Nota prévia: O artigo
científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios:
(1) publicado numa revista científica internacional com revisão de
pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema
que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.
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Autores: Kelly, A., Wilson, M. R., Jackson,
D. T., Goldman, D. E., Turnnidge, J., Côté, J., & Williams, C. A.
País: Inglaterra
Data de publicação: 17-novembro-2020
Título: A multidisciplinary
investigation into “playing-up” in academy football according to age phase
Revista: Journal
of Sports Sciences
Referência: Kelly, A., Wilson, M. R., Jackson, D. T., Goldman, D. E., Turnnidge, J., Côté, J., & Williams, C. A. (2020). A multidisciplinary investigation into “playing-up” in academy football according to age phase. Journal of Sports Sciences. https://doi.org/10.1080/02640414.2020.1848117
Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 12 – dezembro de
2020.
Apresentação do problema
Um dos principais desígnios das organizações desportivas
é criar contextos apropriados de desenvolvimento para os atletas (Côté et al.,
2014). De facto, corresponder efetivamente às necessidades dos atletas, com
níveis de experiência, habilidade e motivação bastante variados, é uma luta constante
que os profissionais do desporto têm de travar. Embora os atletas sejam
tipicamente agrupados pela sua idade cronológica, em cada escalão etário pode
haver discrepâncias interindividuais consideráveis no desenvolvimento físico e
psicossocial. Para crianças e jovens que apresentam altos níveis de desempenho,
surge frequentemente pressão das partes interessadas (e.g., organizações,
treinadores e pais) para serem submetidos a contextos de prática mais
desafiantes (Collins & MacNamara, 2017; Taylor & Collins, 2019). Em
particular no futebol de formação, uma solução comum para este tipo de problema
passa por “subir” os jovens talentos para treinar e competir num escalão (ou
mais) acima, ou seja, com indivíduos mais velhos (figura 2).
Figura 2. A prática comum de subir jovens talentos de escalão
etário no futebol de formação.
(imagem não publicada pelos autores; fonte:
blog.teamsnap.com)
As evidências anedóticas sugerem que os jogadores que sobem de escalão podem ser expostos a intensidades mais elevadas de prática e competição, o que pode ter implicações importantes no produto do seu desenvolvimento. Apesar disso, nenhum estudo até à data explorou a ligação entre a subida de escalão etário e os resultados formativos obtidos pela criança/jovem no futebol de formação. Se esta medida constitui uma forma de agrupar os atletas pela sua habilidade, há um corpo de conhecimentos crescente acerca do modo como medidas análogas (e.g., entrada precoce na escola ou saltar um ano de escolaridade) podem afetar o desenvolvimento. Apesar de diversos resultados sugerirem a sua implementação, sem um conhecimento profundo de “como” e “porquê” esta aceleração afeta o aproveitamento académico ou o desenvolvimento específico numa modalidade desportiva, manter-se-ão as dificuldades por parte dos profissionais em otimizar o planeamento e a intervenção junto de estudantes ou atletas com elevados índices de desempenho.
Assim sendo, no contexto de subida de escalão no futebol infantojuvenil, urge examinar os fatores que influenciam o desenvolvimento específico desses jovens talentos na modalidade. Para o efeito, é altamente relevante que seja adotada uma metodologia de investigação multidisciplinar intimamente relacionada com o futebol. Com base nesta premissa, o trabalho seguiu a filosofia multidisciplinar subjacente ao modelo teórico “FA Four Corner”, proposto pela The Football Association (2019) em Inglaterra, e que recomenda a avaliação e o desenvolvimento dos jogadores de acordo com as componentes (a) Técnico-tática, (b) Física, (c) Psicológica e (d) Social. O propósito deste estudo foi examinar, numa academia de futebol inglesa, os fatores multidimensionais que diferenciam os jovens jogadores que sobem de escalão prematuramente daqueles a quem tal não acontece, em função da fase de desenvolvimento em que se encontram: “Foundation Development Phase” (FDP: Sub-9 até Sub-11) ou “Youth Development Phase” (YDP: Sub-12 até Sub-16).
