos

Participantes e dados: 27 jogadores profissionais do género masculino, com idades compreendidas entre os 17 e os 32 anos (M = 25.66 ± 4.26). Todos os jogadores representaram a mesma equipa na Premier League inglesa, na época 2017/2018. Foram recolhidos dados referentes a 9574 posses de bola individuais, obtidos em 21 jogos em “casa” (13 jogos na Premier League, 6 na UEFA Europa League e 2 na Taça da Liga). 

Procedimentos: os jogos foram gravados por três câmaras digitais colocadas numa posição elevada nas bancadas, ao nível da linha do meio-campo. Após um processo de sincronização de imagens e de focalização dos jogadores, em função de coordenadas posicionais, um programa a disponibilizar na web foi criado para que os observadores pudessem codificar as ações específicas dos jogadores na unidade de tempo. Todos os observadores cumpriram protocolos de treino e de fiabilidade rigorosos para que pudessem recolher dados para o estudo. A fiabilidade interobservador foi calculada através do Cohen’s K para variáveis nominais e do Coeficiente de Correlação Intraclasse (ICC) para variáveis ordinais e contínuas. Para a principal variável do estudo – "scanning" –, a fiabilidade interobservador obteve um valor médio de 0.960 (excelente). 

Variáveis: foram definidos três tipos de variáveis para o estudo, as relacionadas (1) com o comportamento de “scanning”, (2) com o contexto e (3) com a performance com bola.

 

“Scanning”

· Scan: movimento ativo da cabeça do jogador, no qual a face (e os olhos) estão temporariamente direcionados além da localização da bola, no sentido de recolher informação sobre companheiros e/ou oponentes para preparar a ação subsequente com bola (Jordet et al., 2005b).

· Frequência de scan: número de comportamentos de exploração visual por segundo, contabilizados nos últimos 10 segundos em que a equipa do jogador alvo esteve em posse, antes de o mesmo receber a bola.

 

Contexto

· Posição de jogo: posição do jogador em função da formação inicial da equipa (central, lateral, médio centro, ala/extremo ou avançado).

· Localização no campo: posição do jogador no campo quando recebe a bola num passe, apurada através de coordenadas posicionais (x, y).

· Pressão adversária: distância (em metros) entre o jogador alvo e o oponente mais próximo, no momento em que o jogador alvo recebe a bola, sendo avaliada visualmente pelo observador em cada posse de bola.

· Estado do jogo: averiguado através de duas variáveis: resultado corrente do jogo no momento de uma dada posse de bola (a vencer, empatado ou a perder) e tempo de jogo acumulado pelo jogador alvo, contabilizado em intervalos de 5 minutos (dos 0 aos 90 minutos, com uma categoria extra para tempos adicionais).

 

Performance com bola

· Direção da ação: direção da ação do jogador alvo em cada situação, sendo a direção estimada a partir da posição final da bola após o término da ação (para a frente, para trás ou para o lado).

· Tipo de ação: as ações registadas foram passe, remate, drible e receção. Assim, foram diferenciadas as seguintes categorias: (1) passe longo penetrante (ultrapassa duas ou mais linhas adversárias), (2) passe curto penetrante (ultrapassa uma linha adversária), (3) passe para a frente não penetrante, (4) passe lateral, (5) passe à retaguarda e (6) sem passe (quando a última ação foi um remate, drible ou receção da bola).

· Sucesso da ação: se a equipa do jogador alvo mantém a posse de bola após a sua última ação, a mesma foi considerada como bem-sucedida; o caso inverso, foi categorizado como malsucedido. 

Análise estatística: a verificação da assunção de normalidade e a análise de diferenças nos comportamentos de “scanning”, sob diferentes condições contextuais (e.g., posição de jogo, pressão adversária, localização do campo, estado do jogo e sucesso das ações), foram concretizadas mediante testes não-paramétricos no SPSS v. 24.0. Foram utilizados modelos hierárquicos de Bayesian para uma e para múltiplas variáveis explicativas, através do software “pymc3” Python (Salvatier et al., 2016), para estimar coeficientes de “scanning” de cada jogador.


Principais resultados

Os jogadores realizaram, em média, 3.0 “scans” (± 2.1) nos últimos 10 s antes de receberem a bola. A frequência de exploração visual variou significativamente entre diferentes posições de jogo, sendo mais elevada nos médios centro (dimensão de efeito média). Quanto maior é a pressão defensiva adversária (0–1 m do oponente mais próximo), menor tende a ser a frequência de movimentos da cabeça do jogador alvo, aumentando o valor progressivamente até aos 4 m de distância do defensor mais próximo (dimensão de efeito pequena). Para eventos de passe, os jogadores executaram comportamentos de “scan”, em média, acima do percentil 75 (0.6 scans/s) em torno da sua área de penálti, e entre esta e o grande círculo, no corredor central. A frequência de varrimentos decresceu abaixo da média nas áreas limítrofes do campo (<0.3 scans/s), em especial no terço ofensivo, havendo ainda uma diminuição abrupta do terço intermédio para o ofensivo (figura 2). 

