30/11/2024

Artigo do mês #59 – novembro 2024 | Sessões de treino compensatórias; será que compensam mesmo?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Casamichana, D., Barba, E., Aguirre, G., Agirrezabalaga, O., & Castellano, J.

País: Espanha

Data de publicação: 4-novembro-2024

Título: Compensatory training sessions, do they really compensate?

Referência: Casamichana, D., Barba, E., Aguirre, G., Agirrezabalaga, O., & Castellano, J. (2024). Compensatory training sessions, do they really compensate? International Journal of Sports Science & Coaching, 1–7. Advance online publication. https://doi.org/10.1177/17479541241287914

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 59 – novembro de 2024.

 

Apresentação do problema

O conhecimento sobre as cargas externas no microciclo competitivo tem evoluído significativamente. Os estudos mostram que os jogos oficiais representam a maior parte da carga semanal, diferenciando-se claramente das sessões de treino (Kelly et al., 2020; Stevens et al., 2017). Os jogadores com menos minutos acumulam menor atividade semanal, especialmente em ações de alta velocidade e sprint, com maior impacto em semanas de alta densidade competitiva (Casamichana et al., 2022; Gualtieri et al., 2020). Assim, encontrar formas de estimular jogadores com baixa participação nos jogos oficiais tornou-se uma preocupação central para treinadores e investigadores. 

A investigação científica tem analisado as cargas externas no treino compensatório do microciclo (MD+1, ou seja, treino após o dia de jogo) para jogadores com menos minutos em competição. Martín-García et al. (2021) observaram que estas sessões atingem mais de 50% da carga do jogo em variáveis como a distância total percorrida, a potência metabólica média e as acelerações/desacelerações (>3 m/s2), mas apenas 20% na distância em alta velocidade (>19,8 km/h) e em sprint (>25,2 km/h). Calderón-Pellegrino et al. (2022) destacaram que estas sessões não replicam as exigências dos titulares, sobretudo na distância em sprint (>24,0 km/h). 

A comparação das cargas externas entre diferentes equipas dentro de uma estrutura profissional de futebol tem despertado interesse na literatura científica, mediante a análise das cargas acumuladas em sessões e microciclos por diferentes equipas (Calderón-Pellegrino et al., 2022; Martin-Garcia et al., 2018). Assim, Kavanagh et al. (2024) observaram recentemente que a carga externa semanal acumulada foi maior em semanas com 1 jogo na equipa principal em comparação com a equipa de reservas. Por outro lado, Houtmeyers et al. (2021) descreveram que, enquanto as cargas semanais a baixa velocidade foram mais elevadas nos jogadores de elite jovens, a intensidade e a variabilidade de carga tendem a aumentar quando esses jogadores transitam para o futebol profissional. A compreensão destas dinâmicas da carga externa pode favorecer a progressão dos jogadores entre equipas e facilitar a sua integração nos treinos de outras equipas do mesmo clube. 

Contudo, existe pouca informação sobre a atividade realizada pelos jogadores neste tipo de sessão (MD+1; Figura 2) e ainda menos sobre os padrões de carga entre diferentes equipas no seio do mesmo clube de futebol. Posto isto, o objetivo deste estudo foi comparar a carga externa acumulada por jogadores pertencentes a 3 equipas do mesmo clube profissional na sessão de treino compensatório, expressando-a tanto em valores absolutos como em valores relativos às exigências do jogo.

 

Figura 2. Proposta de treino compensatório (fonte: https://isspf.com; imagem não publicada pelos autores).

 

Métodos

Abordagem experimental: foram analisados 191 registos de sessões compensatórias realizadas por 3 equipas de um clube profissional na época 2019/2020. Estas sessões, executadas no dia seguinte aos jogos oficiais (MD+1), foram desenhadas para simular as exigências competitivas. Somente participaram os jogadores de campo que não foram titulares ou jogaram menos de 60 minutos no encontro anterior, com o objetivo de replicar, de forma aproximada, as cargas físicas do jogo. 

Participantes: 51 jogadores de 3 equipas de um clube profissional: equipa principal (PRO, n = 16; 24,5 ± 3,5 anos; 180,6 ± 6,7 cm; 75,1 ± 5,7 kg), equipa de reservas (RES, n = 15; 21,3 ± 1,1 anos; 179,5 ± 7,1 cm; 72,5 ± 6,4 kg) e segunda equipa de reservas (RES2, n = 20; 19,7 ± 0,9 anos; 177,9 ± 5,1 cm; 70,7 ± 6,3 kg). Os guarda-redes foram excluídos devido à especificidade da posição. A equipa PRO competiu na primeira divisão espanhola (La Liga), a RES na terceira divisão e a RES2 na quarta divisão. Os dados foram recolhidos no âmbito da avaliação diária como condição de trabalho dos jogadores. 

Variáveis: as sessões de treino compensatório foram monitorizadas com dispositivos MEMS, analisando-se 10 variáveis: duração total (min), distância total percorrida (TD, m), distâncias percorridas a velocidades moderada (TD14: >14 km/h), alta (TD18: >18 km/h), muito alta (TD21: >21 km/h) e sprint (TD24: >24 km/h), carga de aceleração (aLoad, AU), número de acelerações (>2 m/s²) e desacelerações (<-2 m/s²), e carga do jogador (Player Load – PL, AU). As variáveis foram obtidas via GPS e acelerómetros, seguindo limiares de intensidade de estudos prévios (e.g., Guridi Lopategui et al., 2021). A variável aLoad soma todas as acelerações e desacelerações positivas, refletindo as exigências totais de aceleração, independentemente da velocidade. A PL combina acelerações nos 3 planos de movimento, sendo fiável e validada para monitorizar a carga em jogadores de futebol (Casamichana et al., 2013). 

