A
Licenciatura em Ciências do Desporto do Instituto Superior Manuel Teixeira
Gomes (ISMAT) encontra-se a dinamizar, entre 5 e 10 de junho de 2023, a Semana
de Desporto do ISMAT 2022/2023. Hoje – 8 de junho – foi o dia subordinado
ao Treino Desportivo. De manhã, a direção do curso e os alunos do 3.º Ano
organizaram o Workshop “O treino no futebol moderno”, no qual fui um dos preletores.
Antecipadamente, agradeço à organização pelo convite, aos participantes pela atenção
disponibilizada num feriado e com tempo chuvoso e aos meus colegas Paulo Paixão
e Paulo Duarte, pela partilha de experiências e de conhecimento (figura 1).
Seguidamente, exponho o conteúdo que redigi na preparação da sessão
teórico-prática efetuada. Torço para que seja de alguma forma útil para todos
os interessados na matéria.
Figura 1. Cartaz do 4.º dia da Semana
de Desporto do ISMAT, dedicado ao Treino Desportivo.
Introdução
Há alguns anos, o conceituado treinador português José Mourinho referiu que não acreditava nos “treinos de conjunto” (i.e., situações de 11 versus 11 em campo inteiro, ~100x65m), uma vez que se trata de tarefas de treino generalistas, que pouco ou nada têm de específico, já que não permitem exacerbar os princípios (ou subprincípios) do modelo de jogo a desenvolver (Oliveira et al., 2006). Embora a observação seja legítima e admissível, considerar que um “treino de conjunto” não constitui uma tarefa específica é bastante arrojado e, sobretudo, contradiz o pensamento sistemático empregue pelos professores Carlos Queiroz e Jorge Castelo nas suas propostas para classificar os exercícios de treino no futebol (Castelo, 2004; Queiroz, 1986).
Em primeira instância, importa clarificar o princípio da “especificidade”. Depois, há um outro princípio, proveniente da abordagem da Pedagogia Não Linear, que nos poderá ajudar a desmistificar a noção avançada por Mourinho a propósito dos “treinos de conjunto”; refiro-me ao princípio da “representatividade da tarefa” (Chow, 2013; Deuker et al., 2023). Que princípios são estes? São sinónimos?
Comecemos pela segunda questão: não são sinónimos, embora sejam muitas vezes confundidos nos meandros do treino desportivo. Em última análise, uma má interpretação semântica pode acarretar consequências negativas na estruturação da atividade prática. A “especificidade” é um princípio do treino desportivo que sustenta que um exercício deve, estrutural e funcionalmente, suscitar de modo integrado fatores técnicos, táticos, físicos e psicossociais do desporto em questão (Gray, n.d.; Kasper, 2019). Isso significa que os exercícios propostos na sessão de treino devem solicitar as ações e os sistemas energéticos habitualmente estimulados em situação de jogo formal. Por seu turno, a “representatividade da tarefa” é um princípio da Pedagogia Não Linear que recomenda que os treinadores criem contextos de aprendizagem/treino nos quais os aprendizes/jogadores exploram oportunidades de ação (affordances) e procuram soluções de movimento esperados num dado contexto de desempenho, como, por exemplo, no jogo (Chow, 2013; Deuker et al., 2023; Gray, n.d.).
A
tabela 1 sintetiza, do ponto de vista didático, os conceitos dos princípios da “especificidade
e da “representatividade”.
Tabela
1.
Clarificação conceptual dos princípios da “especificidade” e da
“representatividade na tarefa” aplicados ao treino no futebol moderno.
De acordo com estas definições, um “treino de conjunto” é um exercício específico, pois apresenta um grau de semelhança tremendo com o jogo formal. No entanto, se recordarmos a constatação de Mourinho, entendemos que pode não recriar características-chave passíveis de ser encontradas num determinado contexto de desempenho ou de aprendizagem. Portanto, um exercício com elevado grau de “especificidade” não é necessariamente o mais representativo.
