07/02/2015

Modelo de jogo e criatividade tática: duas faces da mesma moeda?

No âmbito do treino do futebol, a expressão «modelo de jogo» tem sido amplamente difundida nos últimos anos, sobretudo em Portugal e nos países lusófonos. O advento e a notoriedade adquirida pela Periodização Tática – modelo de planeamento utilizado por José Mourinho, André Villas-Boas, Carlos Carvalhal, entre outros – assim o determinaram. O conceito de modelo de jogo remete-nos para uma série de princípios que concedem organização nos diferentes momentos (pessoalmente, prefiro o termo fases) do jogo (Delgado-Bordonau & Mendez-Villanueva, 2012). Entre muitas outras variáveis, o modelo de jogo está subjacente à filosofia do treinador/equipa técnica e pode, segundo diversos autores da especialidade, ser adotado ou criado. Esta modelação é, em primeira instância, obra do treinador e que, posteriormente, será interpretada e aplicada pelos seus jogadores.

Por sua vez, a criatividade tática é algo que está inerente ao desempenho dos jogadores em contexto de jogo. De acordo com o investigador alemão Daniel Memmert (2014), a criatividade tática é definida como a criação/execução de diversas soluções para problemas em grupos específicos de indivíduos ou em situações de jogo coletivas, que podem ser consideradas como surpreendentes, raras e/ou originais. Esta criatividade tática, também associada ao conceito de inteligência tática, é cada vez mais acreditada pelos treinadores de elite como uma característica fundamental do jogador no futebol contemporâneo.

Imagem: Pablo Aimar - um «jogador-exemplo» de criatividade tática.

O problema que tenho identificado através da observação sistemática, de inúmeras entrevistas e com o qual também me debato em todas as sessões de treino, resume-se a uma singela questão: até que ponto a definição e a operacionalização de um determinado modelo de jogo não constrange a criatividade tática dos jogadores?

A meu ver, são duas faces da mesma moeda e algo sobre o qual o treinador/equipa técnica deve(m) ponderar em permanência ao longo da época desportiva. Como conceder organização, sem condicionar a capacidade criativa dos nossos jogadores?

Assumamos o exemplo que consta na Figura 1.

Figura 1. Exemplo da hierarquização e da fragmentação dos princípios de jogo na fase de organização ofensiva.

O treinador pretende que a bola circule rápido das zonas de maior concentração de jogadores oponentes para outras zonas menos congestionadas. Para isso, prepara os jogadores para aumentar a área da equipa em largura (subprincípio 1: espaço) e que haja, pelo menos, três linhas de passe relativamente ao portador da bola (subprincípio 2: soluções múltiplas). Até aqui, parece-me tudo muito razoável. Quando começamos a fracionar os subprincípios em mais sub-subprincípios e sub-sub-sub-etc., deixo de concordar. É precisamente neste ponto que eu entendo que o excesso de regras/normas de ação (modelização comportamental) compromete a criatividade tática dos jogadores.

Temos um princípio bem definido («circular a bola para longe da zona de pressão adversária»), mais dois subprincípios adicionais e é com essa matéria que, no treino, o treinador/equipa técnica deve(m) propor tarefas para que os jogadores, individual e coletivamente, encontrem soluções (descoberta guiada) para cumprirem os princípios estipulados e que estão consubstanciados no modelo de jogo.

Deste modo, conseguiremos tirar o máximo proveito das duas faces da moeda (modelo de jogo e criatividade tática) num processo que requer, por um lado, o desenvolvimento dos jogadores e da equipa e, por outro lado, o obtenção de resultados em competição.


Referências
Delgado-Bordonau, J. L., & Mendez-Villanueva, A. (2012). Tactical periodization: Mourinho’s best-kept secret? Soccer NSCAA Journal, 3, 28-34.
Memmert, D. (2014). Tactical creativity in team sports. Research in Physical Education, Sport and Health, 13(1), 13-18.

6 comentários:

Unknown disse...

Boas Carlos,

Apoio totalmente esta ideologia que escreveste aqui neste post, tenho me debatido ultimamente com um tema semelhante, em que os comportamentos táticos e técnicos assumidos em jogo devem estar de acordo com as informações que os jogadores retiram do contexto/situação de jogo em que se encontram e não de modelos pré-definidos por treinadores/equipas técnicas, tal e qual como aqui referes. Até fiquei "arrepiado" por grande parte daquilo que aqui escreveste, porque tem feito parte do meu pensamento nos últimos tempos e é algum que apoio muito e que acho que deve ser levado em conta nas abordagens realizadas pelos treinadores em contexto de ensino.
Excelente publicação!
Grande abraço,

Tiago Salvador

Carlos Humberto Almeida disse...

