No rescaldo da recente
vitória do SL Benfica na Cova da Piedade (0-4), para a 3.ª eliminatória da Taça
de Portugal, o jornal O JOGO produziu a seguinte capa no dia 19 de outubro de
2019:
Figura 1. Capa de O
JOGO, 19 de outubro de 2019 (fonte: ojogo.pt). |
Nesta peça destaco o
excerto: “mas o duelo de goleadores teve um vencedor claro: De Tomás, 0;
Vinícius, 2”. Não só acho a decisão editorial de muito mau gosto, como também é
pouco ou nada informativa no que ao próprio futebol diz respeito. Escrevo isto
porque restringe as tarefas de um qualquer jogador avançado à quantidade de
golos marcados, sendo todas as outras missões táticas (e.g., ligar entre linhas
no corredor central, explorar espaços nos corredores laterais, criar condições
espaciotemporais vantajosas em zonas vitais de jogo para outros jogadores poderem
finalizar, pressionar as primeiras opções de passe da linha defensiva
adversária, condicionar a circulação de bola por determinadores jogadores
adversários, etc.) uma espécie de miragem.
No Facebook, além de
colocar a imagem da capa do diário desportivo, acrescentei uma breve mensagem,
aludindo ao que me parece ser uma clara campanha “para descredibilizar aquele
que, na minha modesta opinião, é o melhor avançado do SL Benfica”. Também demonstrei,
com recurso a uma imagem (figura 2), o que sugere ser alguma falta de
solidariedade ou qualidade de alguns companheiros de equipa para servir em
melhores condições o avançado espanhol.
Figura 2. O 2v0+Gr do
SL Benfica, aos 23’, contra o CD Cova da Piedade (fonte: vsports.pt). |
Se diversas pessoas, mais
ou menos ligadas ao futebol, concordaram com a minha opinião, ainda persiste uma
ideia bastante generalizada de que, independentemente das circunstâncias, naquela
zona é para finalizar, designadamente se a última ação for de um avançado/ponta
de lança, como é o Carlos Vinícius. Esta divergência de noções levanta uma
questão que nos remete para o ensino do futebol nos escalões de formação de
base: em situações de dois atacantes contra o guarda-redes (Gr) oponente (i.e.,
2v0+Gr), o primeiro atacante deve assumir a finalização ou “fixar” a posição do
Gr e assistir o outro atacante para finalizar?
Regra geral, a resposta é sempre
a mesma: “depende”. Depende da posição dos atacantes no espaço de jogo, do
enquadramento do Gr, da capacidade de execução individual dos atacantes, etc. Não
obstante, é também norma o princípio da penetração/progressão, sendo um dos
objetivos fundamentais “fixar” os apoios do adversário direto para criar condições
numéricas e espaciotemporais mais vantajosas para que um companheiro de equipa
dê continuidade ou finalize o processo ofensivo. Partindo do pressuposto basilar
de que a missão mais importante do Gr é defender a baliza, este deverá sempre adotar
um bom enquadramento entre a bola e a sua baliza, constituindo oposição direta
ao portador da bola o que, num cenário de 2v0+Gr, deixa o outro atacante à
mercê da qualidade do portador da bola ou, num contexto mais aleatório, do
acaso.
Curiosamente, menos de 24
horas depois do lance de Carlos Vinícius e Raúl de Tomás, houve uma jogada
ofensiva idêntica no SD Eibar x FC Barcelona, para a La Liga, mas com
protagonistas e resultado diferentes. Lionel Messi isolado, “fixou” o Gr e
serviu Luis Suárez para o 0-3 final (figura 3).
Figura 3. O 2v0+Gr do
FC Barcelona, aos 66’, contra o SD Eibar (fonte: www.youtube.com). |
Em poucos segundos, o FIFA
The Best 2019 (e hexa bota de ouro) Messi exemplificou na perfeição tudo o
que foi escrito previamente (ver vídeo em baixo anexado). José Mourinho referiu, há tempos, que primeiro é
necessário vencer, obter-se sucesso, depois cria-se doutrina. Se há aspetos
básicos que dispensam troféus para ser doutrina, o 2v0+Gr é um deles. Contudo,
não é uma problemática estritamente do foro tático-técnico, i.e., executar em
função das melhores oportunidades de ação (affordances), é ainda social,
psicológica e emocional. O golo é uma enorme tentação e, ao mais alto nível,
prescindir do protagonismo do golo em prol do bem comum (equipa) não está ao
alcance de todos.
Neste sentido, para além
do desenvolvimento de competências de cariz individual, julgo que é muito
importante (e não acessório) que as crianças e os jovens entendam que se jogarem
para a equipa, mais cedo ou mais tarde, a equipa irá jogar para elas, aquilo
que, em termos sociobiológicos, representa uma autêntica simbiose.
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