O principal objetivo desta sessão teórico-prática é explicar como é que estes princípios podem ser ponderados, de forma a estabelecer uma relação de complementaridade entre eles no design e na gestão de tarefas práticas, tomando em consideração as exigências do treino no futebol contemporâneo. Para o efeito, serão propostas duas situações-problema fictícias, mas que pretendem reproduzir alguns problemas com que os treinadores se deparam ao longo da época desportiva, incluindo a conceção do processo de treino a partir da avaliação que é feita após compromissos competitivos. Atualmente, as evidências científicas apontam claramente num sentido: exercícios altamente específicos e representativos facilitam a transferência de comportamentos e de competências do treino para o contexto de desempenho, independentemente da idade e do nível de prática (Davids et al., 2013; Deuker et al., 2023; Práxedes et al., 2018).
Situação-problema
n.º 1
1.1.
Contexto situacional
Uma
equipa Sub-19 ascendeu à II Divisão Nacional e entrou recentemente no período
competitivo, perdendo o primeiro jogo da fase regular por 3-0 na condição de
visitante. A equipa técnica registou como prioridade melhorar a etapa de
construção a partir do guarda-redes, pois, no jogo anterior, os jogadores
recorreram muitas vezes a passes longos e perderam invariavelmente os duelos
aéreos e as segundas bolas daí resultantes. Adicionalmente, as avaliações
individual e coletiva realizadas na pré-época deram garantias para a aplicação
de um método de jogo posicional, embora a confiança dos jogadores esteja algo
abalada. Assim, para a primeira sessão do microciclo seguinte, foram definidos
dois objetivos: (1) desenvolver a etapa de construção, a partir de
pontapé de baliza, em condições de pressão defensiva adversária em posições avançadas,
sendo de antever que a equipa oponente jogue em 1-4-2-3-1; (2) fomentar
a confiança dos jogadores na circulação de bola, a fim de encontrarem espaços
livres para progredir em direção às zonas intermédias do terreno de jogo.
1.2.
Exercício de treino
Figura 2. Representação esquemática do jogo reduzido/condicionado Gr+5v4, que visa a resolução das lacunas identificadas na situação-problema n.º 1.
Características estruturais
- Relação numérica: Gr+5v4, i.e. 1 guarda-redes + 2 defesas laterais (2 e 5), 2 defesas centrais (3 e 4) e 1 médio defensivo (6) azuis Versus 1 avançado (9), 2 médios ala (7 e 11) e 1 médio ofensivo (10) brancos.
- Espaço: 40 x 65 m (260 m2 por jogador)
- Duração: 2 x 6’ (1’ recuperação passiva)
- Regras/condições: (1)
equipa azul finaliza numa das 3 mini balizas colocadas na zona
intermédia (40m); (2) se a equipa azul circular a bola pelos 3
corredores de jogo, o golo numa das mini balizas vale a dobrar; (3)
equipa branca, em inferioridade, tem de pressionar para recuperar a bola
e, após fazê-lo, deve finalizar, no máximo, em 15 segundos; (4) quando
há infração, a bola sai do terreno de jogo ou o tempo limite para finalizar é
excedido, o jogo reinicia pela equipa azul através de pontapé de baliza.
Critério de êxito: Em cada 6 minutos de exercício, a equipa azul deve introduzir a bola nas mini balizas, no mínimo, 4 vezes.
Planeamento: (1)
sessão de treino – incluir na Parte Fundamental, imediatamente após a Parte
Preparatória; (2) microciclo – incluir na sessão de segunda-feira, tendo
jogo oficial ao sábado (-5 dias).
Materiais: 1 baliza Fut11; 3 mini balizas; sinalizadores; 5 coletes azuis; 13 bolas T5.
1.3.
Análise do exercício de treino: Aplicação dos princípios da “especificidade” e
da “representatividade da tarefa”
Tendo em consideração as lacunas identificadas em competição urge, por um lado, encorajar comportamentos exploratórios e soluções de movimento associados à etapa de construção de jogo, em particular, a partir de zonas mais defensivas e envolvendo o guarda-redes. Por outro lado, é crucial estimular a confiança dos jogadores na relação com a bola e na criação de sinergias com os companheiros de equipa que jogam nas imediações.