Procedimentos: a investigação foi executada na primeira metade da época 2019/2020. As 189 sessões de treino compensatório analisadas ficaram assim distribuídas pelas 3 equipas: PRO = 80, RES = 52 e RES2 = 57.  Estas sessões foram realizadas no dia seguinte ao jogo oficial, envolvendo jogadores que jogaram menos de 60 minutos. A carga externa foi monitorizada com dispositivos MEMS (Vector S7 e X7), e os dados, processados no software Catapult OpenField, garantiram elevada precisão. Para comparar com a carga dos jogos, estimaram-se os valores para os jogadores que não completaram as partidas: menos de 70 minutos baseados na média da posição e mais de 70 minutos extrapolados para 94 minutos. As cargas foram expressas em valores absolutos e relativos (%) em relação à média dos jogos oficiais. 

Análise estatística: os dados foram apresentados através de média, desvio padrão e intervalo (mínimo e máximo), em valores absolutos e relativos (em relação ao jogo). As diferenças entre as equipas foram avaliadas através de ANOVA de uma via. Também foram calculadas as dimensões de efeito mediante o d de Cohen, considerando os intervalos seguintes: trivial <0,2; pequeno >0,2; moderado >0,6; grande >1,2; e muito grande >2,0 (Hopkins et al., 2009). As análises estatísticas foram realizadas no software JASP, versão 0.18.1 para Windows, adotando-se um nível de significância de p < 0,05.

 

Principais resultados

 

· Estatísticas descritivas das variáveis de carga externa de treino nos dias compensatórios por equipa (PRO, RES e RES2)

Os dias compensatórios apresentaram diferenças significativas entre as equipas (PRO, RES e RES2) em diversas variáveis de carga externa. As principais observações incluem:

 

1. Duração (DUR): as equipes RES e RES2 apresentaram maior duração média de treino em comparação à PRO, com diferenças estatisticamente significativas;

2. Cargas absolutas (PL e aLoad): os valores de carga absoluta (PL) e carga acumulada (aLoad) foram significativamente maiores para as equipas RES e RES2 em relação à PRO;

3. Distâncias totais (TD e respetivos patamares de velocidade): a equipa RES percorreu as maiores distâncias totais (TD) e em velocidades altas (TD14 e TD18), enquanto a equipa PRO apresentou valores significativamente inferiores;

4. Acelerações e desacelerações (ACC e DEC): houve um número mais reduzido de desacelerações (DEC) nas equipas RES e RES2 em comparação à PRO, indicando padrões distintos de trabalho de intensidade entre os conjuntos;

5. Diferenças não significativas: algumas variáveis, como TD21, não apresentaram diferenças significativas entre as equipas.

 

·   Magnitude das diferenças entre as equipas para cada variável de carga externa

Os tamanhos do efeito das diferenças entre as equipas para cada uma das variáveis de treino relacionadas com os jogos demonstraram magnitudes mais pronunciadas nas variáveis associadas ao volume (DUR%, PL%, aLoad% e TD%), com a equipa PRO a apresentar consistentemente os valores mais baixos.

 

·  Valores relativos (%) da carga de treino compensatório em relação à carga do jogo oficial para cada equipa.

A Figura 3 expõe o perfil da carga dos treinos compensatórios relativamente à carga obtida nos jogos oficiais das 3 equipas. 


Figure 3. Médias e desvios padrão das variáveis relativas (%) em relação à carga de treino em dias compensatórios para cada equipa. Nota: DUR% refere-se à duração total, aLoad% é a carga total de aceleração, PL% é a carga do jogador, TD% é a distância total percorrida, TD14% é a distância percorrida a >14 km/h, TD18% é a distância percorrida a >18 km/h, TD21% é a distância percorrida a >21 km/h, TD24% é a distância percorrida a >24 km/h, e ACC% e DEC% referem-se ao número de acelerações (>2 m/s2) e desacelerações (<-2 m/s2), todas as variáveis relativas ao jogo. PRO corresponde à equipa profissional, RES à equipa de reservas e RES2 à segunda equipa de reservas. (a) indica >PRO, (b) indica >RES e (c) indica >RES2 com p < 0,05.

 

Nas variáveis DUR%, PL%, TD% e TD14%, foram encontradas diferenças significativas entre todas as equipas. Além disso, na variável ACCLoad%, as equipas RES e RES2 exibiram percentagens superiores à PRO. Para a variável TD18%, a equipa RES apresentou valores relativos superiores à RES2, que, por sua vez, exibiu valores superiores à PRO. As equipas RES e RES2 também apresentaram valores superiores à PRO na variável ACC%. Por fim, na variável DEC%, a equipa PRO demonstrou percentagens significativamente superiores à RES.

 

Aplicações práticas

A partir dos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas propícias para auxiliar os treinadores na otimização do treino compensatório, particularmente destinado a jogadores com menos minutos de competição. Estas recomendações concentram-se em estratégias para melhorar a condição física, equilibrar as cargas neuromusculares e garantir uma preparação mais consentânea com as exigências competitivas. 

1. Estimular níveis competitivos em jogadores menos utilizados: as variáveis de carga externa oscilaram entre 30–90% do observado em competição, situando-se maioritariamente entre 50–60% das exigências do jogo oficial, enquanto valores mais altos foram registados nas ações de aceleração e desaceleração. Para preparar jogadores menos utilizados, os treinadores devem integrar jogos particulares ou simulados, especialmente em equipas de reserva ou formação, onde há maior disponibilidade de jogadores. 

2. Estratégias eficientes para o treino compensatório: os jogos reduzidos/condicionados sobrecarregam a dimensão neuromuscular e subestimam aspetos como o pico de velocidade. Assim, o treino intervalado de sprint e de resistência de velocidade deve ser implementado para maximizar a condição física em cenários com menos jogadores ou tempo limitado. A exposição semanal à corrida de alta velocidade, como sprints, pode melhorar o desempenho e reduzir a incidência de lesões, sendo uma estratégia essencial para os jogadores pouco utilizados. 

