09/12/2013

A estrada da felicidade

«Se és Ernesto, não podes ser honesto».

Ernesto estava farto daquele dizer. O que tinha o seu nome a ver com honestidade ou falta dela? Desde que nascera, tinham-lhe cravado o cunho. Maldito nome! Ao contrário de qualquer ser humano, Ernesto não podia errar, sob pena de se confirmar a sua desonestidade. Aí, o povo venceria; aliás, o mundo venceria e Ernesto não estava disposto a dar razão a quem não tinha ou não lhe fazia uso.

Que se soubesse, ninguém apresentara razão de queixa de sua pessoa. Era pacato, humilde e demasiado trabalhador. Era daqueles que o bom patrão gostava de ter a seu mandato: fizesse o que fizesse, era bem feito! Pelo menos, até ao dia em que desapareceram dinheiros e ferramentas e surgiu a inevitável suspeita. Nenhuma vivalma o vira a roubar, mas como era Ernesto… apontaram-lhe o dedo.

Esmoreceu-lhe a paciência e quis abalar para longe dali. Na vila, dizia-se que havia gentes a partir para trabalhar numas terras férteis das planícies alentejanas. Pagavam bem e davam teto para dormir. Ernesto não era ladrão, nunca o fora, mas, como uma mentira contada mil vezes, torna-se verdade, decidiu-se logo a apanhar a dita camioneta. Os outros, na esperança de melhores dias, comentavam que iriam pela estrada da felicidade. «Encontrá-la-iam?», perguntava-se Ernesto.

Numa bela manhã de novembro, os primeiros raios de sol abrilhantavam a despedida. Por estes dias, a geada andava de mão dada com a madrugada e tudo parecia cristalino. As pessoas, essas, aglomeravam-se no largo da carreira. Estavam sorridentes, porém batiam o dente. Ernesto não sabia se era do frio ou se do nervoso miudinho provindo do desconhecido, da lonjura ou da própria esperança. Então, no outro lado do largo, lá apareceu a viatura, meticulosamente a tempo e horas. «Assim se faz. Tudo em ordem!», alguém soltou evidentemente satisfeito.

O chauffeur, um homem para meia-idade, apresentou-se como Salvador e solicitou aos passageiros que se identificassem. Trinta e três era o número de dissidentes, de foragidos da agrura da serra e da sua pobreza mercante. Abraços, beijos e lágrimas condimentaram a hora do «adeus, até breve!». Ernesto não deixava ninguém de especial, apenas a desonestidade apregoada desde o dia do seu batismo. Para ele, não havia lágrimas, restavam-lhe as memórias, fossem elas boas ou más. E, assim, tomaram a estrada rumo ao que diziam ser a felicidade.

O branco caiado da serra ia ficando cada vez mais minúsculo à medida que se afastavam. Ernesto sorria, contemplando a beleza outonal das suas origens. O verde mesclado com o castanho e o cinzento do asfalto salpicado pelo desfolhar dos plátanos. Do rádio escutava-se o «1, 2, 3, vou nascer outra vez» dos Ritual Tejo; nem a música podia ser mais apropriada. Preocupava-o, contudo, a velocidade com que tudo ficava para trás e o trajeto não era exatamente retilíneo. Os passageiros conversam animadamente, bem agarrados aos pertences que não depositaram na bagageira. A bordo iam vidas, orgânicas e inorgânicas, literalmente. Talvez por isso, e pela velocidade, a camioneta balouçasse nas curvas.

Mais adiante, algures ainda pela serra, o piso atraiçoou a confiança do Salvador e a camioneta não balançou, deslizou para a berma e precipitou-se por um barranco abaixo. Os gritos, os galhos a quebrar, o rodopio, culminado pelo estrondo do embate final, deram lugar ao silêncio e ao vazio. Momentos… Ernesto flutuava, invadido por uma sensação de paz inexplicável. Uma luz – quiçá salvadora – tomou-lhe o destino. E, enquanto outros jaziam a contorcer-se de dor, Ernesto havia encontrado, inadvertidamente, o seu intento… a mais pura das felicidades.

Imagem: A estrada e a beleza outonal da serra de Monchique (6-dez-2013).

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