Materiais e Métodos
Amostra: foram analisados 98 jovens jogadores, estando enquadrados em duas fases de desenvolvimento distintas: "FDP" – Sub-9 aos Sub-11, n = 40, idade média = 10.6 ± 0.9 anos; "YDP" – Sub-12 aos Sub-16, n = 58, idade média = 14.4 ± 1.3 anos. Todos os participantes foram recrutados de um clube profissional pertencente à quarta divisão (nível 4) da estrutura competitiva vigente em Inglaterra. Os jogadores foram enquadrados na categoria “jogar (num escalão) acima” quando cumpriram, ao longo da época, um tempo combinado de treino e jogo igual ou superior a 50% (≥ 50%) num grupo etário mais velho. Assim, na primeira fase (FDP), 15 jogadores “jogaram acima” (playing-up) e 25 “não jogaram acima” (non-playing-up), enquanto que, na segunda fase (YDP), 13 “jogaram acima” e 45 “não jogaram acima”. Os guarda-redes não foram incluídos no estudo.
Variáveis: a partir
das 4 componentes principais do modelo “FA Four Corner”, foram definidas 7
subcomponentes: (1) Técnico-tática – (a) testes técnicos, (b) estatísticas
de jogo e (c) testes percetivo-cognitivos (simulação de vídeo); (2) Física
– (a) medida antropométrica e (b) testes de fitness; (3) Psicológica –
(a) questionário de características psicológicas para o desenvolvimento da
excelência (PCDEQ); (4) Social – questionário de histórico de
participação (PHQ). Das 7 subcomponentes foram extraídos um total de 27 fatores
para análise (tabela 1).
Tabela 1. Vinte e sete fatores resultantes das 7 subcomponentes definidas a partir do modelo “FA Four Corner” (Kelly et al., 2020) (p.f., clique para ampliar).
Análise estatística: a estatística descritiva foi calculada para cada variável, utilizando z-scores para explanar as diferenças entre idades cronológicas e para confirmar a normalidade dos dados. Foram testadas quatro hipóteses para examinar as diferenças entre os grupos “jogar acima” (playing-up) e “não jogar acima” (non-playing-up), em cada fase de desenvolvimento, correspondendo às componentes do modelo “FA Four Corner”. Diversos procedimentos estatísticos (i.e., MANOVA, testes t para amostras independentes, cálculo de Cohen’s d, regressões logísticas binárias e multinominais) foram empregues para (1) averiguar as diferenças entre os dois grupos de jogadores e (2) identificar os fatores que, em cada fase de desenvolvimento, predizem a subida precoce de escalão. As diferenças foram consideradas como sendo estatisticamente significativas quando p ≤ 0.05.
Principais resultados
· “Foundation
Development Phase” (Sub-9 até Sub-11)
Foram verificadas diferenças significativas entre os
grupos “jogar acima” e “não jogar acima” nas componentes técnico-tática e
social. Em concreto, o grupo dos jogadores que subiram de escalão etário
demonstraram valores significativamente mais elevados nos passes completos,
passes por cima e nos testes de oclusão pré execução
(técnico-tática), bem como no fator social total de horas de prática
(futebol e outros desportos).
·
“Youth Development Phase” (Sub-12 até Sub-16)
Registaram-se diferenças significativas entre os dois grupos
em três das quatro componentes do modelo que serviu de base para esta
investigação. Na componente técnico-tática, os jovens que jogaram no escalão
acima destacaram-se por exibir valores mais elevados no número total de
toques. Nesta fase, os fatores físicos foram muito mais preponderantes: o grupo
“escalão acima” revelou valores médios mais altos na percentagem atingida da
altura estimada em adulto e no salto com contramovimento, sendo os
seus elementos significativamente mais rápidos nos testes de sprint 0–10m e
0–30m. Na componente social, o fator total de horas de prática com
treinador diferenciou os jovens do grupo “escalão acima” dos que
constituíram o grupo “não jogar acima”.
· Análise
Multivariada
Na fase de desenvolvimento “FDP”, a regressão logística
multivariada mostrou que o passe por cima e o teste de oclusão pré
execução (componente técnico-tática) foram preditores significativos do
modelo, explicando 61.8% da variância observada. Na fase posterior (YDP), o
modelo revelou a habilidade com bola (técnico-tática), o teste de
sprint 0–10m (física), lidar com a pressão, suporte de outros
para aproveitar o potencial (psicológica) e o total de horas de prática
com treinador (social) como preditores de jogar num escalão acima no
futebol de formação, explicando 49.5% da variância observada.