3. Corrigir o desequilíbrio entre ações de aceleração e desaceleração em treinos compensatórios: as sessões de treino compensatório apresentaram uma maior frequência de acelerações em comparação com as desacelerações, tanto em número absoluto como em percentagem das exigências competitivas. Este desequilíbrio pode limitar o desenvolvimento equilibrado das capacidades neuromusculares dos jogadores. Assim, além da utilização de jogos reduzidos/condicionados para estimular acelerações, é essencial integrar exercícios como corrida intervalada com mudanças bruscas de direção e desacelerações progressivas após sprints, por forma a garantir uma preparação mais completa e alinhada com as exigências do jogo.

 

Conclusão

Este estudo comparou as cargas externas acumuladas em sessões de treino compensatório de 3 equipas de um clube profissional de futebol. As equipas de reserva apresentaram cargas absolutas e relativas superiores à equipa principal, com destaque para ações de aceleração e desaceleração. Contudo, observou-se um desequilíbrio entre acelerações e desacelerações, bem como uma sub-representação de ações em alta velocidade e sprint em relação às exigências do jogo oficial. Estes resultados sugerem que os treinos compensatórios devem ser ajustados para replicar mais fielmente as condições de competição, integrando exercícios de sprint e mudanças de direção. A aplicação prática destas evidências poderá melhorar a preparação de jogadores com menos minutos e reduzir o risco de lesões em contexto competitivo.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Sports Science & Coaching.

30/10/2024

Artigo do mês #58 – outubro 2024 | Explorando as práticas de tomada de decisão em sessões de treino no futebol infantojuvenil de base

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Roca, A., Pocock, C., & Ford, P. R.

País: Inglaterra

Data de publicação: 4-setembro-2024

Título: Exploring decision-making practices during coaching sessions in grassroots youth soccer: a mixed-methods study

Referência: Roca, A., Pocock, C., & Ford, P. R. (2024). Exploring decision-making practices during coaching sessions in grassroots youth soccer: a mixed-methods study. Science and Medicine in Football, 1–8. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2399011

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 58 – outubro de 2024.

 

Apresentação do problema

Uma questão fundamental que tem captado a atenção de investigadores e profissionais é a otimização das atividades e dos ambientes de treino para melhorar a capacidade dos jovens jogadores em antecipar e tomar decisões eficazes (Williams & Jackson, 2019). Os estudos sugerem que o desenvolvimento das competências associadas à “inteligência de jogo” depende, em grande parte, da participação em atividades cuja estrutura subjacente é semelhante ou idêntica à do jogo (Roca et al., 2012; Miller et al., 2017; Roberts et al., 2020; Coutinho et al., 2023). Diversas recomendações teóricas e científicas têm sido adiantadas para otimizar estas atividades (Pinder et al., 2011; Hodges & Lohse, 2022). Como parte desse processo, os investigadores têm procurado compreender as estruturas de treino e a pedagogia empregue nas sessões de treino (e.g., Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013; O’Connor et al., 2018; Roca & Ford, 2020). 

A abordagem utilizada para investigar a microestrutura das sessões de treino baseia-se na observação sistemática, onde os investigadores analisam e categorizam o tempo que os jogadores passam em diferentes tipos de atividades e os comportamentos dos treinadores (e.g., Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013). As atividades dividem-se geralmente em duas categorias: (1) atividades de jogo, onde os jogadores interagem com adversários e colegas de equipa, como os jogos reduzidos; (2) atividades de exercício, onde se praticam habilidades motoras com a bola sem adversários e, por vezes, sem companheiros de equipa. Algumas definições fazem uma distinção entre atividades com e sem tomada de decisão ativa (e.g., Roca & Ford, 2020). 

Estudos prévios no futebol (Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013) observaram que jovens jogadores passam uma parte significativa do tempo em atividades de exercício, em vez de atividades baseadas no jogo. Ford et al. (2010) avaliaram as atividades de treino de 25 treinadores e descobriram que os jogadores de grupos etários mais jovens passavam 62% do tempo em exercícios. Os autores levantaram preocupações sobre este desequilíbrio, pois argumentaram que, devido ao menor envolvimento de processos de tomada de decisão, estas atividades poderiam prejudicar a aquisição de habilidades e sua transferência para o jogo competitivo. Recomendaram, então, aumentar o tempo dedicado a atividades baseadas no jogo, mais alinhadas com as exigências do competição (Miller et al., 2017; Roberts et al., 2020). 

Em investigações mais recentes (Ford & Whelan, 2016; O’Connor et al., 2018; Roca & Ford, 2020), verificou-se uma mudança, com treinadores de crianças mais habilidosas a recorrerem mais frequentemente a atividades baseadas no jogo do que a exercícios (figura 2). Ford e Whelan (2016) analisaram 16 sessões de treino em jogadores Sub-9 a Sub-11 de academias de elite em Inglaterra, revelando que 63% do tempo foi dedicado a atividades de jogo, 20% a exercícios e 17% em transições. Na Austrália, O’Connor et al. (2018) descobriram que, em 40 sessões de treino com jogadores Sub-11 a Sub-13 mais evoluídos, 45% do tempo foi dedicado a atividades de jogo e 20% a exercícios. Contudo, para jogadores principiantes ou de base, as atividades de jogo podem ser mais desafiantes, o que suscita a questão de se estas tarefas são apropriadas para esta população (Larkin et al., 2022).

 

Figura 2. Crianças a praticar atividades com tomada de decisão ativa, no caso jogos reduzidos (imagem não publicada pelos autores).

 

Embora a investigação sobre a microestrutura das atividades de treino tenha proporcionado alguma compreensão sobre as estruturas específicas que os treinadores utilizam, é crucial entender as intenções dos treinadores ao escolherem determinadas práticas (Roca & Ford, 2020; Williams & Hodges, 2023). Para tal, é necessário investigar não apenas as estruturas de treino, mas também os fatores que influenciam as decisões dos treinadores (Partington & Cushion, 2013; Ford & Whelan, 2016). O presente estudo combinou entrevistas pós-sessão com observação sistemática para examinar o “como” e o “porquê” da seleção das estruturas de treino no futebol infantojuvenil de base, ao contrário de estudos anteriores que realizaram entrevistas após blocos de sessões (Ford & Whelan, 2016). 

