28/10/2021

Artigo do mês #22 – outubro 2021 | Quantidade e qualidade do sono em jovens jogadores de um clube profissional de futebol

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 22 -

Autores: Merayo, A., Gallego, J. M., sans, O., Capdevila, L., Iranzo, A., Sugimoto, D., & Rodas, G.

País: Espanha

Data de publicação: 17-agosto-2021

Título: Quantity and quality of sleep in young players of a professional football club

Revista: Science and Medicine in Football

Referência: Merayo, A., Gallego, J. M., sans, O., Capdevila, L., Iranzo, A., Sugimoto, D., & Rodas, G. (2021). Quantity and quality of sleep in young players of a professional football club. Science and Medicine in Football. https://doi.org/10.1080/24733938.2021.1962541

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 22 – outubro de 2021.

 

Apresentação do problema

A adequação da quantidade e da qualidade do sono acarreta benefícios, contribuindo para otimizar as performances física e cognitiva e para manter o bem-estar emocional (Simpson et al., 2017; Wheaton et al., 2011). Nos últimos tempos, os atletas e os treinadores têm considerado o sono como um dos pilares da performance desportiva de alto nível, mas a verdade é que alguns atletas não cumprem as recomendações dos especialistas (Halson & Juliff, 2017; Malhotra, 2017). Há um corpo de evidências crescente que aponta que o sono tem um impacto positivo em fatores como as performances física e neurocognitiva, a incidência de lesões, a regulação do humor, a função imunitária e o peso corporal, mas também é uma das estratégias de recuperação mais efetivas devido aos seus efeitos fisiológicos de regeneração (Halson, 2008). 

Por sua vez, diversos estudos têm demonstrado que a restrição parcial ou total de sono, tal como o sono de baixa qualidade, influenciam negativamente a performance desportiva, surgindo associados a perda de resistência (Fullagar et al., 2015; Simpson et al., 2017), redução da potência anaeróbia (Skein et al., 2011; Watson, 2017), decréscimos de precisão e tempo de reação em desportos como o basquetebol e o ténis (Suppiah et al., 2016; Watson, 2017) e ao aumento do risco de lesão em atletas (Milewski et al., 2014; von Rosen et al., 2017). A um nível cognitivo-emocional, dormir mal tem sido associado a reduções da capacidade de aprendizagem e das funções executivas, que são aspetos-chave para o desenvolvimento tático nas sessões de treino (Malhotra, 2017; Pallesen et al., 2017; Watson et al., 2017). A própria regulação do humor fica comprometida, concorrendo para um aumento de stress, sentimento de frustração, apatia, irritabilidade e diminuição da autoconfiança (Venter, 2012). 

Apesar de todo o conhecimento acerca da importância do sono, os atletas tendem a apresentar déficits, em termos de quantidade e qualidade, comparativamente à população geral, considerando as variáveis idade e género (Halson & Juliff, 2017; Watson, 2017). As barreiras que a privação do sono gera são especialmente válidas para jovens atletas, pois têm de compatibilizar os desempenhos desportivos com o rendimento académico. Esta problemática é mais preocupante em adolescentes, uma vez que têm uma elevada propensão para o designado “atraso da fase de mudança” (Sateia, 2014), que consiste na tendência em ir para a cama tarde e a necessidade de levantar cedo para ir para a escola, resultando na privação de sono. Além de todos os efeitos negativos já mencionados que a restrição de sono provoca, sabe-se que prejudica ainda o aproveitamento académico e aumenta a tendência para o abandono escolar (Malhotra, 2017). 

Posto isto, há a necessidade premente de investigar o impacto negativo que a restrição de sono pode ter em adolescentes que combinam a vida académica com o desporto competitivo. O objetivo do estudo consistiu em avaliar a quantidade e a qualidade do sono em jovens futebolistas pertencentes aos quadros de um clube profissional. Adicionalmente, os autores analisaram as relações entre a quantidade e a qualidade do sono e os estados emocionais e o aproveitamento escolar dos jogadores.

