20/10/2019

O 2v0+Gr no futebol: “fixar” ou finalizar?

No rescaldo da recente vitória do SL Benfica na Cova da Piedade (0-4), para a 3.ª eliminatória da Taça de Portugal, o jornal O JOGO produziu a seguinte capa no dia 19 de outubro de 2019:

Figura 1. Capa de O JOGO, 19 de outubro de 2019 (fonte: ojogo.pt).

Nesta peça destaco o excerto: “mas o duelo de goleadores teve um vencedor claro: De Tomás, 0; Vinícius, 2”. Não só acho a decisão editorial de muito mau gosto, como também é pouco ou nada informativa no que ao próprio futebol diz respeito. Escrevo isto porque restringe as tarefas de um qualquer jogador avançado à quantidade de golos marcados, sendo todas as outras missões táticas (e.g., ligar entre linhas no corredor central, explorar espaços nos corredores laterais, criar condições espaciotemporais vantajosas em zonas vitais de jogo para outros jogadores poderem finalizar, pressionar as primeiras opções de passe da linha defensiva adversária, condicionar a circulação de bola por determinadores jogadores adversários, etc.) uma espécie de miragem.

No Facebook, além de colocar a imagem da capa do diário desportivo, acrescentei uma breve mensagem, aludindo ao que me parece ser uma clara campanha “para descredibilizar aquele que, na minha modesta opinião, é o melhor avançado do SL Benfica”. Também demonstrei, com recurso a uma imagem (figura 2), o que sugere ser alguma falta de solidariedade ou qualidade de alguns companheiros de equipa para servir em melhores condições o avançado espanhol.

Figura 2. O 2v0+Gr do SL Benfica, aos 23’, contra o CD Cova da Piedade (fonte: vsports.pt).

Se diversas pessoas, mais ou menos ligadas ao futebol, concordaram com a minha opinião, ainda persiste uma ideia bastante generalizada de que, independentemente das circunstâncias, naquela zona é para finalizar, designadamente se a última ação for de um avançado/ponta de lança, como é o Carlos Vinícius. Esta divergência de noções levanta uma questão que nos remete para o ensino do futebol nos escalões de formação de base: em situações de dois atacantes contra o guarda-redes (Gr) oponente (i.e., 2v0+Gr), o primeiro atacante deve assumir a finalização ou “fixar” a posição do Gr e assistir o outro atacante para finalizar?

Regra geral, a resposta é sempre a mesma: “depende”. Depende da posição dos atacantes no espaço de jogo, do enquadramento do Gr, da capacidade de execução individual dos atacantes, etc. Não obstante, é também norma o princípio da penetração/progressão, sendo um dos objetivos fundamentais “fixar” os apoios do adversário direto para criar condições numéricas e espaciotemporais mais vantajosas para que um companheiro de equipa dê continuidade ou finalize o processo ofensivo. Partindo do pressuposto basilar de que a missão mais importante do Gr é defender a baliza, este deverá sempre adotar um bom enquadramento entre a bola e a sua baliza, constituindo oposição direta ao portador da bola o que, num cenário de 2v0+Gr, deixa o outro atacante à mercê da qualidade do portador da bola ou, num contexto mais aleatório, do acaso.

Curiosamente, menos de 24 horas depois do lance de Carlos Vinícius e Raúl de Tomás, houve uma jogada ofensiva idêntica no SD Eibar x FC Barcelona, para a La Liga, mas com protagonistas e resultado diferentes. Lionel Messi isolado, “fixou” o Gr e serviu Luis Suárez para o 0-3 final (figura 3).

Figura 3. O 2v0+Gr do FC Barcelona, aos 66’, contra o SD Eibar (fonte: www.youtube.com).

Em poucos segundos, o FIFA The Best 2019 (e hexa bota de ouro) Messi exemplificou na perfeição tudo o que foi escrito previamente (ver vídeo em baixo anexado). José Mourinho referiu, há tempos, que primeiro é necessário vencer, obter-se sucesso, depois cria-se doutrina. Se há aspetos básicos que dispensam troféus para ser doutrina, o 2v0+Gr é um deles. Contudo, não é uma problemática estritamente do foro tático-técnico, i.e., executar em função das melhores oportunidades de ação (affordances), é ainda social, psicológica e emocional. O golo é uma enorme tentação e, ao mais alto nível, prescindir do protagonismo do golo em prol do bem comum (equipa) não está ao alcance de todos.


Neste sentido, para além do desenvolvimento de competências de cariz individual, julgo que é muito importante (e não acessório) que as crianças e os jovens entendam que se jogarem para a equipa, mais cedo ou mais tarde, a equipa irá jogar para elas, aquilo que, em termos sociobiológicos, representa uma autêntica simbiose.

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