A UEFA organiza a cada quatro anos o campeonato europeu
de futebol. A 16.ª edição do torneio, que era para ter sido disputada no verão
de 2020, encontra-se a decorrer um ano depois (2021) em virtude da pandemia
mundial da COVID-19 que a todos nos tem afetado (figura 1). A entidade que
tutela o futebol no continente europeu continua a apelar ao “respeito” neste
evento, através da campanha #EqualGame (“jogo de igualdade”), uma medida de
responsabilidade social que, segundo a UEFA (2017), “procura defender e
promover a incrível e muitas vezes inspiradora diversidade existente no futebol
europeu, com as estrelas, desde as raízes até à elite, a conferirem o seu apoio
sempre crucial”.
Figura 1. Logotipo da competição UEFA EURO 2020 (fonte:
pt.uefa.com).
Foi precisamente o “jogo de igualdade”, o tal #EqualGame (figura
2) que tem como propósito promover o “respeito” enquanto valor basilar da nossa
sociedade, que me fez tecer algumas considerações sobre outras medidas, a meu
ver incongruentes, que a UEFA tomou especificamente para o atual EURO 2020. Se é
verdade que o futebol tem o condão de criar e transmitir referências positivas
para a sociedade em geral, então o exemplo deveria provir do incomensurável
mediatismo que a elite possui. Em bom português, o exemplo deveria vir de cima e
não veio, porque o “jogo de igualdade” assente na eliminação de fatores de
confusão passíveis de deturpar a qualidade (individual e coletiva) dos
protagonistas não foi devidamente salvaguardado a priori. Tentarei, em
seguida, fundamentar esta minha opinião em dois pontos distintos: 1) determinação
dos potes para o sorteio dos grupos do certame; 2) organização da competição
por diversas cidades-anfitriãs.
Figura 2. Logotipo da campanha #EqualGame da UEFA (fonte: efdn.org).
Determinação dos potes para o sorteio dos grupos do UEFA
EURO 2020
Ao contrário do que sucedeu em campeonatos europeus de futebol anteriores, o ordenamento dos potes pré-sorteio da fase de grupos somente considerou o “ranking” global da qualificação europeia que, excluídos os resultados frente às equipas que terminaram em último lugar, foi definido segundo os seguintes critérios: a) posição final do grupo; b) pontos; c) diferença de golos; d) golos marcados; e) golos marcados fora; f) número de vitórias; g) número de vitórias fora; h) total mais baixo de pontos disciplinares (3 pontos por cartão vermelho, incluindo o segundo amarelo, 1 ponto por cartão amarelo por cada jogador num jogo); i) posição global no “ranking” da UEFA Nations League.
A título de exemplo, Portugal alcançou o 2.º lugar do grupo de qualificação, com 5 vitórias, 2 empates e uma derrota. Conjugando os diversos critérios, e como não era um dos países com cidade-anfitriã, pois cada grupo tinha de ter um ou dois países com cidades-anfitriãs, ficou colocado no pote 3. Toda a história recente em competições oficiais da UEFA (vencedor do UEFA EURO 2016 e da UEFA Nations League 2019) não teve nenhum peso na hora de distribuir as seleções pelos potes, o que acabou por originar uma fase de grupos ridiculamente díspar (e.g., Grupo C – Países Baixos #16 ranking FIFA; Áustria #23; Ucrânia #24; Macedónia do Norte #62; Grupo F – França #2 ranking FIFA; Portugal #5; Alemanha #12; Hungria #37). Portanto, os campeões do mundo de 2014 (Alemanha) e 2018 (França), e o campeão europeu de 2016 (Portugal) ficaram no mesmo grupo.
Posto isto, deixo duas questões para reflexão:
1) Será que, de facto, os novos critérios adotados na fase
de qualificação para o EURO 2020 foram uma promoção do #EqualGame e do
“fair-play”, ou algumas seleções foram prejudicadas (e outras beneficiadas)
face aos regulamentos que vigoraram até este torneio em particular?
2) Terá sido uma coincidência que todas as equipas do grupo
F, o designado “grupo da morte”, tenham ficado pelo caminho nos
oitavos-de-final da prova, ou as exigências competitivas experienciadas durante
o curto período da fase de grupos, em conjugação com o elevado número de jogos
efetuado por grande parte dos jogadores destas seleções ao longo da época, não
tenha de alguma forma contribuído para um rendimento abaixo do esperado?
