Após ter lido “Nenhum Olhar” (2000) há coisa de sete
anos, “Cemitério de Pianos” (2006) foi a segunda obra que li de José Luís
Peixoto, um dos autores de maior destaque da literatura portuguesa
contemporânea. A título de curiosidade, em 2007, um ano após a sua publicação,
“Cemitério de Pianos” (figura 1) recebeu o Prémio Cálamo Otra Mirada, destinado
ao melhor romance estrangeiro publicado em Espanha.
Figura 1. Capa do livro “Cemitério de Pianos” (1.ª Edição, 2006, Quetzal
Editores).
Quem já havia lido José Luís Peixoto reconhece o estilo do autor nesta obra: a profundidade da narrativa; a atenção concedida à natureza humana; o contraste das emoções associado a acontecimentos díspares; e, a fatalidade do destino entrelaçada com a perpetuação de características hereditárias. Apesar de o autor se ter baseado na história trágica de Francisco Lázaro, um atleta português que faleceu nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, a trama abrange a sua família direta ao longo de três gerações. As três gerações são representadas por três narradores distintos: o pai do atleta Francisco Lázaro, o próprio Francisco Lázaro e, posteriormente, o seu filho. O enredo é contado de forma anacrónica pelos narradores, ou seja, com mudanças constantes de plano temporal, pelo que é preciso permanecer alerta para que não percamos o fio à meada. O excerto – “A minha mulher, sentindo-se menina, mãe e avó, respirou, aproximou-se dela [Maria] e contou-lhe o que aconteceu” (p. 66) –, sintetiza o modo como a história é narrada a partir de três pontos temporais distintos: a recordação da juventude do primeiro narrador, quando solteiro, enamorado e o casamento com a sua esposa; o nascimento dos quatro filhos e a existência como pais; o crescimento da família e o papel de avós.
Entramos na história de rompante com a frase: “Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer” (p. 13). A intimidade da família é progressivamente revelada, na qual o amor dá lugar à violência, a alegria é abafada pela tristeza, a cumplicidade é pervertida pela traição e a morte permuta com a vida. Hermes nasce no dia em que o avô morre vítima de doença prolongada e o filho de Francisco Lázaro nasce pouco após o pai falecer na maratona de Estocolmo. Além do legado genético, os narradores trabalhavam na carpintaria de Benfica que herdaram dos pais (da família) e arranjavam pianos. É a sala anexa à carpintaria – o cemitério de pianos –, inicialmente apresentada como uma “divisão fechada” que encerrava “sustos lá dentro”, que acaba por estabelecer a conexão intergeracional da narrativa. Por exemplo, Marta, uma das irmãs de Francisco Lázaro, foi concebida no cemitério de pianos, num mês de setembro; porém, anos mais tarde, foi um “incidente familiar” nesse mesmo local que despoletou a mudança comportamental que a tornou disforme. O cemitério de pianos é, também, um espaço metafísico no qual a pequena Íris, sobrinha de Francisco, com quase três anos, dialoga com o falecido avô: “Tu eras marido, pai e avô” (p. 189) e “egoísta”.
O drama das relações numa família numerosa, no final do século XIX e primórdios do século XX, foi sublimemente captado na relação de Simão, o irmão mais velho de Francisco, com o pai. Simão cegou em pequeno num acidente com Francisco e foi, de entre os quatro irmãos, aquele que mais sofreu com o alcoolismo e a violência do pai. O pai nunca batia em Francisco e este julgava que, ao bater em Simão, era a forma que havia arranjado para lidar com a tristeza do acidente.
A descrição da corrida, quilómetro a quilómetro, pelo narrador
(e atleta) Francisco Lázaro foi uma das partes do livro que mais apreciei. Quando corremos há
uma multitude de pensamentos que nos assolam e nem sempre de maneira ordeira e
coerente. O autor expôs estes desvarios com mestria, interpolando as sensações
experienciadas pelo corredor – alguns excertos são apresentados a seguir –, com
eventos ocorridos anteriormente (analepses).
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Quilómetro 6: “(…) O sol arde-me na pele, na graxa especial que me
cobre a pele” (p. 108).
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Quilómetro 11: “Correr é estar absolutamente sozinho. Sei desde o
início: na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio” (p. 123).
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Quilómetro 17: “Deixarei de ouvir a
voz que se repete na minha cabeça: o sol. Continuarei a ouvir a voz que existe
no centro de mim: a minha vontade” (p. 199).
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Quilómetro 22: “Era na dificuldade da minha solidão: caminho negro de
estátuas: que eu me edificava” (p. 215).
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Quilómetro 29: “No meu corpo, é outra coisa que se imola no lugar do
meu corpo. Talvez aquilo que penso” (p. 235).
A morte por exaustão de Francisco
Lázaro, na maratona dos Jogos Olímpicos de Estocolmo (1912), é um facto
verídico na história do desporto nacional. No âmbito da ficção, e segundo a
narração do seu filho a relembrar as palavras do tio Simão: “(…) houve aqueles
que acreditaram que encontrou a morte ao fugir dela e houve aqueles que acreditaram
que fugiu da morte ao procurá-la” (p. 156). No final nem tudo tem de ser
derradeiro: haverá sempre vida depois da morte, enquanto houver descendência e
memória:
Então, pensava que havia uma parte do meu pai que
permanecia em mim e que entregava aos meus filhos para que permanecessem neles
até que um dia a começassem a entregar aos meus netos. (…) Éramos perpétuos uns
nos outros.
(p. 257)
Um livro pleno, que compatibiliza as suaves valências e os duros defeitos do ser humano num contexto íntimo e alargado de família.
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