Anteontem,
dia 29 de dezembro de 2021, foi lançado o 32.º episódio do podcast “Ciência e
Futebol” da Portugal Football School, da Federação Portuguesa de Futebol (figura
1). Neste último episódio de 2021, tive a honra de ser o convidado e analisar,
com o Alexandre Pereira, a problemática do “efeito da idade relativa” no
futebol e no futsal, com particular referência à manifestação do fenómeno em
Portugal.
Figura 1. Logotipo do Portugal Football
School, um projeto da Federação Portuguesa de Futebol.
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de Futebol >> aqui
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O convite surgiu na sequência do artigo recentemente publicado, em conjunto com a professora Anna Volossovitch, da Faculdade de Motricidade Humana, na revista Science and Medicine in Football: Relative age effect among U14 football players inPortugal: do geographical location, team quality and playing position matter? De resto, esta publicação já havia sido apresentada aqui no Linha de Passe.
Como
vai sendo apanágio por estas bandas, deixo-vos uma síntese dos conceitos,
ideias e evidências que foram referidos no diálogo, sob a forma de perguntas e
respostas.
O
que é o “efeito da idade relativa”?
O
“efeito da idade relativa” diz respeito a um conjunto de vantagens que um
indivíduo possui numa determinada atividade humana, como consequência de ter
nascido mais cedo num dado período de seleção, correspondendo, normalmente, ao ano civil (de 1 janeiro a 31 de dezembro). Nos
jogos desportivos coletivos, o efeito traduz-se numa distribuição assimétrica
de jogadores num grupo geracional, com uma sobrerrepresentação de elementos
nascidos nos primeiros meses do ano e uma sub-representação de elementos
nascidos nos últimos meses do ano.
Que
vantagens podem ter os elementos relativamente mais velhos numa geração?
Maiores
probabilidades de desenvolver, física e cognitivamente, mais cedo; mais
experiência geral e específica, incluindo treino formal ou prática deliberada;
criação de melhores expectativas nos treinadores; mais apoio/encorajamento social,
entre outras.
Que
relação existe entre “efeito da idade relativa” e a “maturação biológica”?
Apesar
de serem muitas vezes confundidos, trata-se de dois construtos distintos.
Embora possam estar relacionados, porque quem nasce cronologicamente mais cedo,
tende também a maturar mais cedo, nem sempre isso acontece: há jogadores
nascidos em janeiro que maturam mais tarde que jogadores nascidos em dezembro
do mesmo ano.
Qual
o panorama atual em termos de investigação em torno do “efeito da idade
relativa”?
Há
uma enorme quantidade de investigação sobre a prevalência do fenómeno em
diversas amostras (modalidades desportivas, escalões etários e níveis competitivos), contudo,
há uma escassez de estudos, de cariz multifatorial, com o propósito de
relacionar o “efeito da idade relativa” com outros tópicos, nomeadamente a
identificação e seleção de talentos no futebol/futsal (Sarmento et al., 2018).
Nos últimos três anos, o panorama melhorou qualquer coisa, mas ainda há um
longo caminho a percorrer para encontrar soluções mais assertivas para aplicar
na prática.
Em
Portugal, constatou-se que o “efeito da idade relativa” é mais pronunciado no
futebol masculino, mas também foram evidenciadas algumas tendências no futebol
feminino e no futsal (Figueiredo et al., 2021; Portugal Football Observatory,2021). É expectável que a magnitude do efeito aumente ou diminua a curto prazo?
Atualmente,
estão claros dois pontos acerca da magnitude do “efeito da idade relativa”: (1)
tende a ser mais forte em desportos mais populares e em níveis de
prática/competição mais elevados; (2) é um tópico que tem sido alvo de
investigação sistemática há mais de 30 anos e, apesar de todas as soluções adiantadas
pelos investigadores, o efeito tem perdurado e, em alguns casos, até se tornou
mais forte. O estudo do Portugal Football Observatory (2021) mostrou-nos que, nos
últimos anos, tem havido um ligeiro decréscimo da probabilidade de selecionar jogadores
do primeiro trimestre, relativamente ao último trimestre do ano, no futebol
masculino (figura 2). Quanto ao futsal infantojuvenil e ao futebol feminino,
sabemos que, por um lado, que a Federação Portuguesa de Futebol quer dar
sequência ao aumento do número de praticantes registado nos últimos anos e, por
outro lado, as evidências da influência do “efeito da idade relativa” e da
“maturação biológica” já começaram a ser abordadas em cursos de treinadores/scouts.
Se o objetivo é desenvolver o futsal e o futebol feminino no sentido de os
aproximar da realidade do futebol masculino, então a tendência imediata é para que magnitude
do efeito aumente.
Figura 2. Evolução do “efeito da idade
relativa” no futebol infantojuvenil masculino, em Portugal, na última década
(Portugal Football Observatory, 2021).
O
facto de o efeito ser mais sentido nos escalões mais baixos (Sub-7 e Sub-9) no
futsal e no futebol feminino, pode ser encarado como um sinal de alarme?
