Há uns anos, em conversa com um diretor de um clube que representei, discutíamos a eficácia dos pontapés de canto. Questionou-me o porquê de treinadores optarem por pontapés de canto executados de forma “curta” (figura 1) em detrimento de “longos”, nos quais a eficácia era – presumia ele –, “muito mais elevada”. Respondi-lhe que, quando bem executado, um “canto curto” gerava dinâmicas comportamentais que promoviam incerteza nos posicionamentos ou nas marcações estipulados no método defensivo adversário, fosse o mesmo zonal, individual ou misto. Apesar disso, fui contestado, “sim, mas na maior parte das vezes resulta em contra-ataques da outra equipa”. Reiterei: “quando bem executado!”
Em
primeira instância, do ponto de vista científico, sabemos que entre 25 e 40%
dos golos concretizados no futebol de alto rendimento acontecem em esquemas
táticos (bolas paradas), sendo através de pontapés de canto que a maioria é
obtida (Sainz de Baranda & López-Riquelme, 2012). Contudo, convém reforçar
que, em 436 pontapés de canto ocorridos em 50 jogos da FA Premier League
2011/2012, apenas 18 (4,13%) deram golo (Pulling et al., 2013). Numa análise
mais abrangente de três competições de elite – Campeonato do Mundo de 2010
(FIFA), Campeonato da Europa de 2012 (UEFA) e Liga dos Campeões 2010/2011
(UEFA) –, em 1139 pontapés de canto observados de 124 jogos, 2,2% foram
concluídos com êxito (Casal et al., 2015). Mais recentemente, no Campeonato do Mundo
de 2018 (FIFA), foram obtidos 22 golos em 600 pontapés de canto (3,67%) (Kubayi
& Larkin, 2019). Portanto, as evidências dizem-nos que, em média, 100
pontapés de canto no futebol profissional contemporâneo originam, no máximo, 4 golos. Estes dados mostram que a eficácia das equipas nestas situações fixas
é tudo menos considerável. Contudo, apesar de o sucesso ser diminuto, os golos
obtidos nestas circunstâncias tendem a ser fulcrais para o desfecho do jogo,
uma vez que cerca de 76% determinam o empate ou a vitória da equipa
concretizadora.
Em segundo lugar, embora os pontapés de canto “curtos” ou “indiretos” constituam o método ofensivo menos frequente em jogos de futebol (Sainz de Barada & López-Riquelme, 2012; Casal et al., 2015), quando aplicados, envolvem um maior número de jogadores sobre a bola e produzem percentagens mais elevadas de remates, remates à baliza e golos (Casal et al., 2015). As alterações e a confusão que induzem na organização defensiva adversária, conforme foi sugerido em alguns estudos (e.g., Borrás & Sainz de Baranda, 2005; Casal et al., 2015), levou os investigadores a considerá-los como o método ofensivo mais perigoso a utilizar neste tipo de bolas paradas. Os factos corroboram na íntegra a minha perceção na altura da conversa.
Para atestar na prática o que foi mencionado, num jogo recente da Liga NOS (11 de julho de 2020), a equipa do Moreirense FC logrou alcançar a vitória sobre a Belenenses SAD (0-1) num lance de pontapé de canto “curto”. Aos 50 minutos, perante uma equipa anfitriã totalmente concentrada em torno da área de baliza (i.e., 10 jogadores de campo no método à zona + guarda-redes), o conjunto de Ricardo Soares foi inteligente a recorrer ao processo indireto, ao que tudo indica convenientemente preparado em treino, para desposicionar os defensores e tirar proveito dos espaços interpessoais e da incerteza criados. O cruzamento de Pedro Nuno e o cabeceamento de Nuno Santos foram exemplares.
Ainda para demonstrar que estas ideias não se esgotam atrás de um ecrã de computador, deixo claro que, na função de treinador, procuro dar muita atenção aos pormenores nos esquemas táticos. Na última época que estive em atividade, num jogo de especial importância contra uma equipa rival, não entrámos bem e sofremos o 0-1 logo aos 5 minutos. Aos 28 minutos empatámos (1-1) e, 5 minutos depois, obtivemos a vantagem no marcador, fruto de um pontapé de canto “curto”. Se as estratégias implementadas para chegar a este resultado poderão ser dissecadas num texto futuro, a premissa que norteou a execução deste método indireto foi rigorosamente a mesma do caso anterior.
Os motivos pelos quais julgo essencial diversificar os métodos ofensivos nos pontapés de canto, em particular aumentando o recurso ao “canto curto”, prendem-se com o seguinte:
· Fazer
face à inferioridade numérica na área de penálti através do fator surpresa,
causando incerteza entre os jogadores em processo defensivo;
· Retirar
defensores de zonas vitais junto à baliza, aumentando os espaços a explorar
pelos atacantes;
· Reduzir
a aleatoriedade (fator sorte/azar) tantas vezes associada à marcação de
pontapés de canto longos/diretos;
· Reiniciar
o processo ofensivo de forma controlada, evitando perdas de bolas extemporâneas
e com a equipa desequilibrada;
· Preparar
a equipa em treino para situações fixas distintas, tanto do ponto de vista
ofensivo, como defensivo, incrementando a criatividade dos jogadores e a
capacidade do coletivo em lidar com contextos inesperados em competição;
· Uma vez que há uma massificação da observação e análise das equipas adversárias, manter os métodos ao longo da época, sem inovar, sem retificar, irá conduzir à adaptação do processo defensivo contrário e ao aumento da ineficácia ofensiva da equipa.
Concluo com algumas questões sobre as quais deveríamos refletir aquando do planeamento do microciclo semanal e das respetivas sessões de treino. Se, de facto, os esquemas táticos são uma tendência evolutiva do futebol, porque é que despendemos tão pouco tempo do microciclo a treiná-los, geralmente com um ou dois exercícios na penúltima e/ou na última sessão de treino antes do jogo competitivo (JC-2 e JC-1, respetivamente)? Mais, porque é que perdemos tanto tempo com exercícios de posse de bola, sem pressupor a obtenção do objetivo do jogo – o golo, quando podemos propor outras situações jogadas que, entre outros aspetos a desenvolver, também incluam bolas paradas? Não será a polivalência do exercício de treino uma virtude a explorar nos tempos loucos que vivemos?
Referências
Borrás, D.,
& Sainz de Baranda, P. (2005). Análisis del corner en función del momento
del partido en el mundial de Corea y Japón 2002. Cultura, Ciencia y Deporte,
1, 87–93.
Casal, C.
A., Maneiro, R., Ardá, T., Losada, J. L., & Rial, A. (2015). Analysis of corner kick success in elite football. International
Journal of Performance Analysis in Sport, 15(2), 430–451. https://doi.org/10.1080/24748668.2015.11868805
Kubayi, A., &
Larkin, A. (2019). Analysis of teams’ corner kicks defensive strategies at the
FIFA World Cup 2018. International Journal of Performance Analysis in Sport,
19(5), 809–819. https://doi.org/10.1080/24748668.2019.1660547
Pulling, C., Robins,
M., & Rixon, T. (2013). Defending corner kicks: analysis from the English Premier
League. International Journal of Performance Analysis in Sport, 13(1),
135–148. https://doi.org/10.1080/24748668.2013.11868637
Sainz de Barada, P., & López-Riquelme, D. (2012). Analysis of corner kicks in relation to match status in the 2006 World Cup. European Journal of Sport Science, 12(2), 121–129. http://dx.doi.org/10.1080/17461391.2010.551418
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