 

Métodos

Participantes: os participantes do estudo foram classificados por género e faixa etária. A coorte envolveu 261 jogadores de futebol (201 do género masculino e 60 do género feminino) de todos os escalões jovens de um clube profissional (até à equipa de reservas): o FC Barcelona (figura 2). As idades dos participantes variaram entre os 7 e os 25 anos (média = 13.04; desvio-padrão = 3.16). Os indivíduos foram agrupados em três faixas etárias, de acordo as recomendações da American National Sleep Foundation para estudos envolvendo a análise do sono: 7–11, 12–15 e 16–25 anos. O estudo decorreu na época 2018/2019 e os dados foram tratados de forma anónima, respeitando os procedimentos éticos e de proteção dos dados do clube.

 

Figura 2. La Masia, a academia do FC Barcelona (fonte: mundodeportivo.com; foto não publicada pelos autores).

 

Respostas aos questionários: os jogadores e os encarregados de educação de crianças com idade ≤ 12 anos responderam aos questionários através de uma plataforma digital online. Vinte e cinco jogadores que não dispunham de dispositivos eletrónicos responderam aos questionários em papel, sendo os dados posteriormente inseridos na plataforma online pelo investigador principal. O tempo necessário para preencher os três questionários variou entre 20–30 minutos. Todos os questionários foram preenchidos por todos os participantes no mesmo dia, sendo que o preenchimento do diário de sono continuou nos 4 dias seguintes (5 entradas por indivíduo no total). 

Avaliação da qualidade do sono: o questionário Sleep Disturbance Scale in Children (SDSC) foi aplicado para avaliar a qualidade do sono dos participantes. Este questionário é composto por 27 itens, com questões relativas a 6 fatores: início e manutenção do sono, dores de crescimento, distúrbios de respiração no sono, distúrbios na transição do sono para o despertar, sonolência excessiva durante o dia e hiperidrose (suor excessivo) no sono. As respostas foram expressas em graus de concordância com diversas frases, numa escala Likert 5 pontos (1 = Nunca; 5 = Sempre), em que scores mais elevados indicam menor qualidade do sono. 

Avaliação da quantidade de sono: a quantidade de sono foi medida através de um registo diário do sono, preenchido pelos participantes de manhã logo após acordar. Os participantes reportaram a hora estimada de início do sono, o número de vezes que acordaram durante a noite e, se tal sucedeu, o tempo e o motivo por que interromperam o sono. As horas de sono foram calculadas com base no tempo estimado do adormecer e do acordar, subtraindo a duração das interrupções noturnas, mais a duração da(s) sesta(s) diurna(s). As horas de sono foram convertidas para uma escala decimal. Os participantes preencheram o diário de sono na sua residência habitual. 

Avaliação do bem-estar psicológico: foi medido através de dois indicadores. Primeiro, foi aplicado o Positive and Negative Affect Scale (PANAS, Watson, 1888), que consiste em 10 itens (5 de valência positiva e 5 de valência negativa) sobre como os jogadores se sentiram nas 3–4 semanas anteriores, medidos através de uma escala Likert 7 pontos. Segundo, foi proposta a Subjective Vitality Scale (SVS), ferramenta que tem sido validada para avaliar dinamicamente o bem-estar (García, 2019). Este questionário é composto por 7 itens, referentes ao entusiasmo e a sentimentos de vivacidade e energia, sendo as respostas anotadas numa escala Likert 7 pontos; valores mais altos correspondem a maior vitalidade. 

Avaliação do desempenho académico: as classificações do primeiro trimestre do ano letivo (finalizado em dezembro) foram facultadas pelos participantes ou pelos encarregados de educação (familiares). Este trimestre correspondeu ao período de aplicação dos questionários. É de referir que o sistema de ensino espanhol atribui classificações até 10 pontos; valores inferiores a 5 são considerados negativos. 