Sim.
Tem sido verificado um “efeito de cascata” ao nível da idade relativa que, na
generalidade, só começa a atenuar a partir dos escalões Sub-16 ou Sub-17. Se os
dados demonstram a existência de um “efeito da idade relativa” nos escalões
Sub-7 e Sub-9, é expectável que ocorra uma transferência desse efeito para os
grupos etários seguintes, o que pode ser agravado com o aumento da popularidade
e da competitividade no futsal e no futebol feminino.
No
âmbito do Torneio Interassociações Sub-14 Lopes da Silva, que diferenças
geográficas foram encontradas em Portugal?
O
“efeito da idade relativa” foi examinado em 7 edições consecutivas deste torneio
(2013–2019) e foi comprovado que as probabilidades de selecionar jogadores nascidos
no primeiro trimestre (janeiro–março) foram significativamente superiores nas
associações distritais das zonas Norte e Centro-Norte do país, comparativamente
às associações regionais das Ilhas (Almeida & Volossovitch, 2021).
Designadamente, a probabilidade de selecionar jogadores relativamente mais
velhos aumentou 76.3% na zona Norte e 87.3% na zona Centro-Norte, em relação às
Ilhas (figura 3). Nas zonas Centro-Sul e Sul também foram selecionados mais
jogadores do primeiro trimestre, mas a comparação com as associações regionais
das Ilhas não revelou diferenças estatisticamente significativas. Curiosamente,
é nas ilhas em que a população residente é menor no nosso país, porém, não foi
na zona de maior densidade populacional e com a maior porção de população
residente em Portugal que o “efeito da idade relativa” obteve mais expressão (i.e.,
zona Norte). Os fatores demográficos são importantes, mas interagem com fatores
socioculturais e económicos para determinar variações geográficas na magnitude
do “efeito da idade relativa”.
Figura 3. Portugal dividido em 5 zonas
geográficas, cada incorporando 4 ou 5 associações regionais/distritais de
futebol (Almeida & Volossovitch, 2021).
Os
treinadores da formação, ao convocar/recrutar os maiores, mais fortes e mais
rápidos, potenciam o “efeito da idade relativa”?
É
um facto. No Torneio Lopes da Silva, as equipas que alcançaram as melhores
posições no certame foram compostas, significativamente, por mais jogadores
nascidos no primeiro semestre do ano, em comparação com as seleções distritais
que ficaram menos bem classificadas (Almeida & Volossovitch, 2021). Não é
apenas uma questão de competitividade, é também cultural. Por norma, no futebol
de formação, os treinadores começam a sua carreira nos escalões mais jovens,
mas a maioria ambiciona chegar ao futebol sénior ou a um escalão etário mais
velho. Um treinador de Sub-10, por exemplo, ganha menos, é menos mediático e,
tal como os treinadores dos seniores, é avaliado pelos resultados desportivos e
não pelo produto formativo. Por consequência, os processos de identificação e
seleção de talentos surgem desvirtuados pelas expectativas intrínsecas dos
treinadores, alastrando-se ao processo de treino e de competição, uma vez
selecionados/recrutados os jovens jogadores. O que está em causa é a prontidão
para competir no imediato e não o potencial a desenvolver a médio/longo prazo.
Perdem-se
talentos em Portugal, eventualmente no Mundo, por causa deste “efeito da idade
relativa”?
Infelizmente,
sim, devido a práticas seletivas sem qualquer tipo de controlo de fatores como
o “efeito da idade relativa” e a “maturação biológica”. Muitos jogadores
relativamente mais jovens numa geração, ou que apresentam uma maturação mais
tardia, não são recrutados tão frequentemente para academias de topo ou
entidades formadoras, jogam menos nos seus clubes por questões físicas, reúnem
menos expectativas dos treinadores e não têm tanto apoio social e suporte
parental, por aí fora. Não lhes são dadas as condições e o tempo necessários
para que o seu potencial se desenvolva e manifeste. Temos casos de jogadores da
nossa seleção A que “escaparam” à malha de recrutamento dos principais clubes
portugueses durante a sua formação e, hoje em dia, exibem desempenhos de
excelência no futebol de elite: Bruno Fernandes e Diogo Jota, ambos nascidos no
segundo semestre do ano.
O
problema deste efeito reflete-se mais no não recrutamento ou no abandono?
Em
ambos. O não recrutamento para academias de excelência ou seleções condiciona
bastante o acesso ao futebol profissional, contudo, o “efeito da idade
relativa” não desaparece em clubes não certificados, em centros básicos de
formação de futebol ou escolas de futebol (Figueiredo et al., 2021; Portugal
Football Observatory, 2021). Foi evidenciado que, nestes contextos, o abandono da
modalidade é real, sobretudo entre os 12 e os 16 anos de idade,
predominantemente em jovens nascidos no segundo semestre (figura 4).
Figura 4. Distribuição dos nascimentos
por escalão etário nos abandonos do futebol masculino (Portugal Football
Observatory, 2021).
