30/07/2021

Da componente metodológico-estratégica ao fator humano: de Jorge Jesus a Rúben Amorim, passando por Vítor Oliveira

Em plena era do fenómeno “Big Data” no futebol e no desporto em geral (figura 1), a componente metodológico-estratégica é cada vez menos uma arte e cada vez mais uma ciência. Os números e as quantidades prosperaram de tal modo que se tem esquecido os predicados e as qualidades do jogador e, contundentemente, do ser humano.

 

Figura 1. A análise do jogo de futebol na era do fenómeno “Big Data” (fonte: https://www.linkedin.com/pulse/impact-big-data-analytics-football-chris-pearson/).

 

O sucesso de treinadores portugueses, como José Mourinho ou Jorge Jesus, tem sido reiteradamente associado ao nome de Manuel Sérgio (ex-professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana), uma fonte de inspiração e conhecimento para o processo de treino e competição na modalidade. Não que o prof. Manuel Sérgio fosse um especialista em futebol, o próprio refere que nunca o foi, mas porque um treinador de excelência deve ser, antes de tudo, um líder capaz de potenciar relações humanas, fazendo do “todo” muito mais do que a mera soma das suas “partes”. 

Quem só sabe de futebol, de futebol nada sabe.

(Manuel Sérgio)


Este é o ponto de partida para este texto: até que ponto o fator humano se sobrepõe ou se coaduna com a metodologia de treino e a preparação estratégico-tático empregues pelo treinador contemporâneo? No início da pré-época, Filip Krovinović deixou duras críticas ao seu treinador Jorge Jesus após não ser utilizado num jogo contra o SC Covilhã:


Imagina se estás na minha situação. Ontem tiveram jogo e eu fui o único jogador que não entrou nem um minuto. Jogaram duas equipas e não entrei. Depois o treinador adjunto foi perguntar ao Jesus se eu entrava e ele [Jorge Jesus] disse 'não, fica lá. Se alguém se lesionar, entra'. Mano, que filho da p***, pá, incrível! Tipo, não conseguia sair para casa e tinha de ficar lá...

(fonte: O Jogo, 9 de julho de 2021)

 

Sim, são declarações que não são admissíveis a um profissional pago a peso de ouro e que culminaram com a sua transferência para o Hadjuk Slipt, na sequência de um processo disciplinar instaurado pelo clube ao médio internacional croata. Este incidente permite-nos refletir um pouco sobre o “fator humano” no desporto profissional. Foi somente o jogador que esteve mal? A sua venda, quiçá precipitada, não poderia ter sido evitada (e posteriormente rentabilizada), sabendo que se tratava de um simples jogo de preparação contra uma equipa de um escalão inferior? Decidi, por isso, analisar o perfil de substituições em jogos subsequentes dos designados “três grandes” e respetivos adversários, durante o período preparatório, no intuito de retirar mais algumas ilações sobre a gestão dos ativos (humanos) que cada treinador tem ao seu dispor (figuras 2, 3 e 4).

 

Figura 2. Substituições no jogo Sporting CP 3 x 2 Olympique Lyonnais, 25-jul-2021 (fonte: flashscore.pt).

 

Figura 3. Substituições no jogo FC Porto 2 x 0 LOSC Lille, 25-jul-2021 (fonte: flashscore.pt).

 

Figura 4. Substituições no jogo SL Benfica 1 x 1 Olympique de Marseille, 25-jul-2021 (fonte: flashscore.pt).

 

Rúben Amorim (Sporting CP), Peter Bosz (Lyon) e Jorge Sampaoli (Marseille) deram, pelo menos, 20 minutos aos últimos jogadores que entraram nos jogos. No caso de Jocelyn Gourvennec (Lille), os últimos dois substitutos tiveram pouco mais de 10 minutos para jogar, enquanto Jorge Jesus (Benfica) e Sérgio Conceição (Porto) proporcionaram cerca de 5 minutos a Carlos Vinícius, Paulo Bernardo, Florentino Luís, Gedson Fernandes e Romário Baró. Note-se, por exemplo, que os três derradeiros elementos da lista foram recentemente vice-campeões europeus na categoria Sub-21. Se estes treinadores contam com os jogadores para a época, porque é que entraram tão tarde? Se não contam, porque renderam os colegas quase sem tempo para se adaptarem às circunstâncias situacionais do jogo e/ou gerir eventuais estados de fadiga dos jogadores substituídos?

