25/11/2022

Artigo do mês #35 – novembro 2022 | Efeitos da idade relativa e transição para os seniores no futebol italiano: a "hipótese do azarão" versus o "efeito dominó" da idade relativa

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

 

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Autores: Morganti, G., Kelly, A. L., Apollaro, G., Pantanella, L., Esposito, M., Grossi, A., & Ruscello B.

País: Itália

Data de publicação: 20-setembro-2022

Título: Relative age effects and the youth-to-senior transition in Italian soccer: the underdog hypothesis versus knock-on effects of relative age

Referência: Morganti, G., Kelly, A. L., Apollaro, G., Pantanella, L., Esposito, M., Grossi, A., & Ruscello B. (2022). Relative age effects and the youth-to-senior transition in Italian soccer: the underdog hypothesis versus knock-on effects of relative age. Science and Medicine in Football. https://doi.org/10.1080/24733938.2022.2125170

  

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 35 – novembro de 2022.

 

Apresentação do problema

O desporto está, na sua globalidade, estruturado de forma a conceder a todas as crianças oportunidades idênticas para se desenvolverem. No futebol e, particularmente em Itália, o desígnio é o mesmo. A estratégia passa por agrupar os jogadores por datas de nascimento, em função de datas de corte estipuladas (e.g., de 1 de janeiro a 31 de dezembro). O problema deste sistema é que aqueles que nascem no início do ano podem ser praticamente um ano mais velhos em relação aos outros que nascem em dezembro. A investigação científica tem comprovado que os que são relativamente mais velhos apresentam, desde tenra idade, probabilidades aumentadas de serem selecionados para centros de desenvolvimento de talento, precisamente devido a vantagens associadas ao fenómeno da idade relativa (Till & Baker, 2020). Este viés de seleção é designado de “efeito da idade relativa” e, além de ser um fenómeno bem conhecido, tem sido observado em diversos desportos individuais e coletivos em todo o planeta (Costa et al., 2013; Pérez-González et al., 2021). 

Na generalidade, assume-se que os jogadores relativamente mais velhos tendem a estar mais maturados do que os seus pares mais jovens, usufruindo, por isso, de vantagens físicas e atléticas (Cobley et al., 2009). Apesar disso, evidências recentes nesta área têm demonstrado que a idade relativa e a maturação biológica são constructos diferentes e necessitam de ser equacionados separadamente (figura 2). Os sistemas desportivos tendem a selecionar crianças com base nos níveis de desempenho em idades tão jovens como os 9 anos (Baker et al., 2018). Assim, ao serem selecionados miúdos numa fase tão precoce do seu desenvolvimento, a mínima diferença de idade pode ter um impacto considerável (Doyle et al., 2017). Uma diferença de 11 meses representa praticamente um ano de experiência e de oportunidades de prática (Aune et al., 2018), pelo que níveis de performance mais elevados podem não se dever a “habilidades inatas”, mas, muito possivelmente, a diferenças subtis na idade cronológica (Doyle et al., 2017).

 

Figura 2. Visualização do efeito da idade relativa no futebol (imagem não publicada pelos autores; fonte: https://talentdevelopmentinirishfootball.com/2017/06/27/relative-age-effect-in-irish-elite-youth-football/).

 

As oportunidades acrescidas de desenvolvimento que os indivíduos relativamente mais velhos vivenciam aumentam a probabilidade de se tornarem melhores jogadores a longo prazo. Por exemplo, Brustio et al. (2018) reportaram a existência de distribuições assimétricas das datas de nascimento no futebol italiano, com maior predominância de indivíduos nascidos mais cedo no ano em todas as categorias jovens e a nível sénior (Sub-15; Sub-16; Sub-17; Primavera, Sub-20; Serie A). Em concreto, somente 5%, 6%, 11% e 10% dos jogadores que jogaram nos Sub-15, Sub-16, Sub-17 e no escalão Primavera nasceram no último trimestre (quartil) do ano, respetivamente. Estas percentagens indicam que a maior parte dos jogadores relativamente mais jovens, que inclusivamente apresenta potencial para se destacar na idade adulta, é negligenciada pelas organizações desportivas infantojuvenis, estando sub-representados em todos os escalões etários ao nível da elite. Este facto faz com um grupo mais pequeno de jogadores talentosos e nascidos mais tarde possa ser selecionado para o futebol sénior (Kelly et al., 2022), o que indica a existência de um viés residual do fenómeno da idade relativa denominado de “efeito dominó” (Mujika et al., 2009; Lovell et al., 2015). 

