02/07/2021

Um comentário sobre a promoção do #(un)EqualGame no UEFA EURO 2020

A UEFA organiza a cada quatro anos o campeonato europeu de futebol. A 16.ª edição do torneio, que era para ter sido disputada no verão de 2020, encontra-se a decorrer um ano depois (2021) em virtude da pandemia mundial da COVID-19 que a todos nos tem afetado (figura 1). A entidade que tutela o futebol no continente europeu continua a apelar ao “respeito” neste evento, através da campanha #EqualGame (“jogo de igualdade”), uma medida de responsabilidade social que, segundo a UEFA (2017), “procura defender e promover a incrível e muitas vezes inspiradora diversidade existente no futebol europeu, com as estrelas, desde as raízes até à elite, a conferirem o seu apoio sempre crucial”.

 

Figura 1. Logotipo da competição UEFA EURO 2020 (fonte: pt.uefa.com).

 

Foi precisamente o “jogo de igualdade”, o tal #EqualGame (figura 2) que tem como propósito promover o “respeito” enquanto valor basilar da nossa sociedade, que me fez tecer algumas considerações sobre outras medidas, a meu ver incongruentes, que a UEFA tomou especificamente para o atual EURO 2020. Se é verdade que o futebol tem o condão de criar e transmitir referências positivas para a sociedade em geral, então o exemplo deveria provir do incomensurável mediatismo que a elite possui. Em bom português, o exemplo deveria vir de cima e não veio, porque o “jogo de igualdade” assente na eliminação de fatores de confusão passíveis de deturpar a qualidade (individual e coletiva) dos protagonistas não foi devidamente salvaguardado a priori. Tentarei, em seguida, fundamentar esta minha opinião em dois pontos distintos: 1) determinação dos potes para o sorteio dos grupos do certame; 2) organização da competição por diversas cidades-anfitriãs.

 

Figura 2. Logotipo da campanha #EqualGame da UEFA (fonte: efdn.org).

 

Determinação dos potes para o sorteio dos grupos do UEFA EURO 2020

Ao contrário do que sucedeu em campeonatos europeus de futebol anteriores, o ordenamento dos potes pré-sorteio da fase de grupos somente considerou o “ranking” global da qualificação europeia que, excluídos os resultados frente às equipas que terminaram em último lugar, foi definido segundo os seguintes critérios: a) posição final do grupo; b) pontos; c) diferença de golos; d) golos marcados; e) golos marcados fora; f) número de vitórias; g) número de vitórias fora; h) total mais baixo de pontos disciplinares (3 pontos por cartão vermelho, incluindo o segundo amarelo, 1 ponto por cartão amarelo por cada jogador num jogo); i) posição global no “ranking” da UEFA Nations League.

A título de exemplo, Portugal alcançou o 2.º lugar do grupo de qualificação, com 5 vitórias, 2 empates e uma derrota. Conjugando os diversos critérios, e como não era um dos países com cidade-anfitriã, pois cada grupo tinha de ter um ou dois países com cidades-anfitriãs, ficou colocado no pote 3. Toda a história recente em competições oficiais da UEFA (vencedor do UEFA EURO 2016 e da UEFA Nations League 2019) não teve nenhum peso na hora de distribuir as seleções pelos potes, o que acabou por originar uma fase de grupos ridiculamente díspar (e.g., Grupo C – Países Baixos #16 ranking FIFA; Áustria #23; Ucrânia #24; Macedónia do Norte #62; Grupo F – França #2 ranking FIFA; Portugal #5; Alemanha #12; Hungria #37). Portanto, os campeões do mundo de 2014 (Alemanha) e 2018 (França), e o campeão europeu de 2016 (Portugal) ficaram no mesmo grupo. 

Posto isto, deixo duas questões para reflexão:

 

1)  Será que, de facto, os novos critérios adotados na fase de qualificação para o EURO 2020 foram uma promoção do #EqualGame e do “fair-play”, ou algumas seleções foram prejudicadas (e outras beneficiadas) face aos regulamentos que vigoraram até este torneio em particular?

2)  Terá sido uma coincidência que todas as equipas do grupo F, o designado “grupo da morte”, tenham ficado pelo caminho nos oitavos-de-final da prova, ou as exigências competitivas experienciadas durante o curto período da fase de grupos, em conjugação com o elevado número de jogos efetuado por grande parte dos jogadores destas seleções ao longo da época, não tenha de alguma forma contribuído para um rendimento abaixo do esperado?