Análise estatística: os dados foram descritos como média ± desvios-padrão, para números absolutos ou percentagens. A normalidade dos parâmetros quantitativos foi verificada através dos testes Omnibus D’Agostino-Pearson e Kolmogorov-Smirnov. As variáveis sem distribuição normal foram normalizadas para posterior análise. Os dados paramétricos foram comparados através de ANOVA de uma via e testes post-hoc de Tukey. A relação entre as variáveis quantitativas do estudo foi aferida através de correlações de Pearson. A análise estatística foi executada nos softwares SPSS (v. 25.0) e SAS (v. 9.1.3) e o nível de significância foi predefinido para p ≤ 0.05.

 

Principais resultados

 

·      Quantidade de sono

A análise dos diários de sono mostrou que o número médio de horas de sono foi significativamente inferior às recomendações internacionais da American National Sleep Foundation: 9–11 horas para crianças/jovens entre os 6 e os 13 anos; 8–10 horas para adolescentes entre os 14 e os 17 anos; 7–9 horas para jovens adultos entre os 18 e os 25 anos. Cerca de 70% dos participantes dormiram menos do que recomendado. O número de horas reportado no questionário SDSC foi significativamente mais baixo comparando com os diários dos participantes (figura 3). Houve uma correlação negativa entre o número médio de horas de sono e a idade dos participantes, o que demonstra que, à medida que a idade dos jogadores avança, estes tendem a dormir menos horas.

 

Figura 3. Número médio de horas de sono apurado pelo questionário SDSC e pelo diário de sono, por faixa etária. a e b: diferenças significativas para o grupo 7–11 anos (p < 0.001) (Merayo et al., 2021).

 

·      Qualidade do sono

Para todas as faixas etárias, os autores verificaram que os resultados médios de qualidade do sono excederam os 39 pontos, valor de corte para a suspeição de desordens de sono (i.e., problemas relativos à qualidade e quantidade de sono) (Bruni et al., 1996). A este nível, quanto mais elevados forem os resultados apurados no questionário SDSC, pior é a qualidade do sono. Os valores obtidos para participantes com idades ≥ 12 anos foram significativamente superiores ao constatado para a faixa etária 7–11 anos, indicando pior qualidade de sono em jogadores mais velhos (figura 4). Ademais, menos horas a dormir está correlacionado com pior qualidade do sono, o que foi mais notório nos jogadores mais velhos.

 

Figura 4. Resultados da qualidade do sono obtidos através do questionário SDSC para os diferentes grupos etários. a: diferenças significativas para o grupo 7–11 anos (p < 0.001) (Merayo et al., 2021).

 

·      Associação entre bem-estar e quantidade e qualidade do sono

Não foi encontrada uma relação entre mais horas e melhor qualidade de sono com humor positivo ou perceção de bem-estar reportados pelos participantes.

 

·      Associação entre desempenho académico e quantidade e qualidade do sono

No global, jogadores que tiveram maior quantidade e melhor qualidade de sono obtiveram um melhor aproveitamento escolar (i.e., classificação média das diversas disciplinas).

 

Aplicações práticas

É importante que os clubes e as equipas técnicas garantam que crianças e jovens jogadores adquiram e mantenham bons hábitos de sono, pois trata-se de uma rotina diária que concorre para a manifestação de uma mentalidade mais positiva e competitiva. 

Houve uma relação evidente entre quantidade e qualidade do sono nas diversas faixas etárias investigadas. Uma vez que dormir é fundamental para o desenvolvimento físico e mental de indivíduos com idade < 18 anos, os clubes devem promover ações de sensibilização/formação para crianças/jovens, encarregados de educação e tutores, por forma a que boas rotinas de sono sejam implementadas em casa ou no centro/academia de treino. 