A literatura existente tem verificado que, apesar de o efeito da idade relativa ser transversal dos escalões etários mais jovens ao sénior, os jogadores relativamente mais novos que entraram no sistema em idades baixas são os que possuem mais chances de alcançar o estatuto de profissional. Sim, estes jovens são menos propensos a serem selecionados pelas academias de futebol, porém, uma vez selecionados, apresentam uma maior probabilidade de transitar para o escalão sénior (Kelly et al.,2020, 2021a, 2021b, 2022). Estes resultados são explicados pela “hipótese do azarão” (Gibbs et al., 2012), que sugere que os jogadores relativamente mais novos podem possuir mais potencial para alcançar o sucesso na idade adulta, visto que têm de desenvolver capacidades técnicas, táticas, físicas e psicossociais mais refinadas para competir com pares relativamente mais velhos e temporariamente mais aptos (Schorer et al., 2009; Gibbs et al., 2012; McCarthy et al. 2016). Nesta perspetiva, é importante estudar as trajetórias de carreira dos jogadores, no intuito de melhor entender como as condições estruturais ao nível dos diferentes escalões etários influenciam as oportunidades de integração de jovens talentos no escalão sénior. 

O propósito do estudo foi explorar a relação complexa entre a data de nascimento e as probabilidades de (1) ser selecionado para um sistema de desenvolvimento do talento e (2) completar a transição e competir a nível sénior. O estudo foi, portanto, dividido em duas partes: a parte 1 analisou a distribuição das datas de nascimento de 2030 jovens jogadores italianos, nascidos entre 1975 e 2001, que jogaram numa das seleções jovens de Itália (i.e., Sub-15, Sub-16, Sub-17, Sub-18, Sub-19, Sub-20 e Sub-21); na parte 2 foram registadas as trajetórias de carreira destes jogadores para investigar como é que o efeito da idade relativa influenciou os resultados obtidos ao nível dos seniores, através da observação dos jogadores que transitaram das seleções jovens para a seleção nacional italiana (n = 182) e aqueles que, eventualmente, alcançaram um estatuto SIA (“Super International Achievers”) (i.e., jogaram em Campeonatos Europeus da UEFA ou em Campeonatos do Mundo da FIFA no escalão sénior; n = 58).

 

Métodos

Amostra: na parte 1 foram incluídos 2030 jogadores de futebol italianos do género masculino, respeitando os seguintes critérios: nascidos entre 1975 e 2001 e que jogaram, pelo menos uma vez, numa das seleções nacionais jovens de Itália (Sub-15: n = 431; Sub-16: n = 722; Sub-17: n = 736; Sub-18: n = 855; Sub-19: n = 708; Sub-20: n = 671; Sub-21: n = 511). Na parte 2 foram incluídos os jogadores que completaram com sucesso a transição dos escalões jovens para a seleção nacional “A” italiana (n = 182), bem como aqueles que disputaram um Campeonato Europeu da UEFA ou um Campeonato Mundial da FIFA (n = 58), i.e., jogadores que alcançaram o estatuto internacional “super bem-sucedidos” (SIA). 

Procedimentos: os dados do estudo (i.e., datas de nascimento e presenças em jogo das seleções nacionais) foram recolhidos do centro de dados oficiais da Federação Italiana de Futebol (https://www.figc.it). O mês de nascimento de cada jogador foi utilizado para estabelecer o respetivo quartil de nascimento ou trimestre: (a) Birth Quarter (BQ) 1: janeiro, fevereiro e março; (b) BQ2: abril, maio e junho; (c) BQ3: julho, agosto e setembro; (d) BQ4: outubro, novembro e dezembro. A distribuição das datas de nascimento observada para cada seleção jovem foi calculada para cada quartil (trimestre) do ano e comparada com a distribuição esperada para um número idênticos de indivíduos por trimestre. Posteriormente, foram calculadas as distribuições das datas de nascimento observadas para os jogadores que completaram com sucesso a transição juniores-seniores e para os que alcançaram o estatuto SIA. Além disso, para obter um entendimento total dos efeitos de viés, as distribuições da equipa nacional “A” italiana e dos jogadores SIA foram comparadas com (1) uma distribuição uniforme e (2) a distribuição das datas de nascimento dos jogadores Sub-15. 

