Num texto recentemente publicado no Linha de Passe: “Pontapés de canto longos e alternativas – motivos para diversificar”, foi enfatizada a importância de “desposicionar” as equipas adversárias do seu método defensivo, através de pontapés de canto batidos de modo indireto (“curtos”), a fim de retirar dividendos ofensivos. Para ilustrar esse texto, adicionei um vídeo de um golo que a equipa de Sub-17 (Juvenis A) do Portimonense SC marcou diante do Louletano DC, na época 2017/2018, e que, na ocasião, valeu a reviravolta (2-1) num jogo muito competitivo. Passo a recuperar essas imagens:
Se a premissa que originou a
execução do método indireto foi explanada na publicação supramencionada, as
estratégias e os meios de treino que estiveram na origem das decisões tomadas
pelos jogadores constituem o objeto da presente análise. Em primeira instância,
que fique claro que as ações dos nossos jogadores no esquema tático decorreram
da autonomia decisional que lhes fora concedida, não pressupondo qualquer
interferência prévia da equipa técnica, a não ser na definição de alguns
posicionamentos de referência e das zonas de ataque à bola para finalizar. Em
suma, a solução encontrada foi uma novidade para nós. Sabíamos e expusemos, de
antemão, que: (1) a estratégia adversária passava por ocupar espaços vitais
dentro da área de penálti, mediante um método à zona composto por 9 jogadores
de campo e o guarda-redes; (2) quando instalados nas posições de referência do
método defensivo, os jogadores oponentes eram habitualmente eficazes no jogo
aéreo.
“Jogar”
com o oponente
Diz-se nos meandros do treino desportivo que jogamos com os companheiros de equipa e contra a equipa ou os jogadores contrários. O “jogar” com o oponente significa tirá-lo das suas zonas (e ações) de conforto. E este “jogo do gato e do rato” pode resultar de opções estratégicas ponderadas antes do jogo, geralmente por parte da equipa técnica, ou de ações táticas dos jogadores que emergem no decurso do mesmo. Os jogadores, além de serem os agentes táticos por excelência, na medida em que são eles que solucionam os problemas contextuais que o jogo suscita, podem reforçar o estatuto de protagonistas se também forem estrategas dentro do campo. E esse é um fator que pode ser treinado e rentabilizado no treino, ao invés do que é admitido pela maioria dos treinadores.
Voltando ao caso em análise, a nossa equipa já tinha usufruído de alguns pontapés de canto antes deste golo, contudo, a equipa adversária havia conseguido superiorizar-se nesses lances. Aproveitando a interrupção da partida por lesão de um jovem jogador, recordo-me de ver os nossos responsáveis pela marcação das bolas paradas a trocar impressões e a gesticular para os colegas no interior da área. Posteriormente, um dos executantes (esquerdino) dirigiu-se para o banco adversário e pediu para beber água, enquanto o outro (destro) tomou posição junto ao quarto de círculo (figura 1).
Figura 1. Engodo criado pelos jogadores antes da execução do
pontapé de canto bem-sucedido.
A ida ao banco para beber água
foi um pretexto inteligente que o nosso jogador usou para adquirir vantagem
posicional para o que havia combinado com os companheiros. O engodo criado, que ocorreu de forma autónoma e espontânea, visava atrair os adversários para fora da sua zona de conforto (i.e., posições
no interior da área). Ficámos
surpreendidos e bastante satisfeitos pelo desenlace da situação, porque, embora
não tenhamos tido responsabilidade direta na solução encontrada para o esquema
tático, potenciámos o pensamento estratégico e a liberdade dos jogadores no
processo de treino.
Interpretação
dos “sinais” e adaptação comportamental
No início da época, com pouco tempo de trabalho, propusemos tarefas de treino mais fechadas no que às situações fixas do jogo diz respeito, ou seja, com posicionamentos mais rígidos, zonas de ataque à bola religiosamente estabelecidas e sinaléticas associadas à forma de marcação do esquema tático (p. ex., um braço levantado para cruzamento ao 2.º poste, tocar na meia para saída “curta” ou mãos atrás da cabeça para despoletar “combinação tática”). Em cada microciclo não trabalhámos todos os esquemas táticos, uma vez que incidíamos rotativamente sobre um ou dois, consoante o planeamento efetuado e as necessidades da equipa. No microciclo do jogo em questão, apresentámos dois objetivos específicos para pontapés livres laterais e lançamentos laterais, a cumprir num exercício do último treino da semana, com 3 repetições de 8 minutos (figura 2).
Acontece que, depois de
instruída a situação de jogo reduzido/condicionado e divididas as equipas, os
jogadores tinham a responsabilidade de definir os métodos ofensivos e
defensivos subjacentes aos esquemas táticos, sem o conhecimento da equipa
oponente. A condicionante utilizada foi que as equipas repunham a bola em jogo, após a bola
sair fora ou ser cometida uma infração, através de pontapé livre lateral ou
lançamento lateral indicado pelo treinador. Aos métodos adotados por uma equipa
sucediam-se adaptações comportamentais constantes da outra equipa, fomentando o
foco atencional de atacantes e defensores e a leitura dos “sinais do outro”. Se,
por exemplo, uma equipa optava por uma reposição indireta (“curta”), os
atacantes na área deveriam temporizar as suas ações para explorar os espaços
vitais no momento oportuno (figura 3), ou procurar uma outra posição que lhes
permitisse aumentar a probabilidade finalizar com êxito. Por sua vez, os
defensores deveriam pressionar para condicionar a leitura e a execução do
portador da bola sem, no entanto, perder o controlo do espaço em largura e
profundidade. Entre cada repetição, treinadores e jogadores debatiam as opções
estratégicas tomadas, encorajando ou corrigindo alguns detalhes, sendo que os
melhores “projetos” poderiam ser aplicados em jornadas futuras.
Figura 3. A temporização no deslocamento para espaços vitais
no interior da área de penálti para não incorrerem em fora de jogo.
Não tenho dúvidas que o golo
que a nossa equipa marcou resultou do tipo de “tarefa aberta” que foi
regularmente proposto nas sessões de treino, ao longo dos microciclos semanais.
Defendo, sem hesitação, que estas tarefas de treino apresentam um conjunto de
valências que não são de ignorar no processo de formação no futebol ou noutra modalidade
coletiva, designadamente:
· Mantêm
a dinâmica sequencial típica do jogo, pois garantem que momentos de transição
(ofensiva/defensiva) e fases de organização (ofensiva/defensiva) sucedam à
marcação de um esquema tático;
· Promovem
a responsabilidade e a autonomia dos jogadores, porque são os próprios que
executam as estratégias que conceberam;
· Desenvolvem
a leitura e inteligência de jogo, tal como o pensamento estratégico, desde
idades jovens – “em cada praticante, há um mini treinador”;
· Potenciam
o transfer de soluções inovadoras e mais bem interpretadas pelos
praticantes para o contexto competitivo.
Ao “puxarmos” as crianças ou os jovens para a tomada de decisão estratégica estaremos, também, a aprofundar o conhecimento do jogo enquanto treinadores. Partilhar e confrontar perceções e raciocínios com os outros induz a reflexão e a aprendizagem. E é um facto que as mentes jovens são capazes de produzir ideias absolutamente fascinantes.
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