Tradicionalmente, os treinadores de futebol iniciam as sessões com atividades de exercício, culminando com jogos de posse de bola ou jogos reduzidos/condicionados (Williams & Hodges, 2005; Ford et al., 2010; Partington & Cushion, 2013; O’Connor et al., 2018). A razão hipotética para este design é que, para adquirir habilidades, a dificuldade do jogo deve ser reduzida, removendo adversários e/ou companheiros de equipa para praticar competências motoras com a bola (passe, receção, drible, remate, etc.). A ideia é que, uma vez dominada a habilidade, os jogadores possam aplicá-la em atividades de jogo contra adversários (Ford et al., 2010). Apesar disso, esta justificação raramente foi avaliada diretamente com os treinadores. Neste contexto, foi empregue uma abordagem de métodos mistos, combinando observações sistemáticas com entrevistas reflexivas realizadas em campo após as sessões, por forma a examinar as atividades de treino e a sua sequência ao longo da sessão, tal como implementadas por treinadores de futebol de formação de base.

 

Métodos

Participantes: 12 treinadores de futebol masculino, a trabalhar com grupos de Sub-9 a Sub-11 em 10 clubes na área de Londres. Os critérios de inclusão foram: treinar atualmente no nível de base; trabalhar com crianças com menos de 11 anos; ter experiência relevante em treino de jovens; e possuir pelo menos uma qualificação FA Nível 1. A média de idades foi de 31 ± 8 anos, com 7 ± 5 anos de experiência de treino e possuíam qualificações desde o FA Nível 1 até à Licença UEFA B. Para manter o anonimato, foram usados pseudónimos e os clubes específicos não foram mencionados. 

Procedimentos: o procedimento de cada sessão consistiu na observação sistemática das atividades e numa breve entrevista de campo com cada treinador, realizada após a sessão.

 

·     Observação sistemática

Foram gravadas 35 sessões de treino de Sub-9 a Sub-11 em 10 clubes durante 3 meses, utilizando uma câmara digital, e a meio da semana, para evitar treinos específicos de preparação ou reflexões pós-jogo (Roca & Ford, 2020). As atividades de treino foram classificadas com base num sistema refinado que divide as atividades em tomada de decisão ativa e não ativa. A tomada de decisão ativa envolve atividades que simulam situações de jogo com decisões baseadas nos movimentos de adversários e colegas de equipa (e.g., jogos reduzidos, posse de bola), enquanto a não ativa inclui práticas sem oposição realista (ex.: técnica, habilidades motoras). Uma terceira categoria abrange transições e pausas (tabela 1).

 

Tabela 1. Categorias e definições das atividades relacionadas com a prática de futebol utilizadas no estudo (refinado de Roca & Ford, 2020).

 

·     Entrevistas

Além da observação sistemática, cada treinador participou numa breve entrevista pós-sessão para refletir sobre o treino. Todos os treinadores foram questionados sobre o objetivo das suas sessões, com a pergunta aberta “qual foi o objetivo do treino de hoje?”, sendo feitas perguntas adicionais caso necessário (Robinson 2023). A observação sistemática gerou dados quantitativos, enquanto as entrevistas forneceram uma análise mais profunda sobre as intenções dos treinadores (Ford et al. 2010; Partington & Cushion 2013). A duração média das entrevistas foi de 5 ± 2 minutos.

 

·     Rigor metodológico

A fiabilidade inter e intra-observador foi avaliada em 4 sessões de treino, com concordância de 91,7% e 94,5%, respetivamente, excedendo o limite crítico de 85% recomendado por van der Mars (1989). A percentagem de concordância foi usada em vez de Kappa de Cohen, com base nas recomendações de McHugh (2012). Para as entrevistas, utilizou-se amostragem intencional com critérios específicos, como treinar atualmente grupos de Sub-9 a Sub-11 no nível de base, para garantir a adequação dos participantes observados.


Análise dos dados: a análise foi subdividida em observação sistemática e entrevistas.

 

·     Dados da observação sistemática

Os dados foram normalizados, calculando-se a percentagem de tempo em que os jogadores participaram nas categorias de tomada de decisão ativa e não ativa. As sessões foram divididas em duas metades iguais para analisar a organização sequencial. Devido à interdependência entre atividades, foi realizado um teste t para comparar a percentagem de tempo dedicado à tomada de decisão ativa entre a primeira e a segunda metade da sessão. Foram calculadas estatísticas descritivas e o tamanho de efeito de Cohen’s d para as subatividades em cada categoria. O nível de significância foi definido em p < 0.05 (Field, 2018; Ford et al., 2010).

 

·     Dados das entrevistas

Os dados das entrevistas foram analisados utilizando uma combinação de métodos indutivos e dedutivos de análise temática (Braun & Clarke, 2021). A análise temática reflexiva, em duas fases, organizou os dados em atividades de tomada de decisão ativa e não ativa (Braun & Clarke, 2019). Os temas secundários foram desenvolvidos indutivamente para identificar os objetivos das sessões de treino. Os coautores atuaram como “amigos críticos”, ajudando a verificar e refinar os temas durante a análise dos dados (Smith & McGannon, 2018).

 

Principais resultados

 

·     Observação sistemática

As 35 sessões de treino de futebol tiveram uma duração média de 86 minutos. Globalmente, as atividades de tomada de decisão ativa representaram 41% da sessão, as de tomada de decisão não ativa somaram 42%, e os restantes 17% foram atribuídos a atividades de transição. 

Observou-se uma diferença significativa no tempo dedicado às atividades de decisão ativa entre as duas metades da sessão (figura 3): a segunda metade da sessão apresentou mais tempo em atividades de decisão ativa (66%) do que a primeira metade (16%). Em contrapartida, a primeira metade registou mais atividades de decisão não ativa (64%) do que a segunda metade (19%). Com exceção de 2 treinadores, os restantes propuseram entre 30% e 50% de atividades com tomada de decisão ativa nas sessões.

