31/07/2020

O último cabalista de Lisboa (1996), de Richard Zimler

A obra selecionada para o encontro do mês de julho de 2020 do Clube de Leitura de Monchique foi “O último cabalista de Lisboa”, cuja primeira edição data de 1996. Desconhecendo por completo Richard Zimler, este foi o primeiro livro que li do autor. Trata-se de um romance histórico baseado em factos reais, em que Berequias Zarco, o narrador e protagonista, discursa quase em regime autobiográfico (figura 1). 

 

Figura 1. Capa do livro “O último cabalista de Lisboa”, do autor Richard Zimler.

 

A trama gira em torno do assassinato do líder e mestre espiritual Abraão Zarco e da incompatibilidade entre duas religiões distintas – a judaica, sendo que muitos judeus foram convertidos em cristãos-novos, e a cristã, cujos crentes eram os cristãos-velhos. O clima de crispação vigente determinou o massacre de judeus no Rossio na Páscoa de 1506, a designada matança da Páscoa de 1506. Para os cristãos-velhos, incitados por frades dominicanos, os judeus eram os culpados da seca, da fome e da peste negra, devido ao seu pacto, alegadamente secreto, com o diabo. Não deixa de ser um tema forte na atualidade, na medida em que os deuses de uns são o diabo para os outros e, por isso, se têm matado milhões de pessoas ao longo da história da humanidade, pela intolerância à diferença associada ao fanatismo religioso.

Além da busca incessante de Berequias Zarco, acompanhado pelo seu fiel amigo e primo Farid, pelo assassino do tio Abraão, há inúmeras passagens desta época de ouro dos descobrimentos portugueses que me impressionaram:

 

· Os tumultos ocorreram na ausência do rei que, devido à peste negra, se havia retirado para Abrantes (muito embora fosse uma prática comum na altura, não se coaduna com a máxima que postula que os bons exemplos devem vir de cima);

 

· Os escravos africanos que morriam, muitos deles a trabalhar na construção do Mosteiro dos Jerónimos, eram atirados para montes de esterco nos arredores de Lisboa (a dignidade da vida humana rebaixada à condição de esterco);

 

· Berequias assistiu à execução de judeus no Rossio, contudo, quando estava a ser perseguido por cristãos-velhos, foi salvo por uma família muçulmana (a intolerância não depende estritamente das diferenças entre religiões, mas na maldade das pessoas que se servem da religião para atingir determinados fins);

 

· A cinco séculos de distância, confesso que a citação seguinte foi extremamente dolorosa de ler:

(…) Sentado numa pá, via-se um recém-nascido desconhecido a quem tinham arrancado a cabeça.

Face ao impensável, que assim tomara forma, nenhum de nós ousara falar.

Alguém pode imaginar o que significa ver uma criança decapitada sentada numa pá? É como se todas as línguas do mundo ficassem esquecidas, como se todos os livros escritos se tivessem reduzido a pó. E como se alguém pudesse ficar feliz com tal coisa; por pessoas como nós não terem direito a falar ou escrever ou deixar qualquer traço na História (p.103).

 

· Depois há uma observação muito interessante sobre o povo português e que julgo que perdurou ao longo de todo este tempo até aos dias de hoje:

Enquanto caminhamos, observamos a atitude respeitosa do povo da cidade, o mesmo povo que um dia ou dois antes era capaz de exigir a cabeça do rei. «Esta passividade está profundamente entranhada nas almas dos cristãos portugueses», penso. «Nunca nenhuma revolta há de aqui ter sucesso» (p. 272). A passividade é um traço característico do povo português ainda visível nos tempos correntes, mas houve algumas revoltas nos últimos 500 anos e, talvez por isso, ainda possamos dizer que somos portugueses e usufruir de direitos como a liberdade de expressão.

 

· A definição cabalística do mal é, na minha opinião, um eufemismo, mas que, de certo modo, nos indica que o ser humano quando nasce é bom: “o bem que se afastou do seu justo lugar” (p. 350).

 

· Para concluir, o aviso premonitório de Berequias Zarco – o Mardoqueu na iluminura do mestre Abraão Zarco –, o herói do povo judeu: “A matança mal começou. (…) Mais tarde ou mais cedo, neste século ou daqui a cinco séculos, hão de vir procurar-vos ou aos vossos descendentes” (p. 351). Teriam os seus ensinamentos cabalísticos permitido que vislumbrasse o que viria ser o holocausto?

 

Um livro muito bem escrito, com um enredo exemplarmente estruturado pelo autor, baseado nos três manuscritos originais de Berequias Zarco e que nos relata acontecimentos que não constam propriamente nos manuais da História de Portugal.

24/07/2020

Artigo do mês #7 – julho 2020 | Os jogadores ingleses não são tão maus a bater penáltis como é vulgarmente assumido

Nota prévia: O artigo científico alvo da presente síntese foi selecionado em função dos seguintes critérios: (1) publicado numa revista científica internacional com revisão de pares; (2) publicado no último trimestre; (3) associado a um tema que considere pertinente no âmbito das Ciências do Desporto.

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Autores: Brinkschulte, M., Furley, P., & Memmert, D.

País: Alemanha

Data de publicação: 27-abril-2020

Título: English football players are not as bad at kicking penalties as commonly assumed

Revista: Scientific Reports

Referência: Brinkschulte, M., Furley, P., & Memmert, D. (2020). English football players are not as bad at kicking penalties as commonly assumed. Scientific Reports, 10, 7027. https://doi.org/10.1038/s41598-020-63889-6 (link) 

 

Figura 1. Informações editoriais do artigo do mês 7 – julho de 2020.

 

Apresentação do problema

As grandes penalidades desempenham um papel importante no futebol e é plausível que assim continue a acontecer em eventos vindouros, como o campeonato europeu da UEFA, em 2021. A título de exemplo, através de desempates por grandes penalidades, já foram resolvidos 18 jogos de campeonatos europeus, incluindo um para decidir o vencedor da prova (1976). Em campeonatos do mundo da FIFA, 30 jogos foram concluídos desta forma, sendo que dois deles resultaram na consagração do campeão mundial (1994 e 2006). A investigação em torno do futebol tem sugerido, no entanto, que nem todas as nações apresentam desempenhos idênticos nestas situações, consideradas como o pináculo da performance sob alta pressão na modalidade. 

Um resultado específico que tem recebido uma extraordinária atenção do público em geral, dos média e até reconhecido por peritos de futebol em comentários televisivos, prende-se com o seguinte estereótipo: os jogadores ingleses são extremamente fracos a marcar penáltis (figura 2). 

Figura 2. David Beckham a falhar uma grande penalidade na decisão da eliminatória contra Portugal, no EURO 2004 (imagem não publicada pelos autores; fonte: uk.sports.yahoo.com)

 

Como é comum no caso dos estereótipos, há sempre alguma verdade por detrás dos mesmos. Desde 1978, a seleção nacional inglesa apenas venceu 3 dos 9 desempates por grandes penalidades em que participaram (derrotas nos campeonatos mundiais de 1990, 1998 e 2006, e nos campeonatos europeus de 1996, 2004 e 2012). Este registo negativo levou os cientistas a procurar por potenciais explicações para o facto. A chamada “maldição inglesa nos penáltis” permitiu que Jordet e colegas (2007) demonstrassem que o sucesso de uma grande penalidade, batida por um qualquer jogador, depende de uma multiplicidade de fatores psicológicos, fisiológicos, técnicos e, inclusive, da sorte. Jordet (2009a, 2009b) também evidenciou que jogadores que gozam de maior estatuto internacional, avaliado pelo número de troféus relevantes recebidos, tendem a exibir piores performances em desempates por grandes penalidades, comparativamente a jogadores com menor estatuto público. Estas evidências não sugerem que a nacionalidade dos jogadores per se influencie o resultado do penálti, ainda que a nacionalidade mesclada com variáveis de confusão (e.g., estatuto público do jogador) possa afetar o seu rendimento nestas bolas paradas. 

Esta linha de raciocínio, reforçada pela necessidade de se considerar os tamanhos das amostras na reprodutibilidade científica, levou os autores do estudo a questionar se os jogadores ingleses são, de facto, menos eficazes da marca de grande penalidade relativamente a outros de nacionalidades diferentes. Deste modo, eles procuraram solucionar o problema ao analisar a taxa de sucesso nos penáltis em função da nacionalidade do jogador. Primeiro, examinaram todas as grandes penalidades batidas em campeonatos da Europa e do Mundo (696 penáltis). Depois, investigaram uma amostra mais ampla de penáltis marcados nas principais ligas europeias (4708 penáltis). Por último, os autores consideraram esta pesquisa importante, uma vez que uma linha de investigação distinta tem destacado a influência dos estereótipos na performance desportiva, mesmo que não sejam válidos. A simples introdução de um estereótipo negativo sobre um grupo social pode, potencialmente, determinar decrementos no desempenho de membros desse grupo, fenómeno designado de ameaça do estereótipo (Beilock et al., 2013).

 

Método

Amostra: foram analisadas todas as grandes penalidades marcadas em desempates de jogos de campeonatos europeus e do mundo desde 1976 (n = 696); depois, foram também examinadas todas as grandes penalidades convertidas na principal divisão dos campeonatos nacionais da Alemanha, Inglaterra, Espanha, Itália e Holanda, desde a época 2006/2007 até à época 2015/2016. Os dados foram recolhidos de várias fontes (e.g., soccerstats.com, wikipedia.org, thestatszone.com, fifa.com, uefa.com, transfermarkt.de). 

Procedimentos: além dos nomes dos jogadores e das datas de cada penálti, os autores codificaram cada evento em função do grau de sucesso (golo vs. falhado). Os penáltis codificados foram conferidos utilizando múltiplas fontes de vídeo. Foi calculada a taxa de sucesso para cada jogador (variável dependente) e anotada a respetiva nacionalidade (variável independente). Na primeira análise – campeonatos europeus e mundiais –, houve a distinção entre performances no desempate por grandes penalidades e nos penáltis em jogo. A inferência estatística foi executada através de ANOVAs univariadas com comparações post hoc de Bonferroni. Adicionalmente, foram utilizados testes t-student para averiguar a performance dos jogadores de cada país em relação à média da amostra inteira. Perante a violação das assunções dos testes paramétricos, as alternativas não-paramétricas foram aplicadas, sendo o nível de significância adotado de 5% (p ≤ 0.05).

 

Principais resultados 

Campeonatos europeus e mundiais

Desempate por grandes penalidades: Neste tipo de grandes penalidades, um total de 387 jogadores executaram 473 penáltis. Em média, os jogadores obtiveram sucesso em 71,97% das ocasiões. Os procedimentos estatísticos não revelaram diferenças significativas em função do fator nacionalidade, embora se tenha registado um efeito de dimensão pequena. Apenas os jogadores germânicos se destacaram significativamente da média da totalidade da amostra, convertendo 85,29% das grandes penalidades. 

Penáltis em jogo: Em penáltis assinalado no decurso do jogo (tempos regulamentares e de prolongamento), 159 jogadores remataram da marca dos 11 metros. Em média, foram eficazes em 78,74% das vezes. Apesar de o efeito do fator nacionalidade não ser significativo, obteve uma dimensão de efeito pequena. Aliás, nenhum país diferiu significativamente da média da totalidade da amostra previamente reportada. 

Comparação entre desempate por grandes penalidades e penáltis em jogo: a figura 3 mostra as percentagens dos penáltis marcados em função da nacionalidade dos jogadores e do tipo de grande penalidade (desempate vs. em jogo).

 

Figura 3. Percentagens médias de penáltis marcados em campeonatos europeus e do mundo, em função da nacionalidade e do tipo de grande penalidade (desempate vs. em jogo). Os N’s referem-se aos números de jogadores de cada nacionalidade que bateram penáltis. As barras de erro representam os erros padrão da média (Brinkschulte et al., 2020).

 

Embora a figura 3 expresse algumas tendências descritivas interessantes (e.g., os jogadores ingleses tiveram um desempenho 30% menos bem conseguido nos desempates por grandes penalidades que nos penáltis em jogo; os alemães foram 10% mais eficazes nos desempates comparativamente aos penáltis em jogo), tanto o tipo de grande penalidade, como a interação entre o tipo de grande penalidade e a nacionalidade, não produziram um efeito significativo na eficácia dos pontapés da marca de grande penalidade. Por isso, os jogadores das diferentes nacionalidades analisadas não foram mais ou menos eficazes do que os outros, dependendo do tipo de grande penalidade. 

Ligas europeias

Nesta subamostra, 1103 jogadores executaram 4708 penáltis em jogo, 71,01% dos quais resultaram em golo. A figura 4 exibe as percentagens dos penáltis concretizados de acordo com a nacionalidade dos jogadores.

 

Figura 4. Percentagens médias de penáltis marcados em algumas das melhores ligas europeias, de acordo com a nacionalidade dos jogadores que os executaram. Os N’s referem-se aos números de jogadores de cada nacionalidade que bateram penáltis. As barras de erro representam os erros padrão da média (Brinkschulte et al., 2020).

 

A ANOVA univariada não revelou um efeito significativo do fator nacionalidade nas percentagens de penáltis concretizados. Contudo, a dimensão de efeito foi, mais uma vez, pequena. As comparações post hoc também não assinalaram qualquer diferença significativa entre as nacionalidades analisadas. Somente os holandeses (e quase os italianos) diferiram significativamente da média reportada para a amostra global.

 

Conclusão

Em relação ao estereótipo que os jogadores ingleses são menos eficazes da marca de grande penalidade, os resultados obtidos nesta investigação não o comprovaram. De facto, as evidências indicam que não há diferenças significativas entre jogadores de nacionalidades distintas, no que respeita às taxas de sucesso resultantes da marcação de penáltis. De um ponto de vista meramente descritivo, os jogadores ingleses foram menos eficazes em desempates por grandes penalidades (61,32%), em comparação com penáltis executados em jogo durante campeonatos europeus e do mundo (90%), e ligas europeias (75,14%). Tendo como referência a média da totalidade da amostra, os jogadores ingleses foram ligeiramente mais eficazes nos penáltis em jogo e menos eficazes no desempate por grandes penalidades (no entanto, sem diferenças significativas). 

Vieses cognitivos de diversa ordem podem levar as pessoas a exagerar determinadas perceções subjetivas, baseando-se em eventos marcantes (emocionais) que rapidamente são invocados, como a derrota num importante desempate por grandes penalidades. Este género de viés pode contribuir, de sobremaneira, para o estabelecimento do estereótipo que os jogadores ingleses são maus a bater penáltis, pois o impacto de uma derrota num campeonato europeu ou do mundo, através do desempate por grandes penalidades, é muito superior ao insucesso de um penálti em jogo. É por este motivo que as pessoas, os média e os próprios protagonistas, na generalidade, acreditam que os ingleses falham mais grandes penalidades do que realmente acontece. Eventualmente, num futuro próximo, com uma amostra mais abrangente de penalidades (desempates e jogos), é provável que este estereótipo amplamente disseminado possa até vir a desaparecer. 

 

P.S.:

1-  As ideias que constam neste texto foram originalmente escritas pelos autores do artigo e, presentemente, traduzidas para a Língua Portuguesa;

2-  Para melhor compreender as ideias acima referidas, recomenda-se a leitura integral do artigo em questão;

3-  As citações efetuadas nesta rúbrica foram utilizadas pelos autores do artigo, podendo o leitor encontrar as devidas referências na versão original publicada na revista Scientific Reports.

16/07/2020

Pontapés de canto "longos" e alternativas – motivos para diversificar

Há uns anos, em conversa com um diretor de um clube que representei, discutíamos a eficácia dos pontapés de canto. Questionou-me o porquê de treinadores optarem por pontapés de canto executados de forma “curta” (figura 1) em detrimento de “longos”, nos quais a eficácia era – presumia ele –, “muito mais elevada”. Respondi-lhe que, quando bem executado, um “canto curto” gerava dinâmicas comportamentais que promoviam incerteza nos posicionamentos ou nas marcações estipulados no método defensivo adversário, fosse o mesmo zonal, individual ou misto. Apesar disso, fui contestado, “sim, mas na maior parte das vezes resulta em contra-ataques da outra equipa”. Reiterei: “quando bem executado!”

 Figura 1. Fase inicial de um pontapé de canto “curto” bem-sucedido do Moreirense FC, na jornada 31 da Liga NOS 2019/2020 (fonte: vsports.pt).
 

Em primeira instância, do ponto de vista científico, sabemos que entre 25 e 40% dos golos concretizados no futebol de alto rendimento acontecem em esquemas táticos (bolas paradas), sendo através de pontapés de canto que a maioria é obtida (Sainz de Baranda & López-Riquelme, 2012). Contudo, convém reforçar que, em 436 pontapés de canto ocorridos em 50 jogos da FA Premier League 2011/2012, apenas 18 (4,13%) deram golo (Pulling et al., 2013). Numa análise mais abrangente de três competições de elite – Campeonato do Mundo de 2010 (FIFA), Campeonato da Europa de 2012 (UEFA) e Liga dos Campeões 2010/2011 (UEFA) –, em 1139 pontapés de canto observados de 124 jogos, 2,2% foram concluídos com êxito (Casal et al., 2015). Mais recentemente, no Campeonato do Mundo de 2018 (FIFA), foram obtidos 22 golos em 600 pontapés de canto (3,67%) (Kubayi & Larkin, 2019). Portanto, as evidências dizem-nos que, em média, 100 pontapés de canto no futebol profissional contemporâneo originam, no máximo, 4 golos. Estes dados mostram que a eficácia das equipas nestas situações fixas é tudo menos considerável. Contudo, apesar de o sucesso ser diminuto, os golos obtidos nestas circunstâncias tendem a ser fulcrais para o desfecho do jogo, uma vez que cerca de 76% determinam o empate ou a vitória da equipa concretizadora.

Em segundo lugar, embora os pontapés de canto “curtos” ou “indiretos” constituam o método ofensivo menos frequente em jogos de futebol (Sainz de Barada & López-Riquelme, 2012; Casal et al., 2015), quando aplicados, envolvem um maior número de jogadores sobre a bola e produzem percentagens mais elevadas de remates, remates à baliza e golos (Casal et al., 2015). As alterações e a confusão que induzem na organização defensiva adversária, conforme foi sugerido em alguns estudos (e.g., Borrás & Sainz de Baranda, 2005; Casal et al., 2015), levou os investigadores a considerá-los como o método ofensivo mais perigoso a utilizar neste tipo de bolas paradas. Os factos corroboram na íntegra a minha perceção na altura da conversa. 

Para atestar na prática o que foi mencionado, num jogo recente da Liga NOS (11 de julho de 2020), a equipa do Moreirense FC logrou alcançar a vitória sobre a Belenenses SAD (0-1) num lance de pontapé de canto “curto”. Aos 50 minutos, perante uma equipa anfitriã totalmente concentrada em torno da área de baliza (i.e., 10 jogadores de campo no método à zona + guarda-redes), o conjunto de Ricardo Soares foi inteligente a recorrer ao processo indireto, ao que tudo indica convenientemente preparado em treino, para desposicionar os defensores e tirar proveito dos espaços interpessoais e da incerteza criados. O cruzamento de Pedro Nuno e o cabeceamento de Nuno Santos foram exemplares.


Ainda para demonstrar que estas ideias não se esgotam atrás de um ecrã de computador, deixo claro que, na função de treinador, procuro dar muita atenção aos pormenores nos esquemas táticos. Na última época que estive em atividade, num jogo de especial importância contra uma equipa rival, não entrámos bem e sofremos o 0-1 logo aos 5 minutos. Aos 28 minutos empatámos (1-1) e, 5 minutos depois, obtivemos a vantagem no marcador, fruto de um pontapé de canto “curto”. Se as estratégias implementadas para chegar a este resultado poderão ser dissecadas num texto futuro, a premissa que norteou a execução deste método indireto foi rigorosamente a mesma do caso anterior.


Os motivos pelos quais julgo essencial diversificar os métodos ofensivos nos pontapés de canto, em particular aumentando o recurso ao “canto curto”, prendem-se com o seguinte:


· Fazer face à inferioridade numérica na área de penálti através do fator surpresa, causando incerteza entre os jogadores em processo defensivo;

· Retirar defensores de zonas vitais junto à baliza, aumentando os espaços a explorar pelos atacantes;

· Reduzir a aleatoriedade (fator sorte/azar) tantas vezes associada à marcação de pontapés de canto longos/diretos;

· Reiniciar o processo ofensivo de forma controlada, evitando perdas de bolas extemporâneas e com a equipa desequilibrada;

· Preparar a equipa em treino para situações fixas distintas, tanto do ponto de vista ofensivo, como defensivo, incrementando a criatividade dos jogadores e a capacidade do coletivo em lidar com contextos inesperados em competição;

· Uma vez que há uma massificação da observação e análise das equipas adversárias, manter os métodos ao longo da época, sem inovar, sem retificar, irá conduzir à adaptação do processo defensivo contrário e ao aumento da ineficácia ofensiva da equipa.

