31/01/2023

Artigo do mês #37 – janeiro 2023 | Planear o microciclo no futebol de elite: descansar ou não descansar?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 37 -

Autores: Buchheit, M., Settembre, M., Hader, K., & McHugh, D.

País: França

Data de publicação: 3-janeiro-2023

Título: Planning the microcycle in elite football: To rest or not to rest?

Referência: Buchheit, M., Settembre, M., Hader, K., & McHugh, D. (2023). Planning the microcycle in elite football: To rest or not to rest? International Journal of Sports Physiology and Performance, 1–7. Advanced online publication. https://doi.org/10.1123/ijspp.2022-0146

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 37 – janeiro de 2023.

 

Apresentação do problema

O planeamento do microciclo no futebol de elite é uma tarefa complexa (Buchheit et al., 2021). Embora já haja alguns dados informativos sobre a prática de planear no futebol (e.g., Chena et al., 2021; Clemente et al., 2019; Mateus et al., 2016), estes são, geralmente, (1) quantitativos e representativos de um único clube ou (2) limitados a orientações metodológicas, tais como as inicialmente desenvolvidas por R. Verheijen e, posteriormente, pelo FC Barcelona (Tarragó et al., 2019). 

Mais recentemente, e no intuito de melhor se perceber o racional por detrás da seleção dos conteúdos a desenvolver e do planeamento efetuado, Buchheit et al. (2021) aplicaram um questionário a 100 profissionais a trabalhar no futebol de elite. A maioria dos respondentes confirmaram que a preocupação de equilibrar o trabalho e a recuperação de um dia para o seguinte, no decurso do microciclo, era (muito provavelmente) necessária para promover a saúde e otimizar o desempenho. Apesar disso, ainda não se sabe se fazer descansar completamente os jogadores por 1 ou 2 dias afeta a taxa de lesões no mesmo microciclo, incluindo o jogo competitivo seguinte. A questão de qual o melhor dia para dar folga, ou mesmo se compensa dar folga no microciclo (figura 2), é um aspeto que não foi investigado cientificamente, não obstante a sua enorme importância em termos da recuperação, da compensação e da dinâmica psicossocial da equipa (Buchheit et al., 2021; Buchheit, 2017).


Figura 2. Na gestão do risco de lesão, é importante programar dias de folga num microciclo de treino no futebol profissional? (imagem não publicada pelos autores)

 

De modo a produzir novas evidências sobre esta matéria, os autores examinaram a associação entre o planeamento dos dias de folga e a taxa de lesões, recorrendo a dados retrospetivos de 18 equipas de elite que disputaram ligas de topo, como a Premier League (Inglaterra), Serie A (Itália), Bundesliga (Alemanha), Premiership (Escócia), Major League Soccer (E. U. A.) e Eredivisie (Países Baixos). Além disso, também foi averiguado o timing dos dias de folga em microciclos de diferentes extensões (de 3 a 8 dias) e, depois, a influência do fluxo prévio de jogos nas associações suprarreferidas. Ainda que o desenho deste estudo observacional não permita o estabelecimento de relações causais, decerto que as informações obtidas poderão ajudar os treinadores e a equipa técnica a otimizar o planeamento dos seus microciclos, em função do contexto no qual estão inseridos.

 

Métodos

Amostra: os dados foram extraídos de 18 equipas pertencentes às ligas de topo de Inglaterra (Premier League), Itália (Serie A), Alemanha (Bundesliga), Escócia (Premiership), E. U. A. (Major League Soccer) e Países Baixos (Eredivisie), entre janeiro de 2018 e dezembro de 2021. A amostra final incluiu um total de 56 épocas (a mesma equipa pode ter contribuído com dados de mais do que uma época), 1578 jogadores, 2865 lesões, 2859 jogos domésticos e 12939 sessões de treino diárias. 

Recolha de dados: os detalhes acerca das características dos jogadores, da participação em treinos e jogos e das lesões ocorridas foram retiradas de uma base de dados online (i.e., Kitman Labs platform Dublin, Irlanda) frequentemente usada pelos clubes de futebol envolvidos no estudo. O staff médico das equipas introduz este tipo de informação na plataforma, como parte da sua rotina de gestão diária, incluindo variáveis como datas, tipo e severidade da lesão. A severidade da lesão foi apurada em função dos dias de treino/competição perdidos. A exposição ao treino e à competição (e.g., duração e dados de GPS) foi igualmente inserida na plataforma. Os procedimentos foram rigorosamente os mesmos para todos os clubes. 