Do ponto de vista estratégico-tático são alterações que não fazem muito sentido em contexto de pré-época. Porém, se nos debruçarmos exclusivamente sobre a gestão da individualidade e do grupo (i.e., preparação física, motivação, relações interpessoais), atrevo-me a escrever que, ao invés de acrescentarem algo de positivo, apenas causam mal-estar. Nenhum jogador gosta deste tipo de substituição, muito menos se se tratar de um jogo em pleno período preparatório. Quem comigo priva sabe que considero que os jogadores são os principais representantes e executores do modelo de jogo criado pela equipa técnica e do plano estratégico-tático engendrado para cada partida. A interpretação de princípios táticos e o desempenho eficaz de comportamentos individuais e coletivos são facilitados, não determinados, pela relação interpessoal que o(s) treinador(es) estabelecem com o(s) jogador(es). Não ser empático com outro ser humano gera uma barreira, que pode ser mais ou menos transponível consoante a capacidade de abstração e determinação do atleta, para a identificação, interpretação e aplicação de uma dada mensagem ou matéria. 

Não é a primeira vez, e duvido que seja a última, que Jorge Jesus recorre a este género de opções estratégicas. Não só provocam afastamento de jogadores tidos como “menos importantes”, como fomentam clivagens desnecessárias no seio do grupo. Quando o malogrado Vítor Oliveira (figura 5) foi há tempos questionado sobre o “segredo” para o seu estupendo sucesso na II Liga, o mister referiu a relação com os jogadores como um aspeto crucial: tratá-los a todos, sem exceção, como se fossem filhos, primando pela justiça e frontalidade. Justiça, porque o grupo é extremamente sensível às (in)justiças cometidas pelos treinadores; frontalidade, porque tudo o que se tem para expor deve ser feito na cara, sem rodeios, seja para elogiar, criticar construtivamente ou penalizar. Estando prestes a iniciar uma nova época desportiva em Portugal, e admitindo que em termos metodológico-estratégicos os treinadores dos "três grandes" possam estar equiparados, é na liderança, na comunicação e na gestão de grupo que as equipas técnicas podem marcar a diferença.

 

Figura 5. Homenagem a Vítor Oliveira no Estádio do Mar, em Leixões (fonte: record.pt).

 

As substituições constituem um fator explícito de gestão de grupo e liderança, e um fator implícito, mas potente, de comunicação para o grupo. Rúben Amorim é, na minha perspetiva, um líder muito mais assertivo neste âmbito que Jorge Jesus e Sérgio Conceição. Independentemente do investimento que possa ser realizado em contratações pelos três clubes mencionados, acredito que o Sporting CP parte na “pole position” para a época 2021/2022; se será o clube mais bem-sucedido ou não, só o tempo o dirá. 

Retornando às palavras de Manuel Sérgio, “não há chutos na bola, há Homens que chutam”. É tempo de deixar de lado estilos autoritários e diretivos mais tradicionais, e começar a envolver mais os nossos representantes nos processos de preparação e decisão para competição, incluindo a elaboração do plano de jogo. Equacionar diversos tipos de substituição em função de diferentes contextos situacionais (e.g., a vencer por 3–0 aos 45’, empatados aos 60’, a jogar “fora”) e discuti-los, aberta e democraticamente, com os jogadores, de maneira a utilizar as melhores ideias/soluções em jogo. Talvez possa parecer estapafúrdio, talvez alguns grupos não tenham maturidade para isso, talvez possa resultar e produzir efeitos positivos. Caberá a cada treinador perceber de que modo pode rentabilizar a massa humana, além da massa atlética, de um “todo” que se quer uma verdadeira “equipa”.

Sem comentários: