Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes
critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com
revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3)
associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do
Desporto.
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Autores: Campos-Vazquez,
M. A., Zubillaga, A., Toscano-Bendala, F. J., Owen, A. L., &
Castillo-Rodríguez, A.
País: Espanha
Data de publicação: 10-maio-2021
Título: Quantification
of high speed actions across a competitive microcycle in professional soccer
Revista: Journal of Human Sport and
Exercise
Referência: Campos-Vazquez,
M. A., Zubillaga, A., Toscano-Bendala, F. J., Owen, A. L., &
Castillo-Rodríguez, A. (2021). Quantification of high speed
actions across a competitive microcycle in professional soccer. Journal of Human
Sport and Exercise. https://doi.org/10.14198/jhse.2023.181.03
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 19 – julho de
2021.
Apresentação do problema
Em tempos recentes tem havido um aumento da investigação
em torno das exigências físicas do jogo, com a indicação das características do
esforço requerido ao mais alto nível no futebol (Bradley et al., 2009; Di Salvo
et al., 2010; Suarez-Arrones et al., 2015). Alguns resultados destes estudos
revelaram que jogadores de futebol de elite percorrem distâncias entre os 9 e
os 12 Km por jogo (Di Salvo et al., 2007, 2013; Stolen et al., 2005), com um
tipo de atividade intermitente. Neste contexto, a distância cobrida a alta
velocidade é uma variável crucial para a performance dos jogadores no decurso
dos jogos, variando entre os ≈700 m e os ≈1000 m (Di Salvo et al., 2009), embora
seja influenciada por fatores estratégicos e contextuais, como a estrutura
tática de base (Tierney et al., 2016), a qualidade da oposição (Rampinini et
al., 2007) ou a localização do jogo (Lago et al., 2010).
O impacto que este tipo de atividades (i.e., corrida em
velocidades alta, muita alta e em sprint) pode ter no resultado de um jogo é
atualmente reconhecido, visto que boa parte dos golos são precedidos de sprint
(Faude et al., 2012) e os avançados e os médios tendem a percorrer maiores
distâncias em sprint em jogos que culminam em vitória, em comparação com jogos
em que saem derrotados (Andrzejewski et al., 2017). De facto, evidências
recentes sugerem que as distâncias percorridas em alta velocidade e em sprint
têm aumentado progressivamente em ligas de futebol profissionais (Barnes et
al., 2014; Bush et al., 2015).
O acréscimo de exigência nas ações de corrida de alta
velocidade deve ser tomado em consideração na preparação das sessões de treino,
pois é fundamental perceber a carga física que os jogos suscitam nos jogadores
para desenvolver situações de treino mais específicas (Owen et al., 2017). Se o
treino não estimular, ou mesmo intensificar, os esforços de alta velocidade
exigidos em competição, a performance física em jogo pode ficar comprometida
(Di Salvo et al., 2007) e o risco de lesão aumentar (Gabbett, 2016; Malone et
al., 2017). No entanto, apesar de ser relevante saber se as ações de alta
velocidade em competição estão a ser replicadas no processo de treino (figura 2),
poucos estudos analisaram as diferenças entre as demandas físicas em contexto
de jogo e as proporcionadas em treino durante um microciclo competitivo.
Figura 2. Monitorização das exigências físicas em treino através de
GPS (imagem não publicada pelos autores; fonte: https://www.cadizcf.com/).
Desta maneira, o propósito da investigação foi comparar
as distâncias percorridas por jogadores profissionais de futebol em velocidades
elevadas durante jogos oficiais, com os valores alcançados nas mesmas variáveis
durante sessões de treino integradas num microciclo competitivo. Além disso, entre
as partidas e as diferentes sessões de treino, foi ainda comparado o número de
ações realizadas a velocidade alta e muita alta, em diversas distâncias de
referência.
Métodos
Participantes: 12
futebolistas profissionais de futebol (defesas, n = 6; médios, n
= 4; avançados, n = 2; idade: 28.1 ± 4.7 anos; estatura: 179.7 ± 4.1 cm;
massa corporal: 78.2 ± 7.2 kg; % massa gorda [Faulkner]: 12.1 ± 1.6). Todos os
jogadores competiram na mesma equipa na Liga BBVA (primeira divisão espanhola,
época 2015/2016).