 

Organização da competição por diversas cidades-anfitriãs europeias

Antes do EURO 2020, todas as edições da competição foram disputadas em um ou dois países. Normalmente, o país organizador recebe todas as seleções apuradas; porém, em caso de organização conjunta, os jogos são realizados em dois países, conforme aconteceu em 2012 na Polónia e na Ucrânia. Para a prova que agora decorre, a UEFA tomou a pioneira decisão de dispersar os jogos por 11 cidades-anfitriãs de países diferentes: Amesterdão (Países Baixos), Baku (Azerbaijão), Bucareste (Roménia), Budapeste (Hungria), Copenhaga (Dinamarca), Glasgow (Escócia), Londres (Inglaterra), Munique (Alemanha), Roma (Itália), São Petersburgo (Rússia) e Sevilha (Espanha). 

De acordo com a UEFA, a dispersão do EURO 2020 pelo território europeu foi a melhor solução, de modo a facilitar mudanças caso algum problema sanitário surja numa das cidades-anfitriãs devido aos tempos pandémicos que vivemos. No intuito de acautelar imponderáveis sanitários, esta medida foi bem pensada pela UEFA, no entanto, não se devia ter ignorado um fenómeno bem documentado associado à localização do jogo: o “efeito da vantagem de jogar em casa” (home advantage effect). Este constructo traduz-se na obtenção de melhores resultados desportivos quando um atleta ou equipa compete no seu estádio ou arena, comparativamente a quando o faz no reduto do(s) oponente(s) e é originado por uma rede complexa de fatores: suporte do público, familiaridade com o estádio/arena, territorialidade, efeitos da viagem, parcialidade da equipa de arbitragem, etc. (Pollard, 2008). 

Em especial no futebol, 57–62% dos pontos conquistados nas principais ligas europeias de clubes acontecem na condição de visitado, i.e., em “casa” (Almeida & Volossovitch, 2017; Lago-Peñas et al., 2016; Leite & Pollard, 2018), enquanto nas fases de qualificação para o Campeonato do Mundo da FIFA a magnitude do efeito varia entre os 56 e os 69% (Pollard & Armatas, 2017). A propósito do EURO 2020, 24 jogos da fase de grupos ocorreram com equipas visitadas/visitantes e 12 foram realizados em circunstâncias neutras. A tabela 1 mostra a distribuição dos resultados finais dos 24 jogos realizados com uma equipa a jogar em “casa”.

 

Tabela 1. Frequências absolutas e relativas de vitórias, empates e derrotas em “casa” na fase de grupos do EURO 2020.


Independentemente da qualidade das equipas, aspeto absolutamente fulcral para o resultado desportivo, podemos verificar que, em cerca de 71% dos jogos, a equipa visitada não saiu derrotada no decurso da fase de grupos, uma evidência inequívoca que reforça a relevância do fator “casa” na obtenção de sucesso em competições de futebol de elite. Por si só, este já constitui um fator de desigualdade em relação a campeonatos europeus prévios, mas não nos fiquemos por aqui. Em cada cidade-anfitriã, o número de adeptos permitidos nos estádios diferiu em função da situação epidemiológica vigente em cada país. Se, por exemplo, em Glasgow houve um total de 9847 espetadores no estádio para assistir ao jogo entre Escócia e República Checa, em Budapeste, a Hungria disputou os jogos contra Portugal e Franca, com 55662 e 55998 espetadores, respetivamente. Embora nem todas as investigações científicas tenham produzido conclusões unânimes neste âmbito, alguns estudos demonstraram a existência de uma relação positiva entre o número de espetadores nos estádios e a magnitude da vantagem de jogar em casa (Goumas, 2013; Pollard & Armatas, 2017; Ponzo & Scoppa, 2018), o que aumenta um pouco mais a controvérsia em torno deste novo formato implementado pela UEFA. 

Depois, há ainda que considerar os efeitos das viagens. Em jogos da fase de qualificação para Campeonatos do Mundo da FIFA, Pollard e Armatas (2017) reportaram um decréscimo significativo de 0.05 pontos/jogo por cada fuso horário atravessado pela equipa visitante. Outras investigações mostraram um aumento da magnitude da vantagem de jogar em casa quando a equipa visitante viajou longas distâncias (e.g., ≥ 4000 km) (Goumas, 2014; Pollard et al., 2008). A verdade é que nem todas as seleções mantiveram as mesmas rotinas de um jogo para outro no EURO 2020 (tabela 2). Se a Inglaterra disputou os 4 jogos que fez até ao momento em Londres (Wembley), tal como a Alemanha, a Dinamarca, a Espanha, a Itália e os Países Baixos não saíram de Munique, Copenhaga, Sevilha, Roma e Amesterdão, respetivamente, durante a fase de grupos, a seleção da Suíça, a título de exemplo, teve de viajar mais de 12000 km entre Roma e Baku. Ainda que não determine explicitamente a classificação final no evento, este é outro fator que não se coaduna com a igualdade e o respeito, que tanto a UEFA tem vindo a incitar, pelos principais intervenientes no jogo.


Tabela 2. Número de jogos disputados por cada seleção em "casa", em terreno neutro e fora, incluindo a fase de grupos e os oitavos-de-final do EURO 2020.