 

Figura 3. Médias e desvios-padrão da percentagem de tempo dedicado a atividades com tomada de decisão ativa e não ativa durante a primeira e a segunda metade da sessão de treino (Roca et al., 2024).

 

Atividades de Tomada de Decisão Ativa

O tempo dedicado a jogos reduzidos e condicionados (25%) foi significativamente superior ao das outras subatividades de decisão ativa (3 a 5%). Observou-se que a maior parte do tempo em jogos reduzidos e condicionados ocorreu na segunda metade da sessão (43%).

 

Atividades de Tomada de Decisão Não Ativa

O tempo das atividades de decisão não ativa, incluindo exercícios de preparação física, treino técnico isolado e exercícios baseados em habilidades, variou entre 11% e 16% da duração total da sessão. Estas atividades concentraram-se sobretudo na primeira metade da sessão, representando 64% do tempo desse bloco inicial.

 

·     Entrevistas 

A figura 4 apresenta o mapa temático dos objetivos dos treinadores de base para as sessões de treino. Os objetivos dos treinadores foram codificados em 2 temas de ordem superior: tomada de decisão ativa e tomada de decisão não ativa.

 

Figura 4. Mapa temático dos objetivos dos treinadores de base para as sessões de treino.

 

Atividade de Tomada de Decisão Ativa

A tomada de decisão ativa foi definida como atividades em pequenos grupos ou equipas, como jogos reduzidos e condicionados. Os treinadores usaram estas atividades para melhorar o desempenho em situações de 1v1. Como explicou o Treinador 6:

 

O próximo exercício foi 1v1 e 2v2, para ver se os jogadores conseguem ser mais rápidos com a bola e decidir se avançam sozinhos ou em combinação com um colega.

 

Também foram utilizados jogos condicionados para desenvolver o jogo de posse de bola, como destacou o Treinador 3:

 

A segunda atividade foi um jogo condicionado com limitações para encorajar os jogadores a jogar desde trás e tentar criar oportunidades de golo.

 

No final das sessões, geralmente, os treinadores recorriam a jogos reduzidos para aplicar as habilidades praticadas, como reflete o Treinador 9: “Terminámos com um jogo reduzido para incorporar todas as habilidades aprendidas no jogo”. Este tipo de atividades procura simular cenários reais de jogo, ajudando os jogadores a desenvolver as habilidades treinadas no início da sessão.

 

Aplicações práticas

Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações práticas que podem ser aproveitadas pelos treinadores para melhorar a eficácia dos treinos e o desenvolvimento de habilidades nas crianças. Estas recomendações visam otimizar o design das atividades de treino, ajustando o nível de dificuldade e, sobretudo, incentivando a tomada de decisão ativa.

 

1. Ampliar a exposição a atividades com tomada de decisão ativa para maximizar a transferência de habilidades: sempre que possível, os treinadores devem incluir atividades que exijam tomada de decisão ativa, envolvendo oposição, como jogos reduzidos/condicionados e jogos pré-desportivos. Estas atividades permitem que os jogadores pratiquem habilidades em contextos semelhantes ao jogo real, facilitando a aplicação das competências adquiridas em situações competitivas. Para jogadores menos experientes, sugere-se uma introdução gradual de oponentes, ajustando a complexidade da tarefa para evitar sobrecarga e garantir um ambiente de aprendizagem eficaz. 

2. Estruturar a sessão de treino para facilitar a aquisição técnica: a exemplo dos treinadores participantes no estudo, as sessões podem iniciar com atividades com tomada de decisão não ativa, como exercícios técnicos sem oposição, para que os jogadores adquiram habilidades motoras sem a pressão de adversários. Ao longo da sessão, gradualmente introduzir atividades com tomada de decisão ativa, como jogos reduzidos, permitindo que as ações técnicas sejam aplicadas em cenários mais próximos ao jogo real. Esta sequência evita a sobrecarga mental e favorece a retenção da técnica em contextos competitivos. 

3. Incorporar abordagens baseadas em evidências na conceção das atividades de treino: para incentivar o uso de práticas eficazes, recomenda-se que os treinadores explorem versões simplificadas de abordagens teórico-científicas, como o modelo baseado no desafio (Hodges & Lohse, 2022) e a abordagem baseada nos constrangimentos (Renshaw et al., 2010). Estas metodologias permitem ajustar a dificuldade das atividades às capacidades das crianças, mantendo a tomada de decisão ativa. Seria ideal que as entidades formadoras incluíssem exemplos práticos destas abordagens nos cursos de formação de treinadores, oferecendo ferramentas que estimulem a aquisição de habilidades e a sua transferência para o jogo. A colaboração entre especialistas em desenvolvimento e aprendizagem motora e formadores de treinadores é fundamental para tornar estas metodologias mais acessíveis e aplicáveis no treino de futebol de base.

 

Conclusão

Este estudo investigou as atividades de treino utilizadas por treinadores de futebol infantojuvenil em Inglaterra, bem como as suas intenções. Os autores verificaram que os treinadores dedicam tempos semelhantes a atividades que envolvem tomada de decisão ativa e não ativa, com o restante tempo alocado a transições entre atividades. Foi identificado um padrão claro de sequência nas sessões, começando com atividades com tomada de decisão não ativa na primeira metade e passando para atividades de decisão ativa na segunda, seguindo uma abordagem tradicional no treino de jovens jogadores. Os treinadores enfatizaram que as práticas de decisão não ativa são essenciais para o desenvolvimento da “técnica”, que poderá ser aplicada no jogo, embora esta perceção possa divergir do entendimento científico atual.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

30/09/2024

Artigo do mês #57 – setembro 2024 | Autogolos no futebol: será que ocorrem aleatoriamente ou exibem padrões sistemáticos?

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

- 57 -

Autores: Mehta, S., Schlenger, J., Memmert, D., & Wunderlich, F.

País: Alemanha

Data de publicação: 16-setembro-2024

Título: Own goals in football: do they occur randomly or exhibit systematic patterns?