A
solução passa pelos clubes, na medida em que são eles quem recruta, ficando
para as seleções a tarefa de escolher os melhores de cada momento?
Os
clubes e as academias são os principais responsáveis pelo desenvolvimento do
talento no futebol e no futsal. Reduzir o “efeito da idade relativa” passa, em
primeira instância, pela consciencialização e pela vontade dos clubes, até
porque, em muitos casos, este efeito instala-se em idades precoces (Sub-7, Sub-8 e Sub-9),
em que a maturação física ainda nem sequer é um fator muito relevante. A
disparidade entre o número de jogadores relativamente mais velhos e os seus
pares mais novos tende a aumentar em níveis de desempenho mais elevados, como
acontece nas seleções distritais e nacionais, em que o recrutamento já surge
enviesado à partida. Dada a variedade de contextos associada aos clubes
desportivos no nosso país, não creio que soluções definidas estritamente por
parte dos clubes possam dar uma resposta cabal para o problema. Neste
particular, a entidade que tutela o futebol em Portugal – a Federação
Portuguesa de Futebol – tem um papel fundamental na concertação de esforços para
atenuar o “efeito da idade relativa”, podendo, eventualmente,
socorrer-se das associações distritais para responder, de forma adaptada, a
situações mais específicas que ocorram localmente.
Que
soluções podem ser adotadas para contrariar o “efeito da idade relativa”?
Webdale et al. (2020) efetuaram um estudo de revisão para aferir os pontos fortes e fracos das soluções que têm sido propostas pela comunidade científica. Estes autores constataram que nenhuma das soluções ou intervenções sugeridas resolvem na íntegra os efeitos nefastos deste fenómeno. A maioria das soluções apresentadas são teóricas e poucas foram testadas experimentalmente. Então, quais as estratégias que parecem ser mais promissoras?
4)
1) Agrupar
os jogadores por estatuto maturacional, em vez de ser pela idade cronológica (bio-banding);
2) Utilizar
t-shirts ou coletes identificativos do trimestre de nascimento dos jogadores,
em treinos de captação/observação, auxilia a tomada de decisão dos treinadores/scouts,
atenuando o “efeito da idade relativa”;
3) Aumentar
a consciencialização dos diversos agentes desportivos, através da inclusão
destas matérias em cursos ou em ações de formação certificadas para dirigentes,
treinadores e scouts;
4) Incrementar
as oportunidades para os jogadores relativamente mais jovens numa coorte
continuarem envolvidos no processo durante um período mais longo, mediante a
criação das equipas ou campeonatos de futuro, como sucede na Bélgica ou nos
Países Baixos.
A
situação ideal para atenuar os efeitos da idade relativa não depende somente de
uma estratégia. Implementar estratégias mistas ou híbridas pode ser muito útil
neste âmbito, ainda que pouco tenham sido ponderadas e testadas no terreno, daí
a durabilidade e a força deste “efeito da idade relativa”, particularmente no
futebol masculino.
Para todos os leitores do Linha de Passe, expresso sinceros votos de saúde e paz para 2022. Tudo o resto virá no seu devido tempo.
Referências
Almeida,
C. H., & Volossovitch, A. (2021). Relative
age effect among U14 football players in Portugal: do geographical location,
team quality and playing position matter? Science and Medicine in Football.
https://doi.org/10.1080/24733938.2021.1977840
Figueiredo, P., Seabra, A., Brito, M., Galvão, M.,
& Brito, J. (2021). Are Soccer and Futsal Affected by the Relative Age
Effect? The Portuguese Football Association Case. Frontiers in psychology,
12, 679476. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.679476
Portugal
Football Observatory. (2021). A altura do ano em que se nasce condiciona a
oportunidade de ser atleta de formação? (PFO 03 PT). Federação Portuguesa
de Futebol. https://indd.adobe.com/view/73c7d01b-3558-4d41-bf88-b471686099e5
Sarmento,
H., Anguera, M. T., Pereira, A., & Araújo, D. (2018). Talent identification and development in male football:
A systematic review. Sports Medicine, 48(4), 907–931.
https://doi.org/10.1007/s40279-017-0851-7
Webdale, K., Baker, J., Schorer, J., & Wattie, N.
(2020). Solving sport’s ‘relative age’ problem: a systematic review of proposed
solutions. International Review of Sport and Exercise Psychology, 13(1),
187–204. https://doi.org/10.1080/1750984X.2019.1675083
2 comentários:
Excelente trabalho em torno da nossa conversa. Obrigado uma vez mais pela disponibilidade e bom 2022.
Alexandre, eu é que agradeço o convite e a oportunidade de conversarmos sobre um tema ainda ignorado por muitos agentes desportivos no nosso país.
É um sempre um prazer acompanhar os episódios do podcast "Ciência e Futebol". Parabéns à Federação Portuguesa de Futebol, à Portugal Football School e, em particular, ao Alexandre pela forma como conduz os diálogos.
Tudo de bom e um até breve!
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