Preparação dos dados: a extensão dos microciclos foi definida pelo número de dias entre dois jogos competitivos, iniciando no dia após o primeiro jogo e terminando com o jogo seguinte. Um microciclo de 3 dias (3-d turnaround) implica, por exemplo, jogar num domingo e, posteriormente, na quarta-feira seguinte. Considerando um total de 1871 microciclos, os mais curtos envolveram 3 dias e os mais longos 8 dias. Os microciclos com 3 dias foram, também, considerados como congestionados. Assumiu-se como “dia de folga” um dia sem jogo, em que, para os 15 principais jogadores da equipa (i.e., os mais utilizados no decurso dessa época), não foi registada na plataforma qualquer exposição a atividades de treino. Os padrões de distribuição dos dias de folga foram analisados para cada microciclo. Os dias com exposição física foram codificados como “x” e os dias de folga como “o”. Foram exploradas todas as combinações possíveis em função da extensão do microciclo, contudo, somente as sequências com ≥10 ocorrências por extensão de microciclo foram incluídas na análise. Uma lesão é geralmente definida como uma mazela ocorrida em treino ou em competição e que impede um jogador de realizar treino ou jogo durante um ou mais dias após a ocorrência (Bahr et al., 2020). A investigação focou-se apenas nas lesões sem contacto que tiveram um impacto substancial na participação em treino ou em jogo competitivo, i.e., só foram consideradas lesões sem contacto que resultaram, no mínimo, em 3 dias perdidos de treino/competição (≥3-day time loss). No total, 511 jogadores principais estiveram envolvidos em 965 lesões com tempo perdido, incluindo 559 lesões sem contacto. 

Análise dos dados: os dados foram analisados ao longo de 3 etapas consecutivas, de uma perspetiva relacional macro para outra micro:

 

1.  Dia de folga por si e taxa de lesão: aferir potenciais diferenças entre as taxas de lesão em treino e em jogo, em função da presença/ausência de, pelo menos, um dia de folga no microciclo (no total e por extensão do microciclo);

2.  Presença de jogos consecutivos (calendário congestionado: 0, 1, ou ≥2 de microciclo de 3 dias) antes do microciclo analisado, incluindo, pelo menos, um dia de folga, ou sem folga, e risco de lesão; 

3.  Distribuição (i.e., quando) dos dias de folga para cada extensão de microciclo e a sua associação com lesões em treino ou em jogo (neste nível, as taxas de lesão foram apresentadas tanto para o microciclo inteiro, como apenas para o número de dias de treino).

 

Análise estatística: os resultados foram apresentados como médias e intervalos de confiança de 95%. A existência de diferenças substanciais foi assumida quando os intervalos de confiança não se sobrepuseram (Cumming, 2018). O d de Cohen foi também calculado para verificar a magnitude das diferenças, tendo por base os seguintes limites: 0.2 (pequena); 0.6 (moderada); 1.2 (grande); 2 (muito grande) (Hopkins et al., 2009).

 

Principais resultados

A taxa de lesão foi 5 vezes mais elevada nos jogos competitivos do que nas sessões de treino, sem diferenças quanto à extensão do microciclo, excetuando para o microciclo de 5 dias, em que foi evidenciado um menor número de lesões em relação aos outros microciclos. 

As diferenças entre microciclos com e sem dia de folga, quanto às taxas de lesão em treino e em jogo, foram inconclusivas. Por sua vez, o número de microciclos congestionados (de 3 dias) que precedeu os microciclos de interesse não apresentou uma relação evidente com as taxas de lesão em treino ou em jogo, independentemente da sua extensão e de incluírem ou não dia de folga. 

Para microciclos até 6 dias, a prática mais frequente foi treinar todos os dias do microciclo (30%–80%, havendo um decréscimo de dias de folga à medida que os microciclos ficam mais curtos). Nestes microciclos, caso tenha sido programado um dia de folga, o mesmo ocorreu mais frequentemente logo após o jogo competitivo: Match Day (MD)+1. Em relação aos microciclos mais longos (7 e 8 dias), a prática mais comum foi dar um dia de folga em MD+1, seguido de treinar todos os dias. Conceder dia de folga em MD+2 aconteceu 44 vezes nos microciclos de 7 dias (10%) e 12 vezes nos microciclos de 8 dias (9%). 

Considerado as taxas de lesão em treino e em jogo como um todo (figura 3), e focando-nos apenas nos 3 tipos mais frequentes de planeamento do microciclo (i.e., sem dia de folga, um dia de folga em MD+1 ou em MD+2), as sequências incluindo um dia de folga em MD+2 (x/o/…) estiveram associadas a uma redução das taxas de lesão por dia, comparativamente às outras duas sequências (sem folga e dia de folga em MD+1), nos microciclos de 3 e de 7 dias (dimensão de efeito moderada a muito grande). As diferenças entre as 3 principais sequências não foram claras para as outras extensões de microciclo.