Referência: Mehta, S., Schlenger, J., Memmert, D., & Wunderlich, F. (2024). Own goals in football: do they occur randomly or exhibit systematic patterns? International Journal of Performance Analysis in Sport, 1–21. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24748668.2024.2402621

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 57 – setembro de 2024.

 

Apresentação do problema

A marcação de golos no futebol pode ser considerada uma tarefa altamente complexa. Tendo em conta a média de menos de 3 golos por jogo no futebol de alto rendimento (Li & Zhao, 2021; Michailidis et al., 2013; Zhao & Zhang, 2019), o empenho necessário para marcar um único golo é notável, e a falha em conseguir fazê-lo parece ser uma parte intrínseca do próprio jogo. 

Os investigadores têm analisado a marcação de golos para identificar estratégias mais ou menos promissoras, incluindo aspetos como a área de onde o golo foi marcado (Michailidis et al., 2013), a duração das sequências de passes antes do golo (Wright et al., 2011), o estilo de ataque (González-Rodenas et al., 2019), o papel das bolas paradas (Yiannakos & Armatas, 2006) ou o posicionamento dos defesas durante a finalização (Schulze et al., 2018). No entanto, nem todos os golos são marcados através de estratégias sistemáticas, como defendido por Lames (2018) e Wunderlich et al. (2021), que encontraram influências aleatórias (i.e. caóticas ou não planeadas) no processo de marcação de quase metade dos golos no futebol de elite. 

O presente artigo foca-se num tipo de golo que parece contrastar com a ideia de estratégias sistemáticas: os autogolos (figura 2). Um autogolo resulta de uma ação incorreta, acidental ou malsucedida de um defensor que termina em golo. Este tipo de golo difere de um desvio, pois se o defesa tocar a bola após um remate já direcionado à baliza, o golo será atribuído ao atacante. Casos típicos de autogolos incluem passes, cruzamentos ou remates que, sem a intervenção do defesa, não iriam na direção da baliza, mas acabam por entrar devido a uma tentativa de alívio/corte. Nos principais campeonatos de futebol, os autores de autogolos são oficialmente anunciados, permitindo-nos confiar na informação publicada.

 

Figura 2. Autogolo do guarda-redes Emiliano Martínez no Aston Villa 3 x 3 Liverpool, da FA Premier League 2023/2024 (imagem não publicada pelos autores).

 

Este tema ganhou relevância pública durante o Campeonato Europeu de 2021, onde foram registados 11 autogolos. Apesar de os autogolos terem sido considerados parte de padrões gerais de concretização (Li & Zhao, 2021) ou como um fator de motivação individual no desempenho do jogo (Hüffmeier et al., 2020), a análise específica e aprofundada de autogolos tem sido negligenciada. Os autogolos têm até sido excluídos de análises devido à sua “natureza muitas vezes aleatória” (Anzer et al., 2021, p. 2526). Embora alguns resultados sobre autogolos tenham sido reportados, como a sua maior frequência na Premier League em comparação com as ligas italiana e espanhola (Li & Zhao, 2021), é necessário obter mais informação sobre outros fatores associados a estes golos para melhor entender a sua ocorrência. 

No futebol, como em outros desportos, são usados indicadores de desempenho para compreender quais as decisões ou as ações que são mais promissoras, através de modelos sistemáticos e estruturados do jogo (Lepschy et al., 2018, 2020; Rein et al., 2017). Contudo, abordagens estruturadas não constituem as únicas determinantes dos resultados, já que estes estão muitas vezes caracterizados pela incerteza e imprevisibilidade (Gibbons, 1997; Kahneman & Tversky, 2012; Tversky & Kahneman, 1992). O estudo destas influências aleatórias tem recebido menos atenção na investigação em ciências do desporto. Portanto, esta investigação centrou-se nos autogolos como um aspeto do jogo que parece aleatório e apenas parcialmente influenciável. O propósito do trabalho foi averiguar se os autogolos seguem padrões semelhantes aos golos normais, sugerindo sistematicidade, ou se contrastam, indicando padrões completamente aleatórios ou erráticos.

 

Métodos

Amostra: baseou-se num levantamento completo de golos de uma das principais ligas de futebol da Europa – Premier League inglesa –, abrangendo 7 épocas consecutivas, de 2012/2013 a 2018/2019. Durante este período, foram registados mais de 7000 golos, dos quais 253 foram identificados como autogolos, garantindo uma amostra suficientemente grande. Um autogolo do jogo entre o Crystal Palace e o Newcastle United, realizado a 21 de dezembro de 2013, foi excluído devido à falta de dados. 

Dados: para cada jogo, foram recolhidos metadados (e.g., data, equipas, probabilidades de apostas) e informações detalhadas sobre o autogolo (e.g., minuto, resultado corrente, equipa beneficiada) e o processo de marcação do autogolo (e.g., organização defensiva, zonas do campo das ações anteriores e do golo, número de jogadores nas zonas perigosas). Os dados sobre a existência de autogolos, bem como os metadados dos jogos, foram obtidos de várias fontes online, como football-data.co.uk ou www.whoscored.com. As variáveis relacionadas com o processo exato de marcação dos autogolos foram anotadas manualmente por observadores especializados, utilizando vídeos dos respetivos golos. 

Observação sistemática: as filmagens incluíam diferentes ângulos de câmara, repetições em câmara lenta e uma sequência suficientemente longa antes do golo, o que assegurou uma melhor observação dos dados. A fiabilidade interobservador foi apurada após a anotação de 50 autogolos da amostra por 2 observadores experientes e treinados para o efeito, obtendo bons resultados. As variáveis observadas a partir das filmagens foram: número de adversários (i.e., atacantes) na área de penálti; número de adversários na proximidade direta (definida como um raio de 3 metros em torno do defesa que marcou o autogolo); organização defensiva (organizada ou desorganizada); parte do corpo (cabeça, braço, tronco, membros inferiores); parte específica dos membros inferiores (pé, perna, coxa); tipo de ação precedente (cruzamento, passe, duelo, drible, remate, cabeceamento); zona da ação precedente e zona do autogolo, distinguindo entre 8 zonas do campo, conforme definido por Rathke (2017). As variáveis contextuais (e.g., probabilidades de apostas, situação de jogo, minuto do golo, resultado corrente) foram obtidas de fontes online ou de um estudo anterior (Wunderlich et al., 2021). 