Análise estatística: foram conduzidos testes “goodness-of-fit” de Qui-quadrado para comparar as distribuições observadas e esperadas das datas de nascimento. Uma vez que os testes do Qui-quadrado não revelam as magnitudes das diferenças entre as distribuições trimestrais para os resultados significados, os valores de Cramer’s V foram adicionalmente calculados para obter as respetivas dimensões do efeito. Os valores de Cramer’s V foram interpretados de acordo com os seguintes critérios: ≥ 0.06, efeito pequeno; ≥ 0.17, efeito médio; ≥ 0.29, efeito grande (Cohen, 1998). Os rácios de probabilidade (Odds Ratios: ORs) e os intervalos de confiança a 95% (Confidence Intervals: CIs) foram utilizados para comparar os quartis de nascimento dos jogadores que integraram a seleção nacional “A” italiana e daqueles “super bem-sucedidos”, recorrendo ao grupo relativamente mais jovem (BQ4) como referência. Os rácios de probabilidade foram calculados e interpretados segundo os procedimentos descritos por Szumilas (2010), com intervalos de confiança incluindo 1 (i.e., 95% 0.90–1.10) a traduzir inexistência de associação. Os resultados foram considerados significativos para valores de p ≤ 0.05.

 

Principais resultados

As distribuições das datas de nascimento observadas para os Sub-15, Sub-16, Sub-17, Sub-18, Sub-19, Sub-20 e Sub-21 mostraram enviesamentos significativos em comparação com as distribuições esperadas:


·     Amplitudes – Quartil [BQ] 1: 34.4% a 46.7%; BQ2: 24.8% a 29.4%; BQ3: 18.1% a 22.7%; BQ4: 7.2% a 15.2%.

·     Médias – BQ1 = 41.4%; BQ2 = 27.2%; BQ3 = 20.5%; BQ4 = 10.8%.

 

Os resultados exibiram probabilidades acrescidas de selecionar jogadores relativamente mais velhos em todas as seleções jovens italianas (de Sub-15 a Sub-21), com os rácios de probabilidade entre BQ1 e BQ4 a variar entre 2.4 (Sub-20) e 7.6 (Sub-15). 

As comparações entre as duas coortes seniores (i.e., seleção “A” italiana e grupo de jogadores bem-sucedidos; SIA) e distribuições uniformes revelaram que o efeito da idade relativa persistiu na seleção “A” italiana (efeito pequeno), com uma sobrerrepresentação de indivíduos nascidos no primeiro trimestre (BQ1 = 33% vs. BQ4 = 14.2%), embora a diferença observada no grupo com estatuto SIA (BQ1 = 31% vs. BQ4 = 20.7%) não tenha sido significativa (figura 3).

 

Figura 3. Distribuições das datas de nascimento de jogadores internacionais italianos que completaram com sucesso a transição das seleções jovens para a seleção principal. A distribuição uniforme foi de 25% para cada quartil (trimestre) do ano (Morganti et al., 2022).

 

Por sua vez, os jogadores relativamente mais jovens registaram probabilidades significativamente mais elevadas de transitar com êxito das seleções jovens italianas para jogar na seleção principal (BQ1 = 7.2% vs. BQ4: 11.1%) e atingir o estatuto SIA (BQ1 = 2.2% vs. BQ4 = 5.1%; figura 4). Na mesma linha de análise, os dados demonstraram ainda a existência de distribuições enviesadas nos dois grupos seniores quando comparadas com a distribuição das datas de nascimento dos Sub-15 (Seleção “A” italiana vs. Seleção Sub-15 italiana: efeito médio; Grupo SIA vs. Seleção Sub-15 italiana: efeito grande), também favorecendo os jogadores nascidos relativamente mais cedo (BQ4).

  

Figura 4. Conversão do talento por cada quartil (trimestre) do ano na amostra em causa (Morganti et al., 2022).