Desenho experimental:
foi empregue um desenho observacional descritivo. O estudo decorreu durante 10
semanas durante a primeira metade do período competitivo da época. Contudo,
apenas sessões de treino de microciclos compostos por um jogo competitivo e
cinco sessões prévias foram incluídas na análise (i.e., um total de seis
microciclos competitivos). Cada sessão de treino teve uma duração média de ≈85
minutos (amplitude: 75 a 95 minutos). As sessões de treino foram agrupadas em
diferentes tipos em função do número de dias de distância para o jogo
competitivo – match day (MD) (Owen et al., 2017): 6xMD-5, 6xMD-4,
6xMD-3, 6xMD-2, 6xMD-1 (tabela 1). As sessões MD-2 não foram monitorizadas, uma
vez que o seu propósito era a recuperação fisiológica do esforço realizado nos
dias anteriores e, por isso, efetuadas em contexto de ginásio. Todos os
registos de jogadores que não completaram as sessões de treino (lesão, gestão
da carga, etc.) foram excluídos da análise. Um total de 24 sessões de treino e
222 registos individuais satisfizeram os requisitos de inclusão no estudo e
foram sujeitos a análise.
Tabela 1. Conteúdo usual de cada
tipo de sessão de treino (adaptado de Campos-Vazquez et al., 2021).
Durante o período sob investigação foram disputados nove
jogos oficiais. A estrutura tática de base da equipa foi sempre a mesma
(1–5–3–2) e, de modo a reduzir a possível influência da fadiga, de alterações
estratégico-táticas (e.g., métodos de jogo, substituições, etc.) e do próprio
resultado na performance física, apenas foi analisada a primeira parte dos
jogos (45 minutos + tempo adicional). Um total de 69 registos individuais cumpriram
os requisitos definidos (e.g., primeira parte completa) e foram utilizados no
estudo. Todos os jogadores foram monitorizados, em treino e em competição,
através de dispositivos GPS (Minimax S4; Catapult Innovations, Melbourne,
Australia), a uma frequência de 10 Hz. Os dados foram, posteriormente,
transferidos para computador a analisados através do software Openfield
v.1.10.0 (Catapult®, Camberra).
Análise espaciotemporal: a
carga externa de cada sessão de treino e jogo oficial foi avaliada de acordo
com as seguintes variáveis: velocidade máxima (maximum velocity, MV),
distância total percorrida (total distance covered, TD), distância a
velocidade alta (distance at high velocity, DHV: >14.4 Km/h), distância
a velocidade muito alta (distance at very high velocity, DVHV: >19.8
Km/h) e distância em sprint (sprint distance, DSP: >25.2 Km/h). Foi
ainda analisada a quantidade de esforços com mais de 1 segundo realizados a
velocidade alta (N-HV>14.4 Km/h), a velocidade muito alta (N-VHV>19.8
Km/h) e em sprint (N-SP>25.2 Km/h), em quatro categorias de distância (0–5
m, 5–15 m, 15–30 m, >30 m). Por último, o número de esforços repetidos de
alta intensidade (repeated high-intensity efforts, N-RHIE), definidos
como a realização de, pelo menos, três esforços (> 1 segundo) a uma
velocidade superior a 14.4 Km/h e com um período de recuperação inferior a 21
segundos (Casamichana et al., 2012), também foi incluído na análise. Para
viabilizar comparações entre jogos competitivos e os diferentes tipos de sessão
de treino, os valores destas variáveis (excetuando a velocidade máxima) foram
normalizados por minuto de participação (m/min) ou por tempo de participação
(número de ações por hora).
Análise estatística: os
resultados foram apresentados como médias ± desvios-padrão. A normalidade dos
dados em cada variável foi analisada previamente à implementação de testes
estatísticos. Após verificada a assunção de homocedasticidade, a Análise de
Variância de uma via (one-way ANOVA) foi aplicada para apurar eventuais
diferenças entre os jogos e os diferentes tipos de sessão de treino. As
dimensões de efeito da ANOVA foram estimadas através de valores de eta quadrado.