Organização da competição por diversas cidades-anfitriãs europeias
Antes do EURO 2020, todas as edições da competição foram disputadas em um ou dois países. Normalmente, o país organizador recebe todas as seleções apuradas; porém, em caso de organização conjunta, os jogos são realizados em dois países, conforme aconteceu em 2012 na Polónia e na Ucrânia. Para a prova que agora decorre, a UEFA tomou a pioneira decisão de dispersar os jogos por 11 cidades-anfitriãs de países diferentes: Amesterdão (Países Baixos), Baku (Azerbaijão), Bucareste (Roménia), Budapeste (Hungria), Copenhaga (Dinamarca), Glasgow (Escócia), Londres (Inglaterra), Munique (Alemanha), Roma (Itália), São Petersburgo (Rússia) e Sevilha (Espanha).
De acordo com a UEFA, a dispersão do EURO 2020 pelo território europeu foi a melhor solução, de modo a facilitar mudanças caso algum problema sanitário surja numa das cidades-anfitriãs devido aos tempos pandémicos que vivemos. No intuito de acautelar imponderáveis sanitários, esta medida foi bem pensada pela UEFA, no entanto, não se devia ter ignorado um fenómeno bem documentado associado à localização do jogo: o “efeito da vantagem de jogar em casa” (home advantage effect). Este constructo traduz-se na obtenção de melhores resultados desportivos quando um atleta ou equipa compete no seu estádio ou arena, comparativamente a quando o faz no reduto do(s) oponente(s) e é originado por uma rede complexa de fatores: suporte do público, familiaridade com o estádio/arena, territorialidade, efeitos da viagem, parcialidade da equipa de arbitragem, etc. (Pollard, 2008).
Em especial no futebol, 57–62% dos pontos conquistados
nas principais ligas europeias de clubes acontecem na condição de visitado,
i.e., em “casa” (Almeida & Volossovitch, 2017; Lago-Peñas et al., 2016;
Leite & Pollard, 2018), enquanto nas fases de qualificação para o Campeonato
do Mundo da FIFA a magnitude do efeito varia entre os 56 e os 69% (Pollard
& Armatas, 2017). A propósito do EURO 2020, 24 jogos da fase de grupos ocorreram
com equipas visitadas/visitantes e 12 foram realizados em circunstâncias
neutras. A tabela 1 mostra a distribuição dos resultados finais dos 24 jogos
realizados com uma equipa a jogar em “casa”.
Tabela 1. Frequências absolutas e
relativas de vitórias, empates e derrotas em “casa” na fase de grupos do EURO
2020.
Independentemente da qualidade das equipas, aspeto absolutamente fulcral para o resultado desportivo, podemos verificar que, em cerca de 71% dos jogos, a equipa visitada não saiu derrotada no decurso da fase de grupos, uma evidência inequívoca que reforça a relevância do fator “casa” na obtenção de sucesso em competições de futebol de elite. Por si só, este já constitui um fator de desigualdade em relação a campeonatos europeus prévios, mas não nos fiquemos por aqui. Em cada cidade-anfitriã, o número de adeptos permitidos nos estádios diferiu em função da situação epidemiológica vigente em cada país. Se, por exemplo, em Glasgow houve um total de 9847 espetadores no estádio para assistir ao jogo entre Escócia e República Checa, em Budapeste, a Hungria disputou os jogos contra Portugal e Franca, com 55662 e 55998 espetadores, respetivamente. Embora nem todas as investigações científicas tenham produzido conclusões unânimes neste âmbito, alguns estudos demonstraram a existência de uma relação positiva entre o número de espetadores nos estádios e a magnitude da vantagem de jogar em casa (Goumas, 2013; Pollard & Armatas, 2017; Ponzo & Scoppa, 2018), o que aumenta um pouco mais a controvérsia em torno deste novo formato implementado pela UEFA.
Depois, há ainda que considerar os efeitos das viagens. Em
jogos da fase de qualificação para Campeonatos do Mundo da FIFA, Pollard e
Armatas (2017) reportaram um decréscimo significativo de 0.05 pontos/jogo por
cada fuso horário atravessado pela equipa visitante. Outras investigações
mostraram um aumento da magnitude da vantagem de jogar em casa quando a equipa
visitante viajou longas distâncias (e.g., ≥ 4000 km) (Goumas, 2014; Pollard et
al., 2008). A verdade é que nem todas as seleções mantiveram as mesmas rotinas
de um jogo para outro no EURO 2020 (tabela 2). Se a Inglaterra disputou os 4
jogos que fez até ao momento em Londres (Wembley), tal como a Alemanha, a
Dinamarca, a Espanha, a Itália e os Países Baixos não saíram de Munique,
Copenhaga, Sevilha, Roma e Amesterdão, respetivamente, durante a fase de grupos,
a seleção da Suíça, a título de exemplo, teve de viajar mais de 12000 km entre
Roma e Baku. Ainda que não determine explicitamente a classificação final no
evento, este é outro fator que não se coaduna com a igualdade e o respeito, que
tanto a UEFA tem vindo a incitar, pelos principais intervenientes no jogo.