Internamente, os clubes/escolas de futebol devem criar, ou adotar, e utilizar ferramentas e técnicas que permitam otimizar o sono e o descanso das suas crianças/jovens. O recurso a manuais de higiene do sono, diários de sono e vídeos educativos pode ser bastante útil para incrementar a quantidade e a qualidade do sono em jovens que aliam a vida académica às exigências competitivas do desporto federado. A contratação de um “conselheiro de sono” pode ser benéfica para o diagnóstico e para o desenvolvimento de estratégias específicas para melhorar o perfil de sono de atletas com distúrbios neste âmbito.

 

Conclusão

As crianças e os jovens jogadores pertencentes a um clube profissional eclético dormiram menos do que o recomendado pelas linhas de orientação internacionais, o que teve um impacto negativo no desempenho escolar. Aparentemente, o sono é uma variável com uma influência considerável no aproveitamento académico, mas que também pode abranger a dimensão física. No futuro seria importante perceber se a otimização da quantidade e da qualidade do sono melhora o bem-estar psicológico e as classificações escolares. 

Este estudo constituiu um primeiro passo para alertar crianças/jovens, familiares e profissionais do treino para a importância de se cuidar da quantidade e da qualidade do sono no contexto do desporto infantojuvenil. Algumas medidas foram propostas no sentido de se obter uma perspetiva geral sobre como os jogadores dormem e, com isso, ser possível desenvolver estratégias para mitigar os efeitos negativos da restrição do sono em idades jovens. Por último, são necessários mais estudos para melhor compreender os padrões de sono inerentes a performances desportivas de excelência e para examinar a viabilidade e a adesão aos hábitos de sono recomendados para crianças e jovens desportistas.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

15/10/2021

Conto "Além do horizonte" na coletânea Liberdade (2020)

Corria o mês de fevereiro de 2020 quando o Município de Monchique lançou a primeira edição do Prémio Artístico e Literário de Monchique. De entre as cinco categorias de participação possíveis, e julgando estarem asseguradas condições legais para concorrer, submeti o conto “Além do horizonte” na categoria “prosa”. 

Independentemente do resultado do concurso, do qual fui excluído pelo júri e que, em sede própria e a quem de direito, tive oportunidade de manifestar a minha discordância, o conto recebeu uma menção honrosa, com direito a publicação na coletânea Liberdade (1.ª edição, 2020; figura 1), que reúne alguns dos trabalhos que participaram nas diversas categorias: prosa, escultura, fotografia e pintura (poesia não teve trabalhos a concurso).

 

Figura 1. Capa e contracapa da coletânea Liberdade (2020), edição do Município de Monchique.

 

Pessoalmente, deu-me um gozo enorme escrever este conto, não apenas por abordar a liberdade em tempos de confinamento, mas, essencialmente, porque me permitiu conjeturar algumas particularidades e tradições de Monchique em tempos que não tive ocasião de vivenciar. Também não podia deixar de parte a componente filosófica que preenche os entretantos da nossa existência. Aqui, no Linha de Passe, transcrevo o primeiro parágrafo da prosa:

 

Poderia escrever que esta é a história do senhor Jerónimo, mas isso seria mais um dos incontáveis lugares-comuns que encontramos entranhados no quotidiano: os dias repetidos à exaustão, com contornos mais ou menos retos, mais ou menos monótonos. O assunto que vos trago não deveria ser corriqueiro ou desprezível para a tão aclamada humanidade, embora o que reste dela seja apenas alguns espasmos esporádicos que ocorrem sem aviso prévio. A maioria de nós goza o «dado como adquirido» sem esforço, dor, paixão ou memória; um conjunto de intenções, ações e conquistas rebaixado ao valor da indiferença. Porém, as forças que nos impulsionaram para o que somos, ou que nos impelem para o que seremos, nada têm de trivial.

 

Se, por obra do acaso ou da intenção, o livro vos for parar às mãos, espero que o emaranhado de palavras que escrevi vos faça sentido e que a imaginação vos leve “além do horizonte”. 

Expresso os meus sinceros parabéns a todos os participantes e, em especial, aos vencedores do prémio. Faço ainda votos para que o Município de Monchique continue a incentivar a produção cultural local, com esta ou outras iniciativas do género.