Não sendo verificados a assunção de homocedasticidade e o requisito de
Games-Howell, foram empregues testes post-hoc de Bonferroni para se
proceder a múltiplas comparações de pares, complementados com valores de Cohen’s
d para apurar as dimensões de efeito. A análise estatística foi
executada no software IBM SPPS v.24 e o nível de significância estabelecido em p
≤ 0.05.
Principais resultados
A tabela 2 expõe as distâncias percorridas, em diferentes
intervalos de velocidade, nos diversos tipos de sessão de treino e nos jogos
competitivos.
Tabela 2.
Comparação das distâncias percorridas, em diferentes intervalos de velocidade,
entre o jogo oficial e as sessões de treino no microciclo competitivo. Média ±
desvio-padrão (coeficiente de variação em %) (adaptado de Campos-Vazquez et
al., 2021).
Conforme podemos verificar na tabela (contorno a
vermelho), foram nas sessões MD-4 e MD-3 que as exigências físicas mais se
aproximaram dos valores observados em competição, embora fossem
significativamente inferiores. Ao longo do microciclo houve a preocupação da
equipa técnica em fracionar o esforço dos jogadores, de forma a que houvesse um
período intermédio de maior intensidade e outro final de recuperação ativa
(MD-2 e MD-1), o designado tapering, para o evento competitivo. Um
resultado importante a destacar é que a velocidade máxima atingida nos jogos oficiais
(29.5 Km/h) foi significativamente superior às velocidades máximas suscitadas pelos
diversos tipos de sessões de treino analisados.
O número de esforços com mais de 1 segundo realizados a
velocidade alta, a velocidade muito alta e em sprint, em quatro categorias de
distância (0–5 m, 5–15 m, 15–30 m, >30 m) constam nas figuras 3, 4 e 5.
Figura 3. Número de esforços a velocidade alta (N-HV>14.4
Km/h), nas diferentes categorias de distância (0–5 m, 5–15 m, 15–30 m, >30
m), ao longo do microciclo competitivo (Campos-Vazquez et al., 2021).
Figura 4. Número de esforços a velocidade muito alta
(N-VHV>19.8 Km/h), nas diferentes categorias de distância (0–5 m, 5–15 m,
15–30 m, >30 m), ao longo do microciclo competitivo (Campos-Vazquez et al.,
2021).
Figura 5. Número de esforços em sprint (N-SP>25.2 Km/h), nas
diferentes categorias de distância (0–5 m, 5–15 m, 15–30 m, >30 m), ao longo
do microciclo competitivo (Campos-Vazquez et al., 2021).
· Sessão MD-5
Treino com cariz de recuperação, no qual a quantidade de
esforços a velocidades alta, muito alta e em sprint foi significativamente
inferior ao jogo competitivo e às sessões MD-4 e MD-3, sobretudo, em
distâncias entre os 5 e os 30 metros. O número de esforços a velocidade alta (>14.4
Km/h) acima dos 30 metros foi significativamente inferior ao obtido para a
sessão MD-1.
· Sessão MD-4
Treino de condição física
e com algum cariz aquisitivo, no qual o número de esforços a velocidade alta,
muito alta e em sprint replicou as exigências experienciadas em competição
para distâncias entre os 15–30 m. Contudo, estas semelhanças foram,
essencialmente, provocadas por tarefas de condição física, tais como HIIT (high-intensity
interval training). Para as distâncias 0–5 m, 5–10 m e >30 m, o número
de esforços realizados nos diferentes intervalos de velocidade foi inferior ao
apurado em competição.
· Sessão MD-3
Treino de maior expressão aquisitiva no que a conteúdos
estratégico-táticos diz respeito. Para as diversas distâncias analisadas (0–5
m, 5–10 m, 15–30 m e >30 m), o número de esforços executados nos diferentes
intervalos de velocidade foi sempre inferior ao alcançado no jogo oficial.