Tabela 2. Número de jogos
disputados por cada seleção em "casa", em terreno neutro e fora, incluindo a fase de
grupos e os oitavos-de-final do EURO 2020.
Considerações finais
“Tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias”. É compreensível que a UEFA fizesse algo de diferente para lidar com a pandemia da COVID-19, se bem que as medidas ora discutidas avançaram muito antes da propagação do vírus na Europa. Por um lado, é admissível que a dispersão do evento por diferentes cidades-anfitriãs possibilite uma resposta mais eficaz a eventuais crises sanitárias; por outro lado, é espantoso que a UEFA não tenha equacionado o historial recente das seleções apuradas no ordenamento dos potes, nem a importância que o efeito ancestral da vantagem de jogar em casa pode ter no desfecho do torneio.
Em edições anteriores, apenas os países organizadores
puderam usufruir do fator “casa” e as distâncias percorridas por cada seleção,
além de mais uniformes, foram substancialmente mais curtas. Por isso, a campanha de
promoção do respeito #EqualGame surge conspurcada por uma série de decisões que
primou por tornar o campo inclinado neste EURO 2020: o #(un)EqualGame. O
respeito conquista-se e incentiva-se quando há uma convergência óbvia entre
aquilo que se apregoa e o que se executa. Neste sentido, a UEFA pecou nas três
dimensões do conceito de respeito: pela própria entidade, ao não ser coerente
nas suas ações; pelo outro, ao fomentar um jogo desigual entre as diversas seleções;
pelo contexto, ao ignorar o historial recente de cada equipa nacional, bem como
o vasto leque de evidências científicas sobre o fator “casa”, na tomada de
decisões. Na minha perspetiva, o que fica deste evento competitivo faz jus a um
conhecido provérbio português: “de boas intenções está o inferno cheio”.
Referências
Almeida, C. H., & Volossovitch, A.
(2017). Home advantage in Portuguese football: Effects
of level of competition and mid-term trends. International Journal of
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https://doi.org/10.1080/24748668.2017.1331574
Goumas, C. (2013).
Modelling home advantage in sports: A new approach. International Journal of
Performance Analysis in Sport, 13(2), 428–439.
https://doi.org/10.1080/24748668.2013.11868659
Goumas, C. (2014). Home
advantage in Australian soccer. Journal of Science and Medicine in Sport, 17(1),
119–123. https://doi.org/10.1016/j.jsams.2013.02.014
Lago-Peñas, C., Gómez-Ruano, M.,
Megias-Navarro, D., & Pollard, R. (2016). Home
advantage in football: Examining the effect of scoring first on match outcome
in the five major European leagues. International Journal of Performance
Analysis in Sport, 16(2), 411–421.
https://doi.org/10.1080/24748668.2016.11868897
Leite, W., & Pollard, R. (2018).
International comparison of differences in home advantage between level 1 and
level 2 of domestic football leagues. German Journal of Exercise and Sport
Research, 48(2), 271–277. https://doi.org/10.1007/s12662-018-0507-2
Pollard,
R. (2008). Home advantage in football: A current review of an unsolved puzzle. The
Open Sports Sciences Journal, 1, 12–14. https://doi.org/10.2174/1875399X00801010012
Pollard,
R., & Armatas, V. (2017). Factors affecting home advantage in football
World Cup qualification. International Journal of Performance Analysis in
Sport, 17(1-2), 121–135. https://doi.org/10.1080/24748668.2017.1304031
Pollard, R., Silva, C. D., &
Medeiros, N. C. (2008). Home advantage in football in
Brazil: Differences between teams and the effects of distance traveled. Brazilian
Journal of Soccer and Science, 1(1), 3–10.
Ponzo,
M., & Scoppa, V. (2018). Does the home advantage depend on crowd support?
Evidence from same-stadium derbies. Journal of Sports Economics, 19(4),
562–582. https://doi.org/10.1177/1527002516665794
UEFA (2017). #Equalgame. https://pt.uefa.com/insideuefa/social-responsibility/respect/
P.S. – Há duas semanas, a UEFA comunicou a suspensão da regra do “golo fora” nas competições de clubes que organiza. Apesar de a deliberação não ter sido consensual no seio do comité técnico da entidade, passou. Numa era em que treinadores e outros profissionais do treino alertam para a necessidade de haver um maior respeito pela integridade física e psicoemocional dos jogadores, devido à exposição regular a calendários anuais altamente congestionados de jogos, a UEFA volta a ignorar os apelos dos agentes no terreno e suspende a regra do “golo fora”. Consequências? Estilos de jogo mais defensivos adotados pelas equipas visitantes, que não beneficiarão tanto em marcar um ou mais golos fora e, sobretudo, aumento da carga física e emocional fruto de mais tempo de jogo, através de prolongamentos e desempates por grandes penalidades. Tudo em prol do espetáculo e do #EqualGame.
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