No século XXI, desde que
as equipas da I Liga começaram a entrar em prova na 3.ª eliminatória da Taça de
Portugal, em 2008/2009, nunca mais de um terço das equipas do escalão principal
tinham sido eliminadas nesta ronda da prova (figura 1).
Aconteceu no fim-de-semana
passado (18-20 de outubro de 2019), com 7 equipas das 18 participantes na I
Liga/Liga NOS (38,9%) a serem eliminadas por adversários de escalões inferiores,
a saber:
FC Alverca (Campeonato de Portugal) x Sporting CP (I Liga): 2-0
Sintra Football (Campeonato de Portugal) x Vitória SC (I Liga): 2-1 (após
pen.)
CD Feirense (II Liga) x CD Tondela (I Liga): 3-0
SC Farense (II Liga) x CD Aves (I Liga): 5-2
Académica OAF (II Liga) x Portimonense F. SAD (I Liga): 2-1
GD Chaves (II Liga) x FC Boavista (I Liga): 2-1 (após prol.)
SC Beira-Mar (Campeonato de Portugal) x CS Marítimo (I Liga): 3-2
(após pen.; figura 2)
Figura 2. Em Aveiro, o Beira-Mar eliminou o Marítimo (fonte: record.pt). |
Mais do ressalvar o facto,
que não passa de uma mera curiosidade, urge tentar compreendê-lo. Quais os
motivos que poderão ter determinado este desfecho? Avanço com duas linhas de
raciocínio que, ainda que possuam alguma especulação na sua formulação, são
suportadas por alguma evidência científica, por algum conhecimento empírico e
não são indissociáveis.
1) Dimensão estrutural: A
competitividade
Investigações prévias
efetuadas no futebol português têm sugerido que a competitividade dos
campeonatos é mais elevada em divisões inferiores, as ditas semiprofissionais (Campeonato
de Portugal) ou amadoras (Campeonatos Distritais). Parece que a relação de
proporcionalidade direta entre a vantagem de jogar em casa (o fenómeno “home
advantage”) e a competitividade das ligas é um facto, ou seja, quanto mais
competitiva for a liga, maior vantagem adquire a equipa que joga no seu reduto.
Por exemplo, numa análise levada a cabo ao longo de 11 épocas consecutivas no
futebol português (2005/2006 a 2015/2016), verificámos que a vantagem de jogar
em casa foi, precisamente, mais elevada nos níveis semiprofissional (II Divisão
B e Campeonato de Portugal; 60.46%) e amador (principais divisões distritais;
60.36%), comparativamente ao valor médio apurado para o nível profissional (I
Liga; 58.31%) (Almeida & Volossovitch, 2017). Equipas mais fortes, como FC
Porto, SL Benfica e Sporting CP têm, habitualmente, menor vantagem em jogar em
casa (i.e., próximo dos 50%), por força da diferença de qualidade para a
maioria das equipas adversárias; em síntese, jogar em casa ou fora é, para
estas equipas, praticamente indiferente.
Assim, é lógico que as
equipas de divisões inferiores beneficiem da maior competitividade existente entre
elas para se aproximarem de equipas de patamares mais elevados (incluído o
profissional), no que ao rendimento desportivo diz respeito. Adicionalmente, é
evidente o esforço que sido realizado por clubes de menores dimensões para se
modernizarem e profissionalizarem as suas estruturas, seja no âmbito da
diversidade e funcionalidade das infraestruturas desportivas, da multidisciplinaridade
de áreas de intervenção com a celebração de protocolos com outras entidades
locais ou, sobretudo, no incremento da qualidade dos recursos humanos que
empregam (treinadores, preparadores físicos, scouts, etc.). Daquilo que
me apercebo, há treinadores no Campeonato de Portugal que, em termos de
competência, não ficam (nada) atrás de colegas que trabalham, desde sempre, na primeira
ou segunda ligas. Se alargamos esta particularidade ao futebol de formação, à
qual não estará alheio o recente processo de certificação de entidades
formadoras implementado pela Federação Portuguesa de Futebol, é crível que
brecha qualitativa entre clubes/equipas profissionais e outros de menor
estatuto vá estreitando.
2) Dimensão contextual: o
binómio “gestão de grupo – oportunidade de ouro”
Neste ponto, utilizo uma
analogia com tempos idos. Um nobre tenta intrometer-se, despercebidamente,
numa festa popular, vestindo para o efeito um traje menos vistoso, até
corriqueiro. Todavia, como a festa popular é muito importante para os plebeus,
estes vestem-se a rigor, talvez além das suas possibilidades, para fazer jus à
cerimónia. Ao chegar à festa, e confrontando a sua figura com os demais
presentes, o nobre, envergonhado, volta para casa.
Não é novidade que muitos
treinadores utilizam as primeiras eliminatórias da Taça de Portugal para,
aproveitando a superioridade teoricamente atribuída à sua equipa relativamente aos oponentes,
procederem à gestão do plantel que têm ao seu dispor. Não contesto, porque julgo
que é fundamental manter todos os elementos preparados, motivados e cientes
de que têm um papel ativo (e positivo) no grupo. Contudo, muitas vezes, estes
jogadores menos utilizados chegam ao jogo da Taça de Portugal com um ritmo competitivo deficitário, o que compromete o cumprimento de missões táticas individuais e a
eficácia das dinâmicas coletivas preconizadas no modelo de jogo. O rendimento
desportivo é um processo de afinação contínua aos diversos problemas
contextuais do jogo; sem competição regular, a afinação promovida pelo treino pode revelar-se insuficiente.
Por outro lado, as equipas
de escalões inferiores encaram os jogos com os ditos “grandes” como uma “oportunidade
de ouro” para brilharem, nem que seja só por um dia. A oportunidade de ser capa
de jornal, a oportunidade futura de serem contratados por clubes com outras
condições, ou a oportunidade para fazer história no clube que representam. Este
“dar tudo” perante um adversário superior, focados num objetivo altamente desafiante,
sem elevada pressão psicológica associada, leva a que joguem, individual e
coletivamente, acima dos níveis de rendimento comuns. Convém destacar que tudo
isto é potenciado pela envolvência extraordinária proporcionada pelo público
local.
Tudo o que atrás foi
referido, em conjunto com outros fatores não debatidos, geraram
circunstâncias favoráveis para que as diferenças (teóricas) se tivesse esbatido
em diversos jogos disputados nesta 3.ª eliminatória. Para bem do futebol português, é bom que a Taça
de Portugal nos continue a brindar com estes resultados inesperados ou históricos.
Porque só uma competição especial como esta nos permite encarar o futebol como
uma festa, na qual um “pequeno” pode rejeitar a sua condição e viver e sonhar
como um “grande” por um dia.
Referência
Almeida, C. H., & Volossovitch, A.
(2017). Home advantage in Portuguese football: Effects
of level of competition and mid-term trends. International
Journal of Performance Analysis in Sport, 17(3),
244-255.
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