«Se és Ernesto, não podes ser honesto».
Ernesto estava farto daquele dizer. O que tinha o seu
nome a ver com honestidade ou falta dela? Desde que nascera, tinham-lhe cravado
o cunho. Maldito nome! Ao contrário de qualquer ser humano, Ernesto não podia
errar, sob pena de se confirmar a sua desonestidade. Aí, o povo venceria;
aliás, o mundo venceria e Ernesto não estava disposto a dar razão a quem não
tinha ou não lhe fazia uso.
Que se soubesse, ninguém apresentara razão de queixa de
sua pessoa. Era pacato, humilde e demasiado trabalhador. Era daqueles que o bom
patrão gostava de ter a seu mandato: fizesse o que fizesse, era bem feito! Pelo
menos, até ao dia em que desapareceram dinheiros e ferramentas e surgiu a
inevitável suspeita. Nenhuma vivalma o vira a roubar, mas como era Ernesto…
apontaram-lhe o dedo.
Esmoreceu-lhe a paciência e quis abalar para longe dali.
Na vila, dizia-se que havia gentes a partir para trabalhar numas terras férteis
das planícies alentejanas. Pagavam bem e davam teto para dormir. Ernesto não era
ladrão, nunca o fora, mas, como uma mentira contada mil vezes, torna-se
verdade, decidiu-se logo a apanhar a dita camioneta. Os outros, na esperança de
melhores dias, comentavam que iriam pela estrada da felicidade.
«Encontrá-la-iam?», perguntava-se Ernesto.
Numa bela manhã de novembro, os primeiros raios de sol
abrilhantavam a despedida. Por estes dias, a geada andava de mão dada com a
madrugada e tudo parecia cristalino. As pessoas, essas, aglomeravam-se no largo
da carreira. Estavam sorridentes, porém batiam o dente. Ernesto não sabia se
era do frio ou se do nervoso miudinho provindo do desconhecido, da lonjura ou
da própria esperança. Então, no outro lado do largo, lá apareceu a viatura,
meticulosamente a tempo e horas. «Assim se faz. Tudo em ordem!», alguém soltou
evidentemente satisfeito.
O chauffeur, um
homem para meia-idade, apresentou-se como Salvador e solicitou aos passageiros que
se identificassem. Trinta e três era o número de dissidentes, de foragidos da
agrura da serra e da sua pobreza mercante. Abraços, beijos e lágrimas
condimentaram a hora do «adeus, até breve!». Ernesto não deixava ninguém de
especial, apenas a desonestidade apregoada desde o dia do seu batismo. Para
ele, não havia lágrimas, restavam-lhe as memórias, fossem elas boas ou más. E,
assim, tomaram a estrada rumo ao que diziam ser a felicidade.
O branco caiado da serra ia ficando cada vez mais
minúsculo à medida que se afastavam. Ernesto sorria, contemplando a beleza outonal
das suas origens. O verde mesclado com o castanho e o cinzento do asfalto
salpicado pelo desfolhar dos plátanos. Do rádio escutava-se o «1, 2, 3, vou
nascer outra vez» dos Ritual Tejo; nem a música podia ser mais apropriada.
Preocupava-o, contudo, a velocidade com que tudo ficava para trás e o trajeto
não era exatamente retilíneo. Os passageiros conversam animadamente, bem
agarrados aos pertences que não depositaram na bagageira. A bordo iam vidas, orgânicas
e inorgânicas, literalmente. Talvez por isso, e pela velocidade, a camioneta balouçasse
nas curvas.
Mais adiante, algures ainda pela serra, o piso atraiçoou
a confiança do Salvador e a camioneta não balançou, deslizou para a berma e
precipitou-se por um barranco abaixo. Os gritos, os galhos a quebrar, o
rodopio, culminado pelo estrondo do embate final, deram lugar ao silêncio e ao
vazio. Momentos… Ernesto flutuava, invadido por uma sensação de paz
inexplicável. Uma luz – quiçá salvadora – tomou-lhe o destino. E, enquanto
outros jaziam a contorcer-se de dor, Ernesto havia encontrado, inadvertidamente,
o seu intento… a mais pura das felicidades.
Imagem: A estrada e a beleza outonal da serra de Monchique (6-dez-2013).
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