 

Figura 3. Média total (com intervalo de confiança a 95%) das taxas de lesão sem contacto por microciclo (painel superior) e das taxas totais de lesão sem contacto por treino ou por jogo (painel inferior), em função das 3 principais sequências: sem folga (x/x/…), um dia de folga em MD+1 (o/x/…) e um dia de folga em MD+2 (x/o/…). *,** diferenças moderadas a grandes, respetivamente, em relação a microciclo sem folga. #,## diferenças moderadas a grandes, respetivamente, em relação a microciclos com um dia de folga em MD+1 (Buchheit et al., 2023).

 

Aplicações práticas

A utilização de um vasto conjunto de dados no futebol de elite permitiu comprovar que, apesar de a opção de introduzir um dia de folga por si não demonstrar associações claras com a ocorrência de lesões sem contacto, a sua programação (i.e., quando) no microciclo relevou associações positivas e dignas de registo. Na prática, pelo menos em microciclos com 3 e 7 dias de extensão, propor um dia de folga em MD+2 esteve associado a um decréscimo substancial (2 a 3 vezes) na taxa de lesões contraídas em treino e em jogo, comparativamente a não ter dia de folga ou tê-lo mais cedo, em MD+1. 

Embora haja sempre muitas formas de planear um microciclo, treinar em MD+1 e ter um dia de folga em MD+2 pode providenciar diversas vantagens, tanto ao nível do desempenho competitivo, como no que respeita à incidência de lesão sem contacto. Propor treino em MD+1 permite, por um lado, que os titulares/jogadores mais utilizados possam receber tratamento e realizar uma sessão de recuperação adequada e, por outro lado, que os suplentes não utilizados ou pouco utilizados tenham a oportunidade de treinar em zonas de intensidade elevada para compensar o esforço não realizado em competição. Esta opção metodológica faz com que todos os elementos do plantel “fechem o microciclo anterior” e possam descansar no dia seguinte (MD+2), antes de regressarem “frescos” para um novo ciclo de treino em MD+3 até ao jogo competitivo seguinte. 

Ao invés, ao se optar por um dia de folga em MD+1, reduzem-se e, eventualmente, adiam-se as oportunidades para cuidar da recuperação dos titulares/mais utilizados e para nivelar o esforço realizado pelos suplentes utilizados/não utilizados após o jogo anterior. A consequência desta opção é que alguns jogadores titulares/mais utilizados podem ainda necessitar de tratamento/cuidados em MD+2 e podem, por isso, não estar logo disponíveis para treinar; já os suplentes correm o risco de experienciar um regime de treino leve durante 2 ou 3 dias consecutivos (carga leve em MD-1, 0–30 minutos de jogo e dia de folga em MD+1), o que perturba uma dinâmica de treino que se quer otimal, limitando a adaptação global ao esforço. 

A estrutura de microciclo associada às menores taxas de lesão sem contacto não foi a mais comum na amostra recolhida de diversos clubes profissionais de topo. Os treinadores podem achar que a opção de “descansar 2 dias após o jogo” (MD+2) não constitui uma alternativa pertinente para o contexto em que estão inseridos, apesar de parecer ser a estratégia ideal, do ponto de vista fisiológico e biológico, no papel. Também é verdade que o argumento “lesão” pode não constituir uma prioridade principal para os treinadores no ato de planear o microciclo. Há outros aspetos que podem ser priorizados em detrimento de uma eventual redução na incidência de lesão: (1) a dinâmica psicossocial da equipa (jogadores geralmente preferem o dia de folga logo após o jogo, MD+1); (2) a necessidade de promover cargas de treino mais fortes nos jogadores (pouco descanso ou inexistência de dias de folga durante a pré-época ou no regresso de pausa para férias), ou de preparar taticamente um jogo muito importante; (3) a interferência de outros constrangimentos externos, como, por exemplo, realização de viagens longas.

 

Conclusão

De acordo com o conhecimento dos autores, este foi o primeiro estudo que analisou a associação entre a programação de dias de folga no microciclo de treino de equipas profissionais e as taxas de lesão em treino e em jogo. O resultado mais sonante evidenciou que conceder um dia de folga em MD+2 (2 dias após o jogo) esteve associado com uma redução moderada a grande de lesões sem contacto, em particular, no decurso de microciclos com 3 e 7 dias. Em ocasiões futuras, a investigação deve ainda examinar a carga de treino em cada dia, relativamente a diferentes estratégias de programação das folgas, considerando, também, os diversos tipos de microciclo em termos de extensão.

  

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Physiology and Performance.

Sem comentários: