06/05/2007

"Quando for..."

"Nós, que chegamos pela porta das traseiras, tirados à sorte do lixo, vivíamos muito pior do que os insectos e os ratos. Não havia nada, ou quase nada, para nós, e por isso alimentávamo-nos de desejos absurdos. Todas as nossas frases começavam assim: «Quando for...». Um peruano da cantina universitária disse um dia: quando for rico deixarei de vos falar. Pouco depois surpreenderam-no a roubar num supermercado e foi preso. Tinha feito tudo bem, mas ao chegar à caixa a empregada olhou para ele e deu um grito de horror (podia mesmo qualificá-lo de «cinematográfico»), porque do cabelo escorriam gotas vermelhas. Tinha escondido duas embalagens de bifes debaixo do capuz do impermeável, mas deixou passar muito tempo e o sangue atravessou o plástico. A partir desse dia mudou a sua frase: quando for rico nadarei em sangue fresco. Soube por essa altura que o tinham fechado num hospício e nunca mais o voltei a ver."

Gamboa, Santiago (2007). A Síndrome de Ulisses. Porto: ASA Editores, S.A.

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