Análise estatística: na ausência de dados comparáveis para todos os golos, foram apresentadas estatísticas descritivas sobre como os autogolos aconteceram. Quando disponíveis, testaram-se diferenças entre autogolos e todos os golos através de testes de Qui-quadrado, considerando significativas as diferenças abaixo de 5%. Para resultados significativos, indicou-se também a dimensão de efeito (Cohen’s w). O mesmo procedimento foi aplicado para comparações dentro do mesmo tipo de golo, como verificar se as equipas da casa marcaram mais autogolos que as visitantes. Para evitar confusão, as equipas foram descritas como beneficiadas por autogolos, em vez de marcadoras. Assim, comparam-se as equipas que marcaram golos com as que beneficiaram de autogolos. Todos os golos foram incluídos nos resultados para garantir comparabilidade com outros estudos; no entanto, nos testes estatísticos, os autogolos foram comparados com golos normais (excluindo autogolos) para evitar duplicações.

 

Principais resultados

 

·     Localização do jogo

As evidências mostram que as equipas da casa foram significativamente mais bem-sucedidas tanto em golos normais como em autogolos, mas não foram encontradas associações estatisticamente significativas entre o tipo de golo (normal ou autogolo) e se a equipa joga em casa ou fora.

 

·     Situação de jogo

Não foi revelada uma associação significativa entre a situação de jogo (jogadas corridas vs. bolas paradas) e a ocorrência de autogolos em relação aos golos normais, mas, quando os dados foram divididos por diferentes tipos de bolas paradas, observou-se que os autogolos quase nunca resultaram de penáltis, sendo bem mais comuns após pontapés de canto.

 

·     Resultado no marcador e ordem do golo

Os resultados indicam que a maioria dos autogolos ocorreu em situações de empate, em comparação com quando uma equipa estava a ganhar ou a perder. Embora não tenha sido encontrada uma associação estatisticamente significativa entre autogolos e o resultado corrente do jogo (ganhar, perder ou empatar), os autogolos tendem a ser mais frequentes como o primeiro golo do jogo e quando o resultado está empatado. Importa destacar que foi identificada uma diferença significativa quanto à ordem do golo, sendo os autogolos mais comuns como o primeiro tento do jogo.

 

·     Qualidade da equipa

As equipas favoritas, com base nas probabilidades de apostas, beneficiaram significativamente mais de autogolos do que as outsiders. No entanto, não foram encontradas diferenças significativas nos padrões de autogolos entre equipas favoritas e outsiders. Analisando a força absoluta, as equipas do topo da tabela beneficiaram mais frequentemente de autogolos do que as do fundo, mas a ocorrência de autogolos foi semelhante quando equipas do topo enfrentaram outras de topo ou quando equipas do fundo jogaram entre si. Tal sugere que a força relativa entre equipas influencia mais a ocorrência de autogolos do que a força absoluta ou a qualidade geral do jogo.

 

·     Efeitos relativos ao tempo

Não foram encontradas diferenças significativas entre autogolos e golos normais relativamente ao tempo de jogo, quando este foi dividido em intervalos de 15 minutos. Também não houve diferenças significativas em relação à jornada dentro da época ou à distribuição de autogolos ao longo das diferentes épocas analisadas.

 

·     Zonas do campo

Os dados mostram uma forte tendência para os autogolos serem marcados mais perto da baliza do que os golos normais, com mais de metade dos autogolos ocorrendo na zona 1 (pequena área entre os postes), enquanto essa zona representa apenas 22,3% dos golos normais. A zona 2 (pequena área fora dos postes) foi responsável por 13,4% dos autogolos, mas apenas 1,2% dos golos normais. Quase nenhum autogolo foi marcado fora da área de penálti, contrastando com 15,7% dos golos normais (figura 3). Foi identificada uma associação estatisticamente significativa entre as zonas dentro da área de penálti e a ocorrência de autogolos.

 

Figura 3. Distribuição da origem dos autogolos com base nas zonas marcadas em metade do campo de futebol. Cada zona é indicada com números (Z1 a Z7), juntamente com a contagem de golos, percentagem do total de autogolos e densidade de golos (média de golos por metro quadrado). A cor mais escura representa uma maior densidade de golos. Note-se que as zonas Z2, Z4, Z5 e Z7 têm dois segmentos em cada lado da linha central do campo.

 

Cruzamentos ou passes diagonais, vindos das zonas 4, 5 e 7, foram responsáveis pela maioria das ações que antecederam os autogolos.

 

·     Organização defensiva

Cerca de 63% dos autogolos surgiram apesar de a defesa estar organizada. Do ponto de vista estatístico, a defesa estava significativamente mais organizada do que desorganizada aquando da marcação de autogolos. Não foram encontradas associações estatisticamente significativas entre a organização defensiva e o estatuto da equipa que sofreu o autogolo (visitada ou visitante).

 

·     Ação prévia ao autogolo

Quase um terço de todos os autogolos ocorreu após um remate da equipa adversária (30,2%), enquanto cruzamentos e passes representaram mais de um quarto dos casos cada (27,9 e 26,9%, respetivamente). A “ação anterior” refere-se à última ação do adversário antes da bola chegar ao jogador que marcou o autogolo.

 

·     Parte do corpo

O pé e a cabeça, apesar de serem as partes do corpo mais utilizadas deliberadamente no futebol, representaram apenas cerca de 50% dos autogolos. O segmento da perna, por exemplo, originou 23% dos casos.