Uma vez que o recurso ao passe longo se revelou infrutífero e desajustado em função das características dos jogadores, a tarefa proposta visa fomentar a adoção do método de jogo posicional, sem, contudo, prescrever ou instruir soluções a priori. A superioridade numérica da equipa azul permite que surjam oportunidades de ação suficientes para a obtenção de sucesso no exercício, o que concorre para a melhoria da confiança dos jogadores na circulação de bola em zonas mais recuadas do campo.
O
princípio da “especificidade” ficou salvaguardado pela estrutura sugerida, que
inclui todos os elementos que dão forma ao jogo de futebol: espaço, tempo,
bola, cooperação, oposição, direcionalidade (baliza(s) para atacar e para
defender), resultado e finalidades estratégico-táticas. A “representatividade
da tarefa” foi equacionada articulando os comportamentos pretendidos com a
estrutura e os princípios preconizados no modelo de jogo da equipa (e.g.,
1-4-3-3, privilegiando o método posicional, com atração da equipa adversária a
um corredor lateral para gerar espaço de progressão noutro corredor de jogo),
mas também inserindo a presumível zona pressionante adversária num dispositivo
tático 1-4-2-3-1. Caso haja mais particularidades conhecidas dos oponentes
(e.g., médio-ala esquerdo, n.º 11, menos diligente nos comportamentos defensivos
de pressão), podemos acrescentar condicionantes para incentivar a criação de
espaço de progressão pelo corredor direito (i.e., golo na mini baliza direita duplica
a pontuação vigente).
Situação-problema
n.º 2
2.1.
Contexto situacional
Numa
fase adiantada do período competitivo, a equipa Sub-19 disputa a fase de
manutenção da II Divisão Nacional e encontra-se confortável do ponto de vista
pontual. Na próxima jornada vai defrontar, fora, uma equipa adversária que está
com mais um ponto na tabela classificativa. Os oponentes também jogam
usualmente num 1-4-3-3, mas privilegiam ações mais verticais, sendo
contundentes nos métodos de ataque rápido e contra-ataque. A preocupação da
equipa técnica fixa-se nos momentos de transição defensiva, pois tem havido
alguma passividade na reação à perda da bola, quer para pressionar os
adversários no centro de jogo, quer para recuperar posições e garantir o
equilíbrio defensivo. Os objetivos para a segunda sessão do microciclo (quarta-feira)
passam por: (1) melhorar a reação à perda da posse de bola, pressionando
os jogadores contrários longe da própria baliza e evitando a progressão rápida
no espaço; (2) potenciar comportamentos de recuperação defensiva para manter
a última linha intacta e organizada aquando da invasão do terço defensivo por
parte dos adversários.
2.2. Exercício de treino
Figura 3. Representação esquemática do
jogo reduzido/condicionado Gr+8v8+Gr, concebido para resolver os problemas
referidos na situação-problema n.º 2.
Características estruturais
- Relação numérica: Gr+8v8+Gr, i.e. 1 guarda-redes (1) + 2 defesas laterais (2 e 5), 2 defesas centrais (3 e 4), 1 médio ofensivo (8), 2 extremos (7 e 11) e 1 ponta de lança (9) azuis Versus 1 ponta de lança (9), 2 extremos (7 e 11), 1 médio ofensivo (10), 2 defesas centrais (3 e 4) e 2 defesas laterais (2 e 5) brancos.
- Espaço: 60 x 65 m (217,7 m2 por jogador)
- Duração: 2 x 10’ (2’ recuperação passiva)
- Regras/condições: (1) Gr, laterais e centrais jogam apenas no setor defensivo, e médio ofensivo, extremos e ponta de lança jogam só no setor ofensivo; (2) em posse de bola, 1 defesa pode entrar no setor ofensivo para criar superioridade numérica; (3) os jogadores do setor ofensivo podem entrar no espaço intermédio (2m) para receber a bola e virar sem pressão; (4) golo sofrido com o setor defensivo desorganizado vale a dobrar.