Aplicações práticas
Numa fase inicial de desenvolvimento no futebol, os fatores que discriminam os jogadores que sobem precocemente de escalão etário são do foro técnico-tático e social. Entre os Sub-12 e os Sub-16, no entanto, há que adotar uma perspetiva multidisciplinar mais abrangente. Nesta faixa etária, é provável que as diferenças se acentuem devido ao facto destes jogadores beneficiarem de maior exposição a treino e competição num escalão mais velho (desafiante) e, também, por acumularem mais tempo de prática específica na modalidade. Por isso, os treinadores, bem como outros agentes desportivos, devem ponderar seriamente o benefício de subir um jogador de escalão, sem menosprezar a fase de desenvolvimento em que se encontra. Será que compensa subir um jogador de escalão etário se, posteriormente, não usufruir de tempo substancial de prática competitiva? Será que retirar a criança/jovem do seu grupo habitual de pares não provoca reações adversas a nível psicológico, por exemplo?
A componente técnico-tática foi a que mais discriminou os grupos “jogar acima” e “não jogar acima”. Entre os Sub-9 e os Sub-11, houve uma associação mais vincada entre o grupo “jogar acima” e as capacidades de manter a bola e executar ações precisas. Contudo, na fase subsequente, ações pressupondo maior criatividade individual (i.e., dribles completos, n.º total de toques, drible em slalom e habilidades com bola) estiveram mais associadas ao jogar num escalão acima. Normalmente, são os treinadores que decidem a subida de escalão, pelo que é normal que a expressão britânica “if you are good enough, you are old enough” (se és bom o suficiente, és velho o suficiente) se aplique no caso, enfatizando fatores de ordem técnico-tática.
No futebol juvenil, os fatores físicos desempenham um papel importantíssimo na promoção de um indivíduo a um escalão etário superior. Dos Sub-12 aos Sub-16, testes de fitness (sprint 0–10m e salto com contramovimento) e o estatuto maturacional (percentagem atingida da altura predita em adulto) contribuíram significativamente para a decisão de um miúdo “jogar acima”. Deste modo, não só é absolutamente essencial controlar a maturação física de um jovem jogador, por forma a não haver confusões entre competência e maturação, como se sugere que a decisão de subir um atleta de escalão envolva outros intervenientes-chave para além do treinador (e.g., psicólogos, fisiologistas, preparadores físicos, cientistas do desporto, etc.), numa estratégia que se pretende multidisciplinar para melhor potenciar o talento a médio/longo prazo.
Na componente social, este estudo indica que não é
necessariamente o tipo de atividade praticada por crianças que determina a sua
promoção a um escalão mais velho. Designadamente entre os Sub-9 e os Sub-11, a
quantidade de tempo despendido num conjunto variado de atividades contribuiu
para que um jogador subisse para um grupo mais velho. Em idades mais baixas,
parece ser recomendada a prática de um vasto leque de atividades que concorram
para a aquisição e para o aperfeiçoamento de múltiplas competências
psicomotoras básicas. Ao contrário da especialização precoce, referimo-nos ao
que os especialistas aludem como diversificação precoce (early
diversification). Não será prudente aplicar este tipo de estratégia também
nos clubes e nas academias de futebol?
Conclusão
As evidências do presente estudo suportam a implementação do modelo “FA Four Corner” como abordagem multidisciplinar no desenvolvimento de jovens jogadores de futebol. Na fase “FDP”, fatores técnico-táticos e sociais diferenciaram os jogadores que jogaram acima daqueles que não o fizeram. Na fase "YDP", a distinção entre os dois grupos de jogadores foi evidente em variáveis representativas das quatro componentes do modelo.
Independentemente da fase de desenvolvimento, é fundamental que treinadores e outros profissionais de futebol ponderem, de forma holística, diversos fatores para deliberar se um praticante sobe, ou não, a um escalão etário mais velho. Adicionalmente, os agentes desportivos devem utilizar a promoção a grupo etário mais avançado como uma estratégia para facilitar o desenvolvimento individual, ao invés de se focarem estritamente na fixação das crianças/jovens no respetivo escalão etário para alcançar rendimento desportivo.
Embora jogar num escalão acima tenha implicações no
desempenho e no desenvolvimento de jovens jogadores, são necessários mais
estudos qualitativos para examinar as perceções e as experiências de atletas
que tenham vivenciado essa circunstância. São, também, recomendados estudos
longitudinais para identificar se “jogar acima” traz benefícios a longo-prazo
no desenvolvimento da perícia na modalidade, sendo interessante salientar o
período de transição do futebol de formação para o futebol profissional (ou sénior) como
objeto de análise.
P.S.:
1-
As que
constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e,
presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;
2-
Para melhor compreender as
ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;
3-
As citações efetuadas
nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor
encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Journal
of Sports Sciences.
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