Obrigado, amigo Tiago. :)

É um tema que suscita muita discussão entre os treinadores e que deve tomado em consideração nos processos de planeamento e condução do treino.

Decerto que haverá perspetivas diferentes, porém, como tudo na vida, não há apenas um caminho para se alcançar o êxito, independentemente de qual seja o principal objetivo a cumprir.

Um abraço!

Unknown disse...

Post interessante Carlos. Sem duvida um tema que embora interessante, não deixe de ter a sua subjetividade. Ora bem, na minha maneira de ver um treinador ao implementar as suas ideias, modelos, fases, processos de jogo ou o que lhe quiserem chamar, não deixa de tirar a criatividade, "magia" ao futebol dos seus jogadores. E porquê? Nos princípios e sub princípios que referencias-te, o jogador assimila a tarefa e executa consoante a sua leitura de jogo, tentando sempre alcançar o pedido. Quero com isto dizer que o atleta pode executar o principio de variadíssimas formas, estando a sua escolha dependente da sua criatividade.
Abraço

Carlos Humberto Almeida disse...

Boa noite, João. Percebo a tua ideia e, de certa forma, concordo com ela.

A questão é: quantos treinadores conseguem operacionalizar/implementar isso na prática, sem condicionar a criatividade dos seus jogadores?

Por outro lado, quando se pretende «modelizar» em demasia o jogo da equipa, com princípios mais sub-princípios mais sub-sub-princípios, eu creio que é muito complicado, senão mesmo impossível, não constranger a criatividade dos jogadores.

O ideal para o futebol de rendimento será mesmo encontrar um meio termo.

Um abraço!

Gênio disse...

Acontece que depois da Lei 8.650/1993, mais precisamente de 20 de abril de 1993, os "donos dos times de futebol" no que se refere a preparação, introduziram idéias, métodos e processos, tão ridículos são os jogadores que eles formaram a partir da promulgação dessa lei. Com isso não queiro dizer que os Professores de Educação Física não tenham o seu lugar em uma equipe de futebol. Tem sim e na preparação física eles são insubstituíveis. Agora, na formação de atleta, concordo que seja nível superior, mas, sem qualquer área, desde que tenha jogado futebol. Caso contrário, colocar quem nunca jogou futebol para ser técnico, mesmo que tenha nível superior, vai produzir o que estamos vendo no Brasil de Hoje: perda de competitividade, perda da hegemonia mundial,perda da qualidade do atleta, apologia a estatura e a ruindade ded bola.

Carlos Humberto Almeida disse...

Caro Juraci, compreendo o que refere. Em meu ver, ter sido praticante de futebol ajuda imenso a perceber o jogo nas suas diversas dimensões e isso facilita não apenas a transmissão dos conteúdos, mas também o entendimento por parte dos jogadores daquilo que o treinador pretende. A vivência, a experiência prévias são, neste aspecto, predicados que se podem revelar muito importantes.

No que se refere ao futebol brasileiro atual, a questão parece-me ainda mais complexa. Recentemente, o prof. Jorge Castelo deu uma entrevista - http://m.lance.com.br/selecao-brasileira/nota/LANNWS20160115_276553 - que eu acho que é bastante elucidativa e com a qual concordo na maioria dos pontos. Aliás, em novembro passado escrevi sobre a seleção brasileira aqui no Linha de Passe:

http://linhadepasse.blogspot.com/2015/11/a-atual-selecao-brasileira-o-paradigma.html

Contudo, creio que está a surgir uma nova geração de treinadores no Brasil que provavelmente irão aproveitar melhor o enorme potencial do país no futebol. São treinadores mais informados, melhor formados e que poderão aproximar a filosofia de treino e de competição ao que se passa, por exemplo, na Europa. Reforço que a experiência prévia no futebol de um técnico formado no ensino superior pode ser um aspeto catalisador da qualidade do treino, porém, tal não implica que um técnico ex-jogador seja mau e que um prof. de Educação Física sem experiência no futebol não venha a ter sucesso.

Com os melhores cumprimentos,

CA