Concluo com algumas questões sobre as quais deveríamos refletir aquando do planeamento do microciclo semanal e das respetivas sessões de treino. Se, de facto, os esquemas táticos são uma tendência evolutiva do futebol, porque é que despendemos tão pouco tempo do microciclo a treiná-los, geralmente com um ou dois exercícios na penúltima e/ou na última sessão de treino antes do jogo competitivo (JC-2 e JC-1, respetivamente)? Mais, porque é que perdemos tanto tempo com exercícios de posse de bola, sem pressupor a obtenção do objetivo do jogo – o golo, quando podemos propor outras situações jogadas que, entre outros aspetos a desenvolver, também incluam bolas paradas? Não será a polivalência do exercício de treino uma virtude a explorar nos tempos loucos que vivemos?


Referências

Borrás, D., & Sainz de Baranda, P. (2005). Análisis del corner en función del momento del partido en el mundial de Corea y Japón 2002. Cultura, Ciencia y Deporte, 1, 87–93.

Casal, C. A., Maneiro, R., Ardá, T., Losada, J. L., & Rial, A. (2015). Analysis of corner kick success in elite football. International Journal of Performance Analysis in Sport, 15(2), 430–451. https://doi.org/10.1080/24748668.2015.11868805

Kubayi, A., & Larkin, A. (2019). Analysis of teams’ corner kicks defensive strategies at the FIFA World Cup 2018. International Journal of Performance Analysis in Sport, 19(5), 809–819. https://doi.org/10.1080/24748668.2019.1660547

Pulling, C., Robins, M., & Rixon, T. (2013). Defending corner kicks: analysis from the English Premier League. International Journal of Performance Analysis in Sport, 13(1), 135–148. https://doi.org/10.1080/24748668.2013.11868637

Sainz de Barada, P., & López-Riquelme, D. (2012). Analysis of corner kicks in relation to match status in the 2006 World Cup. European Journal of Sport Science, 12(2), 121–129. http://dx.doi.org/10.1080/17461391.2010.551418

06/07/2020

Uma breve reflexão sobre o recrutamento de treinadores para o futebol de formação na era digital

Com a preparação da nova época (2020/2021), há inúmeros clubes que já formalizaram a apresentação de treinadores/equipas técnicas e outros encetaram diligências para contratá-los. Na minha caixa de correio têm caído alguns e-mails com ofertas de trabalho para suprir lacunas em determinados escalões etários de clubes de futebol, em Portugal. São ofertas genéricas enviadas em massa para uma bolsa de treinadores, sendo a seleção dos interessados executada a posteriori. Como último recurso, nada tenho contra, embora seja recomendado a contratação de alguém que conhecemos e reconhecemos competência no seu trabalho (figura 1).

Figura 1. Recrutamento de treinadores para o futebol de formação na era digital (época 2020/2021).


Então, há uns dias, recebi um e-mail com a seguinte mensagem:

 

Oferta de Vaga - Treinador Fut. 11 - Sub.17

 

Boa tarde

O clube X está á procura de treinador para o escalão de sub 17. O cargo é remunerado. A entrevista para o cargo carece de apresentação do CV e do modelo de jogo. 

Cumprimentos,

(…)

O coordenador

 

Reparem que mantive o anonimato da entidade desportiva e do responsável para não ferir suscetibilidades. É uma mensagem perfeitamente normal, que faz alusão à remuneração (ainda há quem trabalhe a custe zero), porém, com um senão: a apresentação do modelo de jogo. Tive de ler duas vezes para, de facto, confirmar que era realidade. 

Imagine-se que sou um potencial interessado, mas não conheço o clube, a sua missão e visão, o seu plano estratégico, os seus objetivos, as características dos jovens que irão constituir o plantel, o seu passado desportivo no clube ou fora dele, a própria competição em que irão estar inseridos, como é que iria apresentar um modelo de jogo minimamente válido? 

Não serviria a entrevista inicial para avaliar a perceção do treinador acerca dos aspetos atrás referidos, dando também a entender o projeto desportivo do cube e aquilo que se pretende, em particular, para o departamento de formação? Neste primeiro momento de contacto, não seria importante conhecer em traços gerais a pessoa, a sua disponibilidade, a sua motivação e, depois, solicitar esclarecimentos sobre o seu percurso enquanto treinador, tendo por base o Curriculum Vitae? E já agora, o que se iria discutir na apresentação de um modelo de jogo fictício: posicionamentos, movimentos, métodos de jogo, esquemas táticos? Será suposto andar com um “modelo de jogo” no bolso para o caso de eu pretender voltar ao ativo? 

É impressão minha ou as prioridades no futebol de formação continuam invertidas em pleno ano de 2020?

Votos de uma boa época para todos!