 

·     Oponentes em zonas perigosas

Em média, 3,88 adversários estavam na área de penálti no momento do autogolo, sendo mais comum a presença de 4 (27,7%) e 3 atacantes (24,5%) nessa zona. Ao redor do marcador do autogolo, num raio de 3 metros, estiveram em média 0,87 adversários, com 1 atacante nas proximidades em 55,3% das ocasiões, seguido de 0 atacantes em 30,8% das vezes.

 

·     Análise combinada do tipo de ação prévia e zona do autogolo

Em relação ao tipo de ação prévia e zona do autogolo, a combinação remate com autogolo na zona 1 ocorreu em 15,4% das vezes, seguido de passe, cruzamento e cabeceamento com autogolos concedidos também na zona 1 em 13,0%, 11,5% e 10,3% das ocasiões, respetivamente.

 

·     Análise combinada da qualidade da equipa com a zona do autogolo e o tipo de ação prévia

As equipas favoritas dominaram significativamente os autogolos derivados das zonas 3 (71,9%) e 6 (78,1%), enquanto os outsiders beneficiaram mais de ações dentro da área (zonas 3 e 1) ou assistências diagonais das laterais (zona 7). Em termos de ações precedentes, os favoritos foram superiores em cruzamentos, remates e passes, representando cerca de ~67% dos golos nessas categorias. Os cabeceamentos foram a única ação onde os outsiders conseguiram nivelar os favoritos. As evidências sugerem que a superioridade dos favoritos está mais associada a vantagens técnicas do que físicas.

 

·     Análise combinada da situação de jogo

Quase três quartos (73,9%) dos autogolos resultantes de cantos foram marcados na zona 1. Da mesma forma, mais de metade (54,5%) dos autogolos provenientes de livres também ocorreram nessa zona. Além disso, quase metade (43,7%) dos autogolos em lances de bola corrida foram registados na zona 1. Assim, a zona 1 revelou-se uma área crucial para a ocorrência de autogolos, independentemente de se tratar de bolas paradas ou de jogadas corridas, sendo especialmente proeminente em situações de canto.

 

Aplicações práticas

Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 5 aplicações práticas que podem ser aproveitadas pelos treinadores para melhorar a performance das suas equipas, quer no sentido de provocar, quer no de prevenir autogolos. Estas aplicações focam-se em otimizar as estratégias ofensivas e defensivas para reduzir a probabilidade de autogolos e aproveitar momentos de desorganização adversária, permitindo uma abordagem mais sistemática e informada em campo. 

1. Treinar para aproveitar ou evitar situações caóticas: algumas situações de jogo mais caóticas e inesperadas podem levar a autogolos. Os treinadores devem preparar exercícios específicos que simulem estas situações, tanto ofensivas quanto defensivas, para treinar os jogadores a provocarem erros nos adversários ou a evitá-los na própria equipa. A análise de desempenho deve focar-se nos momentos de jogo caóticos que podem influenciar o resultado de forma imprevisível, explorando a relação entre ordem e caos nas decisões. 

2. Considerar o contexto do jogo na preparação estratégica para a competição: a vantagem de jogar em casa também influenciou a ocorrência de autogolos, o que indica que este processo não é completamente aleatório. Os treinadores devem ter em mente que equipas favoritas, especialmente quando jogam em casa, tendem a beneficiar mais de autogolos, possivelmente devido à menor qualidade defensiva e dos guarda-redes das equipas menos cotadas. Assim, a equipa deve estar preparada para explorar o contexto de jogar em casa, tirando partido da vantagem psicológica e tática, treinando ainda ações que coloquem pressão adicional sobre adversários menos qualificados. 

3. Trabalhar a organização defensiva em situações de bola parada: os autogolos são mais frequentes em pontapés de cantos, possivelmente devido à elevada presença de jogadores na área em comparação com outras situações de jogo. As equipas técnicas devem propor exercícios que aprimorem a organização defensiva durante os cantos, simulando cenários com vários atacantes dentro da área (4 ou mais). O objetivo passa por desenvolver comportamentos coletivos e individuais que minimizem os riscos de desorganização e reduzir a probabilidade de autogolos, nomeadamente através de uma melhor comunicação entre os jogadores e um posicionamento defensivo mais eficaz. 

4. Prevenir autogolos em zonas próximas da linha de baliza: a maioria dos autogolos ocorre na pequena área entre os postes da baliza (zona 1), enquanto zonas mais afastadas raramente resultam em autogolos. Os profissionais do treino devem estimular os defensores a adotar comportamentos específicos em situações de passes e cruzamentos laterais adjacentes à zona 1. É essencial uma organização defensiva adequada para evitar situações de infortúnio ou erro, uma vez que ações indiretas, como cruzamentos e passes, são mais propensas a gerar autogolos do que remates diretos. 

5. Minimizar autogolos por contactos acidentais: mais de metade dos autogolos foram marcados com partes do corpo que não o pé ou a cabeça, indicando que os mesmos resultam mais de contactos acidentais do que de falhas técnicas ao tentar intercetar ou aliviar a bola. Para minimizar este tipo de ocorrências, recomenda-se que, no treino, sejam recriados momentos de pressão dentro da área, onde é comum a presença de vários atacantes. A ênfase deve estar na organização defensiva e na consciência posicional dos jogadores, mesmo em situações de pressão intensa.

 

Conclusão

Este estudo revelou que os autogolos, embora frequentemente considerados aleatórios, seguem padrões específicos que podem ser explorados tanto ofensiva quanto defensivamente. Equipas favoritas, especialmente em casa, tendem a beneficiar mais de autogolos, enquanto situações caóticas ou com múltiplos atacantes na área aumentam o risco destes eventos raros do jogo. A maioria dos autogolos ocorre na pequena área entre os postes, sobretudo após cruzamentos ou passes laterais, mesmo com uma defesa organizada. Assim, uma preparação tática cuidadosa e o treino de situações imprevisíveis podem não só minimizar o risco de autogolos, como também criar oportunidades para explorar fragilidades adversárias em momentos críticos do jogo.

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista International Journal of Performance Analysis in Sport.