14/11/2020

A Paixão do Conde de Fróis (1986), de Mário de Carvalho

“A paixão do Conde de Fróis”, livro primeiramente publicado em 1986, constituiu a minha estreia na literatura produzida pelo escritor português Mário de Carvalho (figura 1). Trata-se de um romance histórico ficcionado, no qual o filho do Conde de Fróis é desterrado para a raia transmontana na sequência de uma rixa em Lisboa, em pleno reinado de D. José, no século XVIII. A punição fora branda para as possibilidades que haviam sido propostas pelo ministro que governava à data – o distinto Sebastião José, Marquês de Pombal. 

 

Figura 1. Capa do livro “A Paixão do Conde de Fróis” (1.ª Edição da Porto Editora, 2015).

 

Não fosse o jovem fidalgo “reincidir na estroinice”, quis o pai que fosse acompanhado pelo capelão da família até ao destino do desterro: a praça de S. Gens. Acontece que o jovem conde metamorfoseou assim que recebeu a incumbência d’el-rei; o anterior rebelde virou homem rijo e diligente, colocando, desde logo, o padre-mestre no sítio: quem daria ordens era ele e mais ninguém! 

A caminho de S. Gens faleceu o velho governador da praça, o Marquês de Lobais, pelo que é atribuída ao conde a função de gerir os destinos do espaço, que com ele readquire o tino, o aprumo e o zelo essenciais para efetivar a missão do foro militar. À paixão do jovem conde por tropa, baluartes e guerra, contrapõe-se o desencanto do capelão pelas sucessivas desfeitas do fidalgo e pela sua condição de subalterno desprezado: “Ao menos se o vento levasse aquela amaldiçoada praça…” (p. 32). 

E é precisamente nesta relação conflituante entre o fidalgo, firme de carácter e obstinado pelo cumprimento do dever, e o capelão de família, interesseiro, intrometido e dissimulado, que se desenrola a trama. Recordemos, por exemplo, o castigo do conde a um soldado que, habilmente impelido pelo senhor padre, disparou um tiro a três lobos, na ocasião vultos em movimento no monte, alheios às más intenções humanas:

 

Querendo – respondeu o conde –, prestará Vossa Paternidade as contas que bem entender à sua consciência ou à Divina Misericórdia. Sobre Vossa Paternidade não tenho, nem quereria ter jurisdição. Quanto ao soldado, cometeu uma falta e vai ser castigado por ela. (…) talvez assim aprenda a obedecer a quem deve e a desobedecer a quem não deve…

(p. 44) 

À crescente virtude demostrada pelo fidalgo nas decisões tomadas, no intuito de proteger a praça do exército coligado de espanhóis e franceses, correspondia a desgraça do servo de Deus:

 

À medida que as notícias vinham, de longe em longe, o padre ia-se sobressaltando. Havia um desencontro entre as suas expectativas e os enredos tecidos pela Providência. Não tinha contado com guerras, e uma praça raiana era justamente o sítio mais incómodo para aguardar que as hostilidades passassem. E ele não se sentia merecedor de desgraças. Já lhe ia bastando aquele ermamento, no fim do mundo. Tudo o que mais viesse sobejaria.

(p. 50) 

Chegados os invasores e montado o cerco, a praça de S. Gens ia resistindo conforme podia. Perante a intransigência do senhor conde em se render e escancarar as portas da aldeia aos espanhóis, o ânimo do povo diminuía, não somente pelo sentimento de insegurança vigente, mas também pelos boatos da descrença do conde que se iam disseminando por meio do capelão – na praça não entraria nem o próprio filho de Deus. Se ao jovem Conde de Fróis lhe poderíamos apontar o erro de ignorar a moral dos seus súbditos, a Sua Paternidade poderíamos legar a responsabilidade de conspirar e atraiçoar o seu suserano: “Pela primeira vez nos largos meses de desterro naquele calcanhar do mundo, o padre sentiu que os seus manejos compensavam, que lhe rendia a semeadura” (p. 168). 

Numa derradeira operação para deter os avanços das trincheiras adversárias, a investida foi denunciada pelos soldados que permaneceram na praça. A porta da traição, com designação a preceito, foi fechada a sete chaves e o conde e os restantes militares deixados à mercê do exército invasor. 

Na missa de corpo presente do Conde de Fróis, com a comparência do Marquês de Alagon, velho líder do exército espanhol, o capelão, qual ilustre representante de honradez, “(…) prestou ao jovem fidalgo um alevantado elogio fúnebre, repassado de tropos retóricos, em que a temperança, a virtude e a coragem eram comparadas às figuras egrégias dos livros antigos” (p. 212). O último parágrafo remete-nos para atributos de tempos antigos, que jamais poderemos reconhecer no sacerdote que os proclamou – aquele que, segundo o narrador, “nunca tocou no coração do povo” e que apenas se queria misturar com “gente de gabarito”.

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