Nota: A cinzento constam as seleções apuradas para os quartos-de-final do EURO 2020.


Considerações finais

“Tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias”. É compreensível que a UEFA fizesse algo de diferente para lidar com a pandemia da COVID-19, se bem que as medidas ora discutidas avançaram muito antes da propagação do vírus na Europa. Por um lado, é admissível que a dispersão do evento por diferentes cidades-anfitriãs possibilite uma resposta mais eficaz a eventuais crises sanitárias; por outro lado, é espantoso que a UEFA não tenha equacionado o historial recente das seleções apuradas no ordenamento dos potes, nem a importância que o efeito ancestral da vantagem de jogar em casa pode ter no desfecho do torneio. 

Em edições anteriores, apenas os países organizadores puderam usufruir do fator “casa” e as distâncias percorridas por cada seleção, além de mais uniformes, foram substancialmente mais curtas. Por isso, a campanha de promoção do respeito #EqualGame surge conspurcada por uma série de decisões que primou por tornar o campo inclinado neste EURO 2020: o #(un)EqualGame. O respeito conquista-se e incentiva-se quando há uma convergência óbvia entre aquilo que se apregoa e o que se executa. Neste sentido, a UEFA pecou nas três dimensões do conceito de respeito: pela própria entidade, ao não ser coerente nas suas ações; pelo outro, ao fomentar um jogo desigual entre as diversas seleções; pelo contexto, ao ignorar o historial recente de cada equipa nacional, bem como o vasto leque de evidências científicas sobre o fator “casa”, na tomada de decisões. Na minha perspetiva, o que fica deste evento competitivo faz jus a um conhecido provérbio português: “de boas intenções está o inferno cheio”.

 

Referências

Almeida, C. H., & Volossovitch, A. (2017). Home advantage in Portuguese football: Effects of level of competition and mid-term trends. International Journal of Performance Analysis in Sport, 17(3):244–255. https://doi.org/10.1080/24748668.2017.1331574

Goumas, C. (2013). Modelling home advantage in sports: A new approach. International Journal of Performance Analysis in Sport, 13(2), 428–439. https://doi.org/10.1080/24748668.2013.11868659

Goumas, C. (2014). Home advantage in Australian soccer. Journal of Science and Medicine in Sport, 17(1), 119–123. https://doi.org/10.1016/j.jsams.2013.02.014

Lago-Peñas, C., Gómez-Ruano, M., Megias-Navarro, D., & Pollard, R. (2016). Home advantage in football: Examining the effect of scoring first on match outcome in the five major European leagues. International Journal of Performance Analysis in Sport, 16(2), 411–421. https://doi.org/10.1080/24748668.2016.11868897

Leite, W., & Pollard, R. (2018). International comparison of differences in home advantage between level 1 and level 2 of domestic football leagues. German Journal of Exercise and Sport Research, 48(2), 271–277. https://doi.org/10.1007/s12662-018-0507-2

Pollard, R. (2008). Home advantage in football: A current review of an unsolved puzzle. The Open Sports Sciences Journal, 1, 12–14. https://doi.org/10.2174/1875399X00801010012

Pollard, R., & Armatas, V. (2017). Factors affecting home advantage in football World Cup qualification. International Journal of Performance Analysis in Sport, 17(1-2), 121–135. https://doi.org/10.1080/24748668.2017.1304031

Pollard, R., Silva, C. D., & Medeiros, N. C. (2008). Home advantage in football in Brazil: Differences between teams and the effects of distance traveled. Brazilian Journal of Soccer and Science, 1(1), 3–10.

Ponzo, M., & Scoppa, V. (2018). Does the home advantage depend on crowd support? Evidence from same-stadium derbies. Journal of Sports Economics, 19(4), 562–582. https://doi.org/10.1177/1527002516665794

UEFA (2017). #Equalgame. https://pt.uefa.com/insideuefa/social-responsibility/respect/

  

P.S. – Há duas semanas, a UEFA comunicou a suspensão da regra do “golo fora” nas competições de clubes que organiza. Apesar de a deliberação não ter sido consensual no seio do comité técnico da entidade, passou. Numa era em que treinadores e outros profissionais do treino alertam para a necessidade de haver um maior respeito pela integridade física e psicoemocional dos jogadores, devido à exposição regular a calendários anuais altamente congestionados de jogos, a UEFA volta a ignorar os apelos dos agentes no terreno e suspende a regra do “golo fora”. Consequências? Estilos de jogo mais defensivos adotados pelas equipas visitantes, que não beneficiarão tanto em marcar um ou mais golos fora e, sobretudo, aumento da carga física e emocional fruto de mais tempo de jogo, através de prolongamentos e desempates por grandes penalidades. Tudo em prol do espetáculo e do #EqualGame.

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