23/10/2019

Terceira eliminatória histórica na Taça de Portugal 2019/2020

No século XXI, desde que as equipas da I Liga começaram a entrar em prova na 3.ª eliminatória da Taça de Portugal, em 2008/2009, nunca mais de um terço das equipas do escalão principal tinham sido eliminadas nesta ronda da prova (figura 1).


Figura 1. Percentagem de equipas eliminadas na 3.ª eliminatória da Taça de Portugal desde 2008/2009.
Nota 1: nas épocas anteriores a 2008/2009, as equipas do escalão principal entravam na competição a partir da 4.ª eliminatória;
Nota 2: na I Liga participam 18 equipas desde 2014/2015 (antes eram 16).


Aconteceu no fim-de-semana passado (18-20 de outubro de 2019), com 7 equipas das 18 participantes na I Liga/Liga NOS (38,9%) a serem eliminadas por adversários de escalões inferiores, a saber:

FC Alverca (Campeonato de Portugal) x Sporting CP (I Liga): 2-0
Sintra Football (Campeonato de Portugal) x Vitória SC (I Liga): 2-1 (após pen.)
CD Feirense (II Liga) x CD Tondela (I Liga): 3-0
SC Farense (II Liga) x CD Aves (I Liga): 5-2
Académica OAF (II Liga) x Portimonense F. SAD (I Liga): 2-1
GD Chaves (II Liga) x FC Boavista (I Liga): 2-1 (após prol.)
SC Beira-Mar (Campeonato de Portugal) x CS Marítimo (I Liga): 3-2 (após pen.; figura 2)

Figura 2. Em Aveiro, o Beira-Mar eliminou o Marítimo (fonte: record.pt).

Mais do ressalvar o facto, que não passa de uma mera curiosidade, urge tentar compreendê-lo. Quais os motivos que poderão ter determinado este desfecho? Avanço com duas linhas de raciocínio que, ainda que possuam alguma especulação na sua formulação, são suportadas por alguma evidência científica, por algum conhecimento empírico e não são indissociáveis.

1) Dimensão estrutural: A competitividade
Investigações prévias efetuadas no futebol português têm sugerido que a competitividade dos campeonatos é mais elevada em divisões inferiores, as ditas semiprofissionais (Campeonato de Portugal) ou amadoras (Campeonatos Distritais). Parece que a relação de proporcionalidade direta entre a vantagem de jogar em casa (o fenómeno “home advantage”) e a competitividade das ligas é um facto, ou seja, quanto mais competitiva for a liga, maior vantagem adquire a equipa que joga no seu reduto. Por exemplo, numa análise levada a cabo ao longo de 11 épocas consecutivas no futebol português (2005/2006 a 2015/2016), verificámos que a vantagem de jogar em casa foi, precisamente, mais elevada nos níveis semiprofissional (II Divisão B e Campeonato de Portugal; 60.46%) e amador (principais divisões distritais; 60.36%), comparativamente ao valor médio apurado para o nível profissional (I Liga; 58.31%) (Almeida & Volossovitch, 2017). Equipas mais fortes, como FC Porto, SL Benfica e Sporting CP têm, habitualmente, menor vantagem em jogar em casa (i.e., próximo dos 50%), por força da diferença de qualidade para a maioria das equipas adversárias; em síntese, jogar em casa ou fora é, para estas equipas, praticamente indiferente.

Assim, é lógico que as equipas de divisões inferiores beneficiem da maior competitividade existente entre elas para se aproximarem de equipas de patamares mais elevados (incluído o profissional), no que ao rendimento desportivo diz respeito. Adicionalmente, é evidente o esforço que sido realizado por clubes de menores dimensões para se modernizarem e profissionalizarem as suas estruturas, seja no âmbito da diversidade e funcionalidade das infraestruturas desportivas, da multidisciplinaridade de áreas de intervenção com a celebração de protocolos com outras entidades locais ou, sobretudo, no incremento da qualidade dos recursos humanos que empregam (treinadores, preparadores físicos, scouts, etc.). Daquilo que me apercebo, há treinadores no Campeonato de Portugal que, em termos de competência, não ficam (nada) atrás de colegas que trabalham, desde sempre, na primeira ou segunda ligas. Se alargamos esta particularidade ao futebol de formação, à qual não estará alheio o recente processo de certificação de entidades formadoras implementado pela Federação Portuguesa de Futebol, é crível que brecha qualitativa entre clubes/equipas profissionais e outros de menor estatuto vá estreitando.

2) Dimensão contextual: o binómio “gestão de grupo – oportunidade de ouro”
Neste ponto, utilizo uma analogia com tempos idos. Um nobre tenta intrometer-se, despercebidamente, numa festa popular, vestindo para o efeito um traje menos vistoso, até corriqueiro. Todavia, como a festa popular é muito importante para os plebeus, estes vestem-se a rigor, talvez além das suas possibilidades, para fazer jus à cerimónia. Ao chegar à festa, e confrontando a sua figura com os demais presentes, o nobre, envergonhado, volta para casa.

Não é novidade que muitos treinadores utilizam as primeiras eliminatórias da Taça de Portugal para, aproveitando a superioridade teoricamente atribuída à sua equipa relativamente aos oponentes, procederem à gestão do plantel que têm ao seu dispor. Não contesto, porque julgo que é fundamental manter todos os elementos preparados, motivados e cientes de que têm um papel ativo (e positivo) no grupo. Contudo, muitas vezes, estes jogadores menos utilizados chegam ao jogo da Taça de Portugal com um ritmo competitivo deficitário, o que compromete o cumprimento de missões táticas individuais e a eficácia das dinâmicas coletivas preconizadas no modelo de jogo. O rendimento desportivo é um processo de afinação contínua aos diversos problemas contextuais do jogo; sem competição regular, a afinação promovida pelo treino pode revelar-se insuficiente.

Por outro lado, as equipas de escalões inferiores encaram os jogos com os ditos “grandes” como uma “oportunidade de ouro” para brilharem, nem que seja só por um dia. A oportunidade de ser capa de jornal, a oportunidade futura de serem contratados por clubes com outras condições, ou a oportunidade para fazer história no clube que representam. Este “dar tudo” perante um adversário superior, focados num objetivo altamente desafiante, sem elevada pressão psicológica associada, leva a que joguem, individual e coletivamente, acima dos níveis de rendimento comuns. Convém destacar que tudo isto é potenciado pela envolvência extraordinária proporcionada pelo público local.

Tudo o que atrás foi referido, em conjunto com outros fatores não debatidos, geraram circunstâncias favoráveis para que as diferenças (teóricas) se tivesse esbatido em diversos jogos disputados nesta 3.ª eliminatória. Para bem do futebol português, é bom que a Taça de Portugal nos continue a brindar com estes resultados inesperados ou históricos. Porque só uma competição especial como esta nos permite encarar o futebol como uma festa, na qual um “pequeno” pode rejeitar a sua condição e viver e sonhar como um “grande” por um dia.


Referência
Almeida, C. H., & Volossovitch, A. (2017). Home advantage in Portuguese football: Effects of level of competition and mid-term trends. International Journal of Performance Analysis in Sport, 17(3), 244-255.

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