 

Aplicações práticas

O efeito da idade relativa é uma forma mascarada de discriminação etária e desperdício de talento. Posto isto, é crucial equacionar soluções para atenuar ou erradicar o fenómeno do desporto. Em primeira instância, o efeito foi evidente ao nível das seleções jovens de Itália (de Sub-15 a Sub-21), o que evidencia que os jogadores relativamente mais velhos têm maior propensão para ser considerados “talentos”. Ao invés, da totalidade de jogadores selecionados no percurso de desenvolvimento das seleções nacionais italianas, os que nasceram no último trimestre (BQ4) tiveram mais probabilidade de ser bem-sucedidos na transição para os seniores. 

Portanto, a existência do efeito da idade relativa na seleção principal de Itália foi consequência de um viés residual que proveio dos escalões etários jovens (“efeito dominó”). Apesar de jogadores relativamente mais velhos usufruírem de vantagens associadas ao facto de terem nascido mais cedo nos escalões jovens, muitos não conseguiram completar com êxito a transição para o futebol sénior. Por outro lado, é crível que os jogadores relativamente mais jovens que entraram no sistema da seleção nacional tenham desenvolvido competências de diversa índole (técnicas, táticas, físicas e psicossociais), que lhes permitiram ser mais resilientes e competentes aquando da transição para os seniores (“hipótese do azarão”). Infelizmente, os que não são selecionados precocemente tendem a perder-se, muitas vezes injustificadamente, ao longo do percurso formativo. A paciência é um fator-chave para evitar o desperdício de talento associado a uma visão estritamente virada para o resultado a curto prazo. 

No futebol de formação, os treinadores devem abster-se de selecionar jogadores com base na performance atual, ignorando variáveis de confusão como o efeito da idade relativa e a maturação biológica. O potencial de talento (margem de evolução) e a data de nascimento devem ser ponderados no processo de identificação e seleção de jogadores para equipas representativas e, inclusivamente, no recrutamento para academias de futebol. Para o efeito, nos escalões de formação, pode ainda ser adotada uma abordagem cronológica mais flexível em que os jogadores nascidos no primeiro trimestre do ano (BQ1) podem jogar no escalão acima e, inversamente, os nascidos no último trimestre podem jogar um escalão abaixo. 

A própria estruturação dos escalões etários pode ser repensada em função das trajetórias de carreira dos jogadores. Ao compreendermos o modo como a organização dos escalões atual influi no resultado da carreira de jogadores que entraram na rede de talentos em idades jovens, poderemos encontrar estratégias mais efetivas para atenuar, de forma concertada, os efeitos negativos decorrentes do fenómeno da idade relativa.

 

Conclusão

Este foi o primeiro estudo que investigou a influência da idade relativa na seleção de indivíduos e na transição dos escalões jovens para os seniores no percurso de desenvolvimento do talento a uma escala nacional. A seleção de jogadores para as seleções jovens italianas foi afetada por vantagens temporárias e de curto prazo associadas ao efeito da idade relativa, com uma sobrerrepresentação de indivíduos nascidos no primeiro semestre relativamente aos que nasceram no segundo semestre. Os jovens do primeiro quartil do ano permaneceram sobrerrepresentados na coorte de jogadores que completaram com êxito a transição para a seleção “A” de Itália, mas apenas devido a um efeito residual (“efeito dominó”) que se propagou desde os escalões mais jovens. Curiosamente, a maior proporção de jogadores que transitaram para a seleção “A” e que alcançaram o estatuto de bem-sucedidos a nível internacional nasceu no último trimestre: “a hipótese do azarão”. 

O estudo comprovou a existência de oportunidades de desenvolvimento desiguais nas equipas representativas do futebol juvenil em Itália. Ficou bem patente que a maioria dos jogadores relativamente mais jovens, que eventualmente tenham potencial para ser bem-sucedidos, são ofuscados pelos seus pares mais velhos, causando uma perda de talento no início do processo de desenvolvimento. Adicionalmente, o grosso dos jogadores nascidos mais cedo no ano não conseguiram completar com sucesso a transição para a seleção sénior, resultando numa perda de talento no final do processo de desenvolvimento. Assim, como o êxito nos escalões juvenis parece depender de esforços concertados para restringir o desperdício de talentos nas duas fases suprarreferidas do processo formativo, é necessária uma mudança cultural que garanta uma passagem de uma abordagem funcional de “identificação do talento” para uma abordagem funcional de “desenvolvimento do talento”.

  

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a língua portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Science and Medicine in Football.

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