· Sessão MD-1
Sessão com diversos
propósitos: recuperação ativa, trabalho de velocidade, e aperfeiçoamento estratégico
e tático-técnico mais específico (i.e., finalização e esquemas táticos). As
principais diferenças para as restantes sessões foram verificadas na categoria
de distância 15–30 m, sendo obtidos valores significativamente inferiores nos
esforços em velocidade alta, em relação aos outros tipos de sessão (MD-5, MD-4
e MD-3). A quantidade de esforços em velocidade muito alta e em sprint foi apenas inferior ao induzido nas sessões MD-4 e MD-3.
Aplicações práticas
No decurso do processo de treino, os futebolistas devem
ser regularmente expostos a períodos de ações cíclicas com velocidades alta e
muito alta, no intuito de otimizar a sua preparação para as demandas da
competição (Malone et al., 2017). Com base nos resultados deste estudo e de outras
investigações prévias, as atividades em velocidades elevadas a que os jogadores
estão sujeitos durante as sessões de treino são insuficientes para corresponder
às exigências competitivas. Este é um fator com especial impacto no risco de
lesão, uma vez que uma dose reduzida de distâncias acumuladas em velocidade muito alta e em sprint no microciclo competitivo aumenta o risco de lesão em
jogadores de futebol (Malone et al., 2018).
As tarefas propostas no treino tendem a não permitir que
os jogadores atinjam os picos de velocidades que são registados em competição.
De acordo com os autores, pode-se especular que certas lesões musculares (e.g., isquiotibiais) que acontecem
durante esforços em velocidade máxima nos jogos possam derivar
da estimulação inadequada do tecido musculoesquelético nas sessões de treino
(Ekstrand et al., 2016).
Comparativamente à situação de competição, nenhuma das
sessões de treino analisadas correspondeu às exigências de esforço em
velocidade elevada na categoria de distância >30 m. Estudos anteriores
comprovaram que a velocidade máxima num sprint é atingida entre os 20 e os 40 m
(Di Salvo et al., 2010; Suarez-Arrones et al., 2015). As equipas técnicas ou os
preparadores físicos devem incluir tarefas analíticas para melhorar a velocidade
em distâncias superiores a 30 m, visando alcançar velocidades máximas em
circunstâncias análogas às requeridas em competição.
O microciclo semanal deve ser cuidadosamente estruturado
de modo a dosear o esforço exigido aos jogadores e dar resposta aos conteúdos
estratégicos e tático-técnicos a desenvolver. Por exemplo, a sessão MD-5
normalmente ocorre até às 48h após o último jogo competitivo e os jogadores não
se encontram totalmente recuperados do esforço realizado. Para facilitar a
recuperação dos jogadores e evitar a acumulação de fadiga, os técnicos deve planear tarefas (mais ou menos específicas) com menos preocupações ao
nível de ações com velocidades elevadas. Na última fase do microciclo, deve ser
delineada uma sequência de conteúdos que induza o tapering, diminuindo a
atividade geral associada a velocidades elevadas, mas mantendo tarefas que
estimulem a velocidade máxima e ações com velocidade elevada em distâncias
curtas (<15 m).
Conclusão
As distâncias percorridas em velocidades alta, muito alta
e em sprint, em competição, não foram reproduzidas em nenhuma das sessões de
treino investigadas. A atividade em velocidade máxima também ficou aquém do
esperado nas sessões de treino de microciclos competitivos. Se as tarefas e/ou
as sessões de treino não estimulam ou intensificam os esforços de alta
velocidade solicitados em competição, a performance física no jogo pode ficar
comprometida, bem como pode aumentar o risco de lesão.
Relativamente à situação competitiva, somente a sessão
MD-4 possibilitou obter a densidade de esforços em velocidades alta e muita alta
para a categoria de distância 15–30 m, mas não para distâncias superiores a 30
m, nas quais a velocidade máxima é frequentemente verificada. Os treinadores e
os preparadores físicos devem incluir tarefas de treino para
desenvolver a velocidade de corrida em distâncias superiores a 30 m, uma vez
que a metodologia de treino e estratégia de tapering ora avaliadas não
simularam satisfatoriamente o espetro de atividades em velocidades elevadas
observado nos jogos competitivos.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram
originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas
para a língua portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos
autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão
original publicada na revista Journal of Human Sport and Exercise.