 

Figura 2. Local do campo e frequência de “scan”: quanto mais claro, maior a frequência de exploração visual. Direção de ataque: da esquerda para a direita (Jordet et al., 2020).

 

O resultado corrente do jogo também afetou a frequência de “scan”. Os jogadores perscrutaram o envolvimento mais vezes em situação de desvantagem no marcador, comparativamente à circunstância de empate. No que respeita ao tempo acumulado de jogo, a frequência de exploração visual foi relativamente estável ao longo da primeira parte, o que não sucedeu na segunda parte, com uma tendência para a significância decrescente entre os 76–80 min e 81–85 min, e entre os 76–80 min e os 90 minutos mais tempo adicional. 

Os jogadores efetuaram mais varrimentos com a cabeça antes de ações para a frente, comparativamente com outras direcionadas para o lado ou para trás. Os jogadores tiveram a maior frequência de “scanning” quando a sua última ação foi um passe (Média = 0.45 scans/s), em comparação com drible (M = 0.39 scans/s), receção (M = 0.35 scans/s) e ação de finalização (M = 0.27 scans/s). 

Para compreendermos a importância dos comportamentos de exploração visual, note-se que os jogadores tiveram frequências de “scanning” mais elevadas quando a sua equipa manteve a posse após as suas ações com bola (M = 0.46 scans/s). Quando a equipa perdeu a posse de bola, a frequência prévia de varrimento foi menor (M = 0.37 scans/s), o que foi particularmente evidente para a ação de passe: completos (M = 0.46 scans/s) vs. incompletos (M = 0.40 scans/s). De acordo com os modelos Bayesian, quando a variável afeta à dificuldade do passe é constante, quanto maior for a frequência de “scanning” do jogador, maior será a probabilidade de completar o passe. Apesar disso, também ficou demonstrado que a vantagem conferida por se aumentar a frequência de exploração visual é muito menor relativamente à capacidade técnica intrínseca do jogador e ao contexto no qual o passe é executado.

 

Aplicações práticas

Os resultados suportam que as ações de exploração visual, como o “scanning”, constituem uma componente que os profissionais devem estimular em situação de treino, no sentido de ajudar os jogadores a melhorarem a obtenção de informação contextual e a incrementar a performance competitiva. 

No cômputo geral, a equipa técnica terá todo o interesse em aumentar a capacidade dos atletas no que à atenção visual diz respeito. Com este tipo de metodologia observacional, é possível apurar o diferencial entre aquilo que o jogador perceciona e o que a equipa técnica pretende que ele integre: para onde é que deve olhar? Para que pistas do envolvimento? Quando é que os jogadores devem olhar para determinado ponto/colega de equipa/opositor e quando não o devem fazer? Quais os momentos críticos de interesse para o treinador e até que ponto dos jogadores percecionam (ou não), em escassas frações de segundo, informação crucial que pode decidir o jogo? 

Em suma, os treinadores devem promover a integração destes comportamentos de “scanning” em exercícios de treino e, especialmente, em tarefas de jogo que tenham em consideração as capacidades e as necessidades dos jogadores, o modelo de jogo e o plano estratégico-tático para o compromisso competitivo seguinte.

 

Conclusão

Os jogadores de futebol de elite a competir na Premier League inglesa executam frequentemente comportamentos de exploração visual segundos antes de receberem a bola. Foram verificadas diferenças posicionais e contextuais nas ações de “scanning”, o que pode ser explicado pelos requisitos que diferentes fases e aspetos do jogo suscitam. 

Através de um modelo estatístico sofisticado, os dados indicaram uma relação positiva, embora de pequena dimensão, entre as ações de “scanning” e a eficácia do passe, ou seja, ao aumento da frequência de exploração visual corresponde um aumento da taxa de passes completos. Contudo, dado que as diferenças encontradas foram relativamente pequenas ou modestas, os autores não asseguram que o “scanning” seja uma determinante da performance no futebol, pois são inúmeros e incomensuráveis os fatores que podem afetar a performance das equipas num dado momento do jogo. 

O interesse deste estudo residiu na exploração da variável “scanning” em contexto de jogo. Além de admitir a sua incompletude, os autores destacam o seu potencial futuro para, conjuntamente com outros dados multidisciplinares, levar a diálogos e intervenções fascinantes e inovadores com jogadores e treinadores, designadamente se a relação entre seres humanos e tecnologia continuar a progredir ao ritmo atual.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Frontiers in Psychology.

Sem comentários: