Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios:
(1) publicado numa revista científica internacional com revisão de
pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema
que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.
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Autores: Li, Y., Weber, H., & Link, D.
País: Alemanha
Data de publicação: 2-dezembro-2024
Título: Additional time error in
association football is associated with interruption type and goal difference
Referência: Li, Y., Weber, H.,
& Link, D. (2024). Additional
time error in association football is associated with interruption type and
goal difference. Science and Medicine in
Football, 1–7. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/24733938.2024.2435843
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 60 – dezembro de
2024.
Apresentação do problema
No Mundial da FIFA em 2022, os tempos adicionais foram
significativamente mais longos que o habitual, frequentemente excedendo os 7
minutos e, por vezes, os 10 minutos. Segundo a OPTA, nos 2 primeiros dias do
torneio, 5 partes já tinham batido recordes históricos. Este aumento deveu-se a
uma ordem da FIFA para que os árbitros aplicassem com maior rigor as regras de
compensação de tempo perdido.
O International Football Association Board (IFAB) tem ajustado as
regras de compensação de tempo perdido desde 1939/1940. Inicialmente vagas,
estas regras foram especificadas em 1987/1988 para incluir substituições,
avaliação de jogadores lesionados e perda de tempo. Em 2016/2017, foram
adicionadas as paragens médicas e as sanções disciplinares, seguidas pelo VAR
em 2018. Na versão 2023/2024, as celebrações de golo foram listadas como uma
categoria separada (IFAB, 2023b).
Durante o Mundial de 2022, estas regras foram aplicadas
rigorosamente pela primeira vez. Registaram-se dados adicionais da partida,
como o tipo, o início e o fim de todas as interrupções do jogo consideradas no
cálculo do tempo adicional. A recolha desta informação foi executada pela
Sportech Solutions Corp., sendo possível calcular o designado “Tempo Adicional
Calculado” (Calculated Additional Time – CAT) através da soma aritmética
de todas as interrupções, posteriormente sugerido ao árbitro. A Premier League
adotou o mesmo mecanismo na temporada 2023/2024 (Kilpatrick, 2023).
Na Bundesliga alemã, a Sportech Solutions Corp. recolheu
o CAT durante a época 2022/2023, após o Mundial (segunda metade da temporada),
utilizando o mesmo método aplicado no torneio, mas sem sugerir aos árbitros o
tempo adicional a atribuir. Esta configuração ofereceu uma oportunidade única
para investigar até que ponto os árbitros atribuem o tempo adicional de acordo
com as regras e se estão, de alguma forma, enviesados neste processo. Para tal,
foi introduzido um novo parâmetro chamado “Erro de Tempo Adicional” (Additional
Time Error – ATE), definido como a diferença entre o CAT e o “Tempo
Adicional Atribuído” (Awarded Additional Time – AAT) pelo árbitro.
O tempo adicional é um elemento decisivo no futebol,
representando até 12,2% dos golos marcados nas principais ligas europeias
(Transfermarkt, 2024). Apesar dessa relevância, ainda não há estudos que
analisem em profundidade o CAT e o ATE. Estudos anteriores sugerem que
interrupções no jogo podem ser usadas como estratégia para perder tempo,
levando a um tempo adicional atribuído frequentemente inferior ao necessário.
Além disso, fatores como a presença do público da equipa da casa e a diferença
de golos podem influenciar as decisões dos árbitros sobre o tempo adicional
concedido (Augste & Cordes, 2016; Reade et al., 2022; Riedl et al., 2014). Contudo,
as análises carecem de dados precisos sobre o CAT, essenciais para avaliar a
aplicação rigorosa das Leis de Jogo.
Este estudo pioneiro explora o CAT e o ATE no futebol, analisado
3 tópicos: (i) a prevalência do CAT por tipo de interrupção na Bundesliga; (ii)
a relação entre CAT, tempo adicional concedido (figura 2) e ATE, verificando
possíveis vieses associados ao tipo de interrupção; (iii) o impacto da
diferença de golos no ATE, avaliando a influência sobre as decisões dos
árbitros. Os resultados fornecem informações essenciais para as ligas e
árbitros na aplicação e implementação das regras relativas ao tempo adicional
no futebol.
Figura 2. Exemplo de tempo adicional concedido num jogo da
Bundesliga (fonte: gettyimages.pt; imagem não publicada pelos autores).
Métodos
Amostra: o estudo utilizou dados de todos os 153 jogos das
jornadas 18–34 da temporada 2022/2023 da Bundesliga, na qual participaram 18
equipas e 25 árbitros. Cada árbitro concordou com a gravação em vídeo dos jogos
e com a recolha de dados.
Procedimentos: para cada jogo, foram analisadas todas as interrupções de
jogo relevantes para o cálculo do tempo adicional, conforme as Leis de Jogo
2023/2024 (IFAB, 2023b). Os dados incluíram o tipo de interrupção (substituição,
lesão, penálti, celebração de golo, sanção disciplinar, Árbitro Assistente de
Vídeo (VAR), outras razões e causas múltiplas), o momento e a duração da
ocorrência. A categoria “penálti” abrange a duração de discussões entre o
árbitro e os jogadores, sem envolvimento do VAR. A categoria “causas múltiplas”
foi usada para interrupções causadas por eventos simultâneos (e.g., lesão e
substituição). Registaram-se também o “diferencial de golos da equipa da casa”
(Home Goal Difference – HGD), correspondente à diferença de golos antes
do tempo adicional da segunda parte, e o “Tempo Adicional Atribuído” (AAT) por
período. O “Tempo Adicional Calculado” (CAT) foi obtido somando a duração das
interrupções de jogo. Os dados foram recolhidos por observadores humanos
profissionais e fornecidos pela Deutsche Fußball Liga.
Análise estatística: a
análise da distribuição das interrupções por tipo implicou que cada jogo
constituísse uma unidade estatística. Foram reportados os valores médios
absolutos (min:ss) e relativos (%) do CAT para os 8 tipos de interrupção,
divididos por primeira parte, segunda parte e tempo total. A avaliação da
influência do tipo de interrupção no tempo adicional atribuído (AAT) envolveu o
cálculo do “Erro de Tempo Adicional” (ATE), i.e., a diferença entre o CAT e o
AAT no tempo total. Regressões Lineares Múltiplas examinaram as relações entre
os tipos de CAT e o AAT e o ATE. De forma a explorar se, e em que medida, a
diferença de golos e a vantagem de jogar em casa influenciaram os árbitros, os
jogos foram categorizados com base no diferencial de golos (HGD). O critério Goal
Difference+ usou 5 categorias (>1, 1, 0, −1 e <−1), enquanto o Goal
Difference# utilizou apenas duas: “Desequilibrado” (HGD > 1 ou HGD <
−1) e “Equilibrado” (todos os restantes). Testes de Mann-Whitney U avaliaram o ATE em diferentes
resultados dos jogos. Como jogos desequilibrados apresentaram mais golos (3,94
± 1,74) do que os equilibrados (2,38 ± 1,46), foi feita uma análise adicional
excluindo as celebrações de golos. Testes Kruskal-Wallis H identificaram o ATE
em categorias de HGD, com comparações post hoc usando Dunn e ajuste de
Bonferroni. A dimensão do efeito (η²) foi classificada como pequena (0,010 ≤ η²
< 0,059), moderada (0,059 ≤ η² < 0,138) ou grande (η² ≥ 0,138) (Cohen,
1988). Os instrumentos utilizados foram o SPSS Statistics 25 e o Python 3.9.
Principais resultados
· Estatística descritiva
Em média, os jogos da
segunda metade da época da Bundesliga 2022/2023 apresentaram um “Tempo
Adicional Calculado” (CAT) total de 9:22 ± 3:11, com um “Tempo Adicional
Atribuído” (AAT) correspondente de 7:11 ± 2:27. As interrupções nos jogos (CAT
= 6:23 ± 2:23) e o tempo adicional atribuído (AAT = 4:55 ± 1:52) foram
significativamente mais elevados na segunda parte, comparativamente à primeira
(CAT = 2:58 ± 2:09, AAT = 2:15 ± 1:28). O “Erro de Tempo Adicional” (ATE) médio
foi de 2:10 ± 2:24 minutos no tempo total, com 0:42 ± 1:22 minutos na primeira
parte e 1:28 ± 1:57 na segunda parte.
·
Prevalência do Tempo
Adicional Calculado (CAT) por tipo de interrupção
Considerando o tempo total
de jogo, os tipos de interrupção que mais contribuíram para o CAT foram as
substituições (28,17%), as celebrações de golo (24,33%) e causas múltiplas
(22,97%). Exclusivamente na primeira parte, foram as celebrações de golo
(40,49%), as lesões (25,13%) e as causas múltiplas (18,76%), enquanto na
segunda parte foram as substituições (41,76%), as causas múltiplas (23,75%) e
as celebrações de golo (17,64%).
·
Relação entre o tipo
de interrupção e o Tempo Adicional Atribuído (ATT) e o Erro de Tempo Adicional
(ATE) para o jogo inteiro
O tempo associado a lesões
esteve significativamente relacionado com o AAT e o ATE. As substituições e a
intervenção do VAR também afetaram significativamente o AAT, mas não tiveram
impacto significativo no ATE. Por outro lado, as celebrações de golos
influenciaram significativamente o ATE, mas não o AAT. Já os penáltis e as
sanções disciplinares foram 2 tipos de CAT que não afetaram o AAT, embora estivessem
consideravelmente associados ao ATE.
·
Distribuição do Erro
de Tempo Adicional (ATE) em função da diferença de golos
O ATE foi
significativamente maior em jogos desequilibrados (imbalanced) em
comparação com jogos equilibrados (close), com um efeito de grande
magnitude (Figura 3a). No teste adicional, que excluiu as celebrações de golos,
o ATE manteve-se significativamente maior em jogos desequilibrados, embora com
uma dimensão de efeito pequena. Os resultados também mostraram um ligeiro viés
a favor da equipa da casa, uma vez que o ATE foi mais elevado quando a equipa
da casa estava em vantagem (diferença de golos > 1; Figura 3b).
Figura 3. Erro de Tempo Adicional (ATE) agrupado por diferença de
golos# (parte A) e diferença de golos+ (parte B) (golos da equipa da casa –
golos da equipa visitante). ES refere-se à dimensão do efeito, e * indica
diferenças significativas. O ATE em jogos desequilibrados (imbalance)
foi significativamente maior do que em jogos equilibrados (close),
indicando um viés dos árbitros ao alocar menos tempo adicional em jogos já
decididos. Mais concretamente, a parte B mostra um ATE significativamente mais
elevado quando a equipa da casa lidera por mais de 1 golo, em comparação com
HGD = 1, 0 e −1. Além disso, o ATE médio foi menor quando a equipa da casa estava
a perder por apenas 1 golo, o que sugere um ligeiro viés a favor dos visitados.
Aplicações práticas
Uma potencial melhoria na
formação dos árbitros e nos processos de tomada de decisão, incluindo uma maior
consciência na atribuição do tempo adicional, pode beneficiar substancialmente
o jogo de futebol. Até a literatura científica demonstra que as equipas
utilizam interrupções de jogo para fins estratégico-táticos (Augste &
Cordes, 2016), como a perda de tempo (Morgulev & Galily, 2019). Neste
contexto, o aperfeiçoamento do cálculo do tempo adicional pode garantir que os
jogos tenham uma duração mais justa, desencorajando as equipas de provocarem
conflitos desnecessários, forçarem lesões ou prolongarem excessivamente as
celebrações de golos. Com base nos resultados obtidos, identificaram-se 3 aplicações
práticas que poderão ser exploradas no futuro para adequar o tempo adicional
mínimo concedido às incidências de cada partida:
1. Adotar a sugestão de Tempo Adicional Calculado (CAT)
para maior justiça competitiva: a utilização do CAT sugerido por
fornecedores de dados dos jogos, como a OPTA, seguindo o exemplo do Campeonato
do Mundo FIFA 2022, pode assegurar que o tempo adicional reflita com maior
precisão o tempo perdido durante as interrupções. Esta abordagem ajudaria a
reduzir jogos com menos de 45 minutos de tempo útil e a promover maior equidade
competitiva. No entanto, a implementação deve ser precedida de uma avaliação
cuidadosa, tendo em conta as perceções dos adeptos, que manifestaram críticas
aos tempos adicionais prolongados no último Mundial.
2. Aperfeiçoar a formação de árbitros para
contabilização justa das interrupções: os resultados mostram que o tipo de
interrupção afeta o Tempo Adicional Atribuído (AAT) e o Erro de Tempo Adicional
(ATE). Embora as substituições e as intervenções do VAR sejam bem
contabilizadas, interrupções como lesões e celebrações de golo são
frequentemente subestimadas. É fundamental que os árbitros avaliem a duração e
o impacto de todas as interrupções, especialmente agora que estas estão mais detalhadas
nas Leis de Jogo. Os programas de formação devem enfatizar a importância de
contabilizar cada interrupção com precisão, garantindo que o tempo adicional
reflete fielmente os acontecimentos em campo.
3. Sensibilizar os árbitros para decisões justas
independentemente das dinâmicas situacionais: os dados sugerem que o Erro
de Tempo Adicional (ATE) é maior em jogos decididos. Os árbitros tendem a
atribuir menos tempo adicional nestas situações, possivelmente devido a um viés
consciente ou inconsciente. Embora as Leis do Jogo (IFAB, 2023b) concedam aos
árbitros poder discricionário para gerir estas situações – a designada “lei do
bom senso” –, finalizar jogos desequilibrados mais cedo pode ser mal interpretado.
Também foi observado que os árbitros atribuem tempos adicionais mais adequados
quando a equipa da casa ainda pode empatar, o que reflete uma ligeira tendência
a favor da equipa da casa. Recomenda-se que o treino dos árbitros inclua estratégias
para aumentar a precisão das decisões relativas ao tempo adicional, quer em
contextos de resultados desequilibrados, como ao equacionar o “fator casa”.
Conclusão
O estudo explorou o Tempo Adicional Calculado (CAT) e o
Erro de Tempo Adicional (ATE) na Bundesliga alemã. Verificou-se que os árbitros
frequentemente atribuem menos tempo adicional do que o sugerido pelas Leis de
Jogo. Na alocação desse tempo, priorizam interrupções como lesões, intervenções
do VAR e substituições, mas subestimam as celebrações de golo, apesar de estas
contribuírem significativamente para o tempo total de interrupções. Houve uma
tendência para atribuir menos tempo adicional em jogos com uma diferença de
golos superior a um no final do tempo regulamentar. Por outro lado, quando a
equipa da casa estava a perder por um golo, o tempo adicional foi ligeiramente
mais adequado, indiciando um ligeiro viés a favor da equipa da casa. Estes
resultados destacam a importância de melhorias na formação dos árbitros e nos
seus processos de tomada de decisão.
P.S.:
1- As ideias que constam neste texto foram originalmente
escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;
2- Para melhor compreender as ideias acima referidas,
recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3- As citações efetuadas nesta rubrica foram utilizadas pelos
autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão
original publicada na revista Science and Medicine in Football.