Critérios
de êxito: (1) a cada 5 recuperações de bola, duas
devem ocorrer no meio-campo ofensivo; (2) no máximo, cada equipa sofre 1
golo com o quarteto defensivo (re)organizado.
Planeamento: (1) sessão de treino – incluir na Parte Fundamental; (2) microciclo – incluir na sessão de quarta-feira, tendo jogo oficial ao sábado (-3 dias).
Materiais:
2
balizas Fut11; sinalizadores; 8 coletes azuis; 13 bolas T5.
2.3.
Análise do exercício de treino: Aplicação dos princípios da “especificidade” e
da “representatividade da tarefa”
De maneira a estimular comportamentos céleres e adequados nos momentos de transição defensiva, foi elaborado um jogo reduzido/condicionado dividido em dois meios-campos. As condicionantes estruturais propostas visaram dar resposta aos dois objetivos supramencionados. No meio-campo ofensivo, a intenção é evitar a rápida progressão dos oponentes mediante uma forte pressão sobre o portador da bola e espaço envolvente (centro de jogo), por forma a “fechar” as linhas de passe mais próximas. No meio-campo defensivo, o objetivo é encorajar uma recuperação defensiva célere e uma reorganização eficaz do quarteto defensivo.
Em posse de bola, um dos elementos do setor defensivo deve avançar para o meio-campo ofensivo para criar superioridade numérica (5v4+Gr). Esta condição não visa exclusivamente o sucesso do processo ofensivo, mas sim estimular a recuperação posicional, a reorganização coletiva e a forte reação à perda da bola. Se a superioridade numérica ditar fases ofensivas longas (ataque posicional), podemos introduzir um tempo limite para as equipas finalizarem o processo ofensivo (e.g., 15 segundos).
A estrutura do exercício inclui todos os elementos do jogo formal, o que dota a situação de elevada “especificidade”. No sentido de aumentar o nível de “representatividade da tarefa”, procurou-se preservar algumas dinâmicas setoriais e intersectoriais, em 1-4-3-3, que constam no modelo de jogo, em particular, para o momento da transição defensiva. Como é expectável que a equipa oponente também jogue no mesmo dispositivo tático, foram propostas as mesmas relações numéricas nos dois meios-campos. A possibilidade de a equipa atacante explorar a superioridade numérica no meio-campo ofensivo permite replicar a verticalidade identificada como ponto forte no jogo ofensivo adversário. Além disso, a tarefa assegura que o continuum de fases e momentos de jogo ocorra de forma cíclica, proporcionando que os jogadores produzam processos de coadaptação em permanência. Não convém ignorar que os imponderáveis e a aleatoriedade também têm o seu papel no jogo de futebol (Wunderlich et al., 2021).
Referências
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Kasper,
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Oliveira,
B., Amieiro, N., Resende, N., & Barreto, R. (2006). Mourinho: Porquê
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Práxedes,
A., Del Villar, F., Pizarro, D., & Moreno, A. (2018). The impact of
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Queiroz,
C. (1986). Estrutura e organização dos exercícios
de treino em futebol (1.a Ed.).
Federação Portuguesa de Futebol.
Wunderlich, F., Seck, A., & Memmert, D. (2021). The influence of randomness on goals in football decreases over time. An empirical analysis of randomness involved in goal scoring in the English Premier League. Journal of Sports Sciences, 39(20), 2322–2337. https://doi.org/10.1080/02640414.2021.1930685
Nota final: Descarregar ficheiro original aqui. Almeida, C. H. (2023, 8 de junho). Complementaridade dos princípios da "especificidade" e da "representatividade" no treino de futebol: Resolução de duas situações-problema [Workshop]. Semana de Desporto do ISMAT, Portimão. DOI: 10.13140/